Imigração haitiana: Fronteiras e limites entre as violências aceitas e toleradas – Por Caroline Matias

Apoiados em políticas de estado colocadas em vigor por Trump, a administração Biden tem deportado milhares de imigrantes haitianos. A situação foi escancarada há poucos dias, com cenas que demonstram o lado desumano das fronteiras

Foto: BBC (Reprodução)
Escrito en OPINIÃO el

Por Caroline Matias *

Apoiado sobre um dos códigos legais de saúde coletiva do ordenamento jurídico estadunidense, a administração Biden, têm deportado milhares de imigrantes e solicitantes de asilo do seu território. A situação foi escancarada ao mundo nas últimas semanas, quando o tratamento dado pelos guardas de fronteira estadunidenses aos imigrantes haitianos foi flagrado, em cenas que circularam pelos jornais do mundo e demonstram o lado desumano das medidas políticas para migração. Além de criticada pela comunidade internacional, essa política de deportação em massa ocasionou na renúncia do então enviado especial do governo estadunidense ao Haiti, Daniel L. Foote, que classificou as deportações como “desumanas”.

As fotografias tiradas pelo fotojornalista Paul Ratje, narram o momento exato em que os guardas estadunidenses avançam, montados em cavalos, contra um grupo de imigrantes haitianos, que tentavam entrar nos Estados Unidos da América (EUA). Os imigrantes, que há semanas estão cercados na fronteira dos EUA com o México em uma espécie de acampamento ilegal, são obrigados a cruzar o Rio Grande para conseguir comprar comida, água, remédios, entre outras coisas. Os motivos que os levaram a migrar são variados, mas têm em comum as atuais crises, econômicas, sociais e políticas, tanto em seu país de origem, quanto em países como Chile, Venezuela e o Brasil, três países de onde vieram a maior parte dos imigrantes haitianos presentes na fronteira entre o México e os EUA.

A caminhada migrante

A jornada que levou cerca de 14 mil haitianos, neste mês de setembro, até a região do Rio Grande, localizado na fronteira do México com os EUA, ocorre a muito tempo e se repete em uma espiral de violações aos direitos humanos. O grupo é composto em grande parte por migrantes que saíram do Haiti em 2010, após um dos maiores terremotos já registrados no Haiti, que além de ter causado a morte de cerca de 300 mil pessoas deixou consequências econômicas e sociais que podem ser sentidas até os dias atuais. Os principais destinos desses imigrantes, inicialmente, foram países como Cuba, República Dominicana, Chile, Venezuela e o Brasil, sendo que, os três últimos nos últimos anos têm passado por fortes convulsões sociais e crises.

O Brasil em especial, atraiu os haitianos devido ao grande crescimento econômico pelo qual a economia brasileira passava e às grandes obras que estavam sendo realizadas no país, por decorrência da Copa e da Olimpíada, o que tornou mais fácil para esses migrantes conseguir vistos de trabalho no país. Mas, atualmente o país vem enfrentando índices cada vez maiores de desemprego e com o início da pandemia do Covid-19, essa realidade foi escancarada, revelando tanto a falta de acesso a emprego, que atinge a todos que vivem no país, como a falta de políticas eficazes de assistência social e econômica para a comunidade imigrante.

Outra parte menor dos cerca de 14 mil haitianos saíram do Haiti após o terremoto que abalou o país e o assassinato do então presidente, Jovenel Moïse, por mercenários colombianos, em junho de 2021. Posto o cenário, desde o início de 2021, já se anunciava uma espécie de “êxodo” dos haitianos da América Latina e o início de sua caminhada ao norte, aos EUA, país que já tem uma das maiores diáspora haitiana do mundo. Esse êxodo tem aumentado as tensões pelos países que estão na rota desses migrantes, seja quando se fala da acolhida a eles, seja quando se fala dos riscos às suas vidas, isso porque, na caminhada do sul ao norte, a rota prioritária deles têm sido as selvas que dividem as fronteiras de países como Costa Rica, Nicarágua, Panamá e Colômbia o que acarreta em inúmeros riscos as suas vidas, mas os protege do risco da deportação.

E nas fronteiras entre o México e os EUA, as tensões e deportação de imigrantes haitianos, também estão sendo anunciadas e escalonadas desde o início do ano. Um dos casos mais tristes dessa história é o de Manite Dorlean (33 anos), imigrante haitiana, que após passar anos no Brasil, e não conseguir encontrar condições favoráveis à vida, no final de 2020, decidiu enfrentar a caminhada até os EUA e acabou morta no leito do Rio Grande, em 8 de janeiro de 2021. Manite foi a 18ª pessoa a perder a vida por afogamento e hipotermia, apenas de outubro de 2020 até o dia de sua morte nessa fronteira. O que aconteceu agora no mês de setembro, foi apenas o estopim dessa situação, que apesar de divulgada, não estava tendo muito destaque.

