Impeachment de presidente peruano propõe novos desafios à democracia do país

Foto: Reuters
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Um dos presidentes mais populares de sua geração, Martin Vizcarra foi afastado da presidência do Peru no dia 9 de novembro, acusado de receber propina quando era governador de Moquera. A decisão do Congresso, composto em grande parte por parlamentares que respondem a processos de corrupção, é questionada nas ruas. Protestos se espalharam pelo país andino e os manifestantes denunciam golpe parlamentar. (Créditos da imagem: Reuters).   Por Julia Périco*   Na noite do dia 9 de novembro, Martín Vizcarra foi afastado da presidência do Peru por “incompetência moral”. O país terá seu terceiro presidente desde 2016. Dessa vez, o cargo será assumido pelo líder do Congresso, Manuel Merino, do partido de direita Ação Popular. Para compreender a fragilidade institucional e a crise na conjuntura política peruana, é preciso entender um pouco da história recente do país, a qual envolve a abertura do precedente para a votação do impeachment do presidente destituído, Vizcarra, e o legado da Lava-Jato peruana, que colapsou o sistema político-partidário do país e despertou uma profunda e já conhecida crise de desconfiança entre a sociedade civil e o poder político.   Nos anos 1990, o Peru passava por um movimento semelhante de ceticismo frente às legendas políticas do país. Tratava-se de um contexto pós ditadura militar e um cenário de violenta crise econômica seguida por políticas de austeridade fiscal, iniciadas sob o regime de Francisco Morales Bermúdez, que condicionaram o acordo de estabilização econômica do país andino com o Fundo Monetário Internacional (FMI) culminaram na redução severa do padrão de vida dos trabalhadores.   Nessa mesma década, Alberto Fujimori foi eleito presidente com um discurso que capturou a insatisfação popular e prometeu acabar com a “partidocracia”. O fujimorismo deu continuidade a um projeto político de profunda desarticulação das forças populares peruanas e uma perseguição ideológica pautada na violência contra os direitos humanos, que reprimiu e exterminou mais de 2 mil mulheres indígenas e culminou na condenação de Fujimori a 25 anos de prisão por seu legado sanguinário e por denúncias de corrupção.   Na época da condenação de Fujimori, o Congresso fez uso do artigo 113 da Constituição peruana, e o declarou ausente por “incapacidade moral”. Esse recurso é geralmente utilizado em casos que envolvem transtornos em relação à saúde mental de um presidente para exercer seu cargo. A justificativa para o afastamento de Fujimori conferiu uma nova interpretação ao termo e abriu um precedente que permitiu ao Congresso iniciar processos de impeachment desordenadamente, colocando em risco a recente democracia do país. A própria ascensão de Vizcarra à presidência está ligada a esta dinâmica, uma vez que seu predecessor, Pedro Kucynski (PPK), renunciou à presidência sob o risco de ser julgado por incapacidade moral pelo Congresso.   Para piorar ainda mais a instabilidade política no Peru, a Operação Lava-Jato peruana reacendeu definitivamente a desconfiança popular em relação aos partidos políticos. Os escândalos de corrupção revelados pelas investigações atingiram a maioria das legendas do país e prenderam os quatro ex-presidentes do período pós-Fujimori. O legado deixado pela Operação abriu espaço para o crescimento de partidos de extrema-direita e fundamentalistas evangélicos. Em meio a isso, denúncias envolvendo a atuação da Justiça peruana acirraram os desgastes políticos, quando o vazamento de gravações telefônicas entre membros do Conselho Nacional de Magistratura (CNM) mostrou magistrados de diferentes instâncias combinando sentenças, um escândalo revelado pelo site IDL-Reporteros que ficou conhecido pelo nome de Vaza-Juiz, em alusão à operação Lava-Jato.   A desconfiança em relação às instituições tornou a situação peruana insustentável. A necessidade de uma reforma no processo de seleção de juízes da Corte Suprema do país entrou na agenda no governo Vizcarra, cujas relações com o Legislativo eram de profundo esgotamento. Impossibilitado de governar e buscando evitar a nomeação de mais juízes pelo fujimorismo que reinava no Congresso, Vizcarra utilizou-se de um recurso alegadamente legal e dissolveu o Congresso, convocando novas eleições legislativas em janeiro de 2020.   O resultado das eleições não facilitou a vida do então presidente. O que se observou foi a continuidade da guerra exaustiva entre Executivo e Legislativo e o crescimento amplo de siglas de extrema direita. A aliança entre os setores mais conservadores e populistas travaram as discussões acerca de reivindicações populares importantes, como os debates em torno da previdência privada e os pacotes de recuperação da crise desencadeada pelo coronavírus.   O Peru, então, se viu diante de uma conjuntura crítica, que envolvia os efeitos catastróficos das reformas estruturais iniciados nos anos 1990, a desconfiança popular generalizada em relação aos partidos políticos, a ascensão de grupos fundamentalistas de extrema-direita e um Congresso que enfrenta uma desaprovação que esbarra nos 60%. Tudo isso enquanto o país tenta se recuperar de um dos piores surtos de coronavírus do mundo e reconstruir uma economia profundamente abalada, cujas projeções alertam para o declínio de 14% no PIB deste ano, de acordo com o FMI.   Mesmo diante de tantas complicações, Vizcarra era considerado um dos presidentes mais populares da América Latina, ainda que sua popularidade esteja mais relacionada com o aproveitamento de um discurso punitivista de anticorrupção, que marcou o cenário de crise enfrentado pelo país, do que pela articulação de um projeto político bem estruturado capaz de pautar demandas populares importantes. Todavia, possuidor de uma taxa de aprovação impressionante, acima de 50%, as condições de seu afastamento tornam-se ainda mais complicadas.   Houve duas tentativas de impeachment contra Vizcarra, ambas justificadas com base na cláusula da incapacidade moral. A primeira baseou-se em um escândalo envolvendo a contratação por 50 mil dólares de Richard Cisneros, um cantor pouco prestigiado no país, para dar palestras pelo Ministério da Cultura. Nessa ocasião, Manuel Merino, líder do Legislativo, não conseguiu os votos necessários para a destituição do presidente após surgirem revelações de que o presidente da Câmara havia se aproximado das Forças Armadas com o objetivo de preparar o terreno para um suposto golpe de Estado. Apesar disso, Merino autorizou a abertura de um segundo pedido de impeachment, baseado na denúncia de um pagamento de propina a Vizcarra pela construtora Obainsa, quando o político era governador de Moquera, na região sul do Peru. Dessa vez, foi dada continuidade ao processo e Vizcarra foi afastado da presidência por 105 votos a favor, 19 contra e 4 abstenções.   Diante de um processo de impeachment questionável e impopular, uma série de protestos tomaram conta das ruas do país, denunciando um golpe parlamentar empreendido pela oposição. O grito nas manifestações não isenta Vizcarra de suas responsabilidades legais e exigem investigações sobre o ex-presidente. Contudo, os manifestantes consideram o processo de impeachment inconstitucional, fruto do oportunismo dos parlamentares e da deturpação difusa impregnada nas instituições peruanas. Apesar do caráter pacífico, os protestos foram violentamente reprimidos por parte da polícia nacional. Nesse contexto, a ascensão de Manuel Merino à presidência da república do Peru levanta dúvidas quanto a sua legitimidade. Existe um claro interesse do Congresso - composto por 130 parlamentares, dentre os quais mais de 60 estão vinculados a casos de corrupção - de frear as investigações e criar mecanismos para a manutenção de seus mandatos na casa legislativa.   Muitos peruanos temem que Merino utilize a pandemia como argumento para adiar as eleições presidenciais marcadas para abril. Apesar disso, o atual presidente prometeu "respeitar o processo eleitoral em curso" e garantiu que "ninguém pode alterar a data das eleições convocadas para 11 de abril de 2021". Um dos possíveis desdobramentos para o cenário político peruano, entretanto, compõe um presságio já conhecido no panorama latino-americano: a condução de um governo destituído de qualquer comprometimento popular e desesperado para ganhar algum apoio para as eleições que virão. O que ajuda o ex-presidente do Congresso nessa empreitada é o fato de poder comandar o Executivo junto a um parlamento sem liderança, o que facilita a aprovação de qualquer projeto de lei que lhe for conveniente.   O Peru, portanto, enfrenta imensos desafios para 2021. Entre eles, o principal talvez seja o restabelecimento das organizações de forças populares capazes de estruturar