Apenas de domingo (19) a terça-feira (21) cerca de 6,5 mil haitianos foram deportados para Porto Príncipe, capital do Haiti, em uma grande operação dos EUA. Com medo de serem deportado os imigrantes haitianos têm se estabelecido cada vez mais, mesmo que de forma ilegal, em território mexicano. País que desde meados de 2017, possui comunidades crescentes de haitianos, principalmente nas regiões de fronteira com os EUA. No entanto, o México não possui políticas concretas de acolhida aos haitianos deportados pelos EUA, o que deixa os imigrantes que se encontram na região do Rio Grande em um tipo de limbo.

Foto: Times Record News (Reprodução)

Políticas de controle de corpos e fronteira

Em março de 2020, por ordem do Departamento de Segurança Interna e da Casa Branca, o Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA usou um regulamento de emergência que dava aos Centros para Controle e Prevenção de Doenças (CDC) a autorização de bloquear a entrada de indivíduos que tivessem vindo de áreas afetadas pelo Coronavírus. O regulamento de saúde pública, conhecido como “Title 42” não afetou aqueles que já estavam nos EUA de forma legal, mas deu autoridade aos agentes das alfândegas estadunidenses de deportar sumariamente os imigrantes que diariamente chegam nas fronteiras dos EUA com o Canadá e México, bem como causou uma pausa nos pedidos de asilo que já estavam sendo processados no país.

Apesar de Joe Biden ter anunciado que teria uma postura diferente do seu antecessor, em relação às políticas migratórias, a “Title 42” continua a vigorar, na sua administração, com algumas alterações, como no caso da deportação de crianças. Antes dessa alteração, sobre a legislação da "Title 42”, os EUA foram responsáveis pela deportação de cerca de 13 mil crianças migrantes que se encontravam desacompanhadas no país. Além da falta de trato humanitário, essa medida vai contra o direito internacional, que defende o direito à migração e acolhida das pessoas migrantes e possui grande potencial de atentar contra a vida dos migrantes, uma vez que, ao serem deportados de volta para seus países de origem, os migrantes deportados podem estar voltando para situações de risco direto às suas vidas.

As fronteiras sempre serviram para demarcar a diferenciação entre os diversos seres viventes do mundo, e estabelecer uma discriminação entre os de dentro e de fora. E isso fica claro no pronunciamento feito pelo secretário de segurança interna dos EUA, Alejandro Mayorkas, que anunciou o objetivo de “limpar” a região do Rio Grande, onde os haitianos se encontram até o final de setembro. E na ação do então governador do Texas, G. Abbott, que construiu um “muro de aço”, feito de carros da polícia, com a finalidade de barrar a entrada e circulação desses migrantes na parte estadunidense da fronteira. Medidas que não resolvem a questão da necessidade de migrar dos haitianos.

A fotografia do momento exato da expulsão dos imigrantes haitianos das fronteiras estadunidenses, propaga uma mensagem: os imigrantes haitianos não são bem-vindos dentro das fronteiras estadunidenses. E remetem amplamente a dois momentos históricos: a expansão das então 13 ex-colônias britânicas ao oeste, fundamentada no destino manifesto, por meio do roubo de terras e do genocídio dos povos indígena. Sendo, a figura estereotipada dos guardas de fronteira similar as dos xerifes e caubóis na luta contra aqueles que, diante da fronteira que estabeleciam os escolhidos para viver naquelas terras e os que delas deveriam ser expurgados.

O segundo momento é a escravidão. Isto porque o chicote, como demonstração de força contra corpos negros, é simbólico o suficiente para nos remeter aos castigos corporais pelos quais os escravizados passavam. Apesar das controvérsias a respeito do instrumento utilizado pelos guardas (se era um chicote ou parte da rédea de controle dos cavalos) seja o que for, o controle de corpos continua sendo o seu principal propósito, assim como seus usos de demonstração de poder, força e controle. Podemos ver em uma das imagens capturadas por Paul que, além dos seus corpos, a única coisa que os imigrantes carregam consigo, enquanto são perseguidos pelos guardas, são marmitas de comida.

*Caroline Matias é pós-graduanda em História da África, Educação, Cultura e Relações Internacionais (UNIFAI) e mestranda no programa de Governança Global e Formulação de Políticas Internacionais (PUC-SP). Formada em Relações Internacionais (PUC-SP).

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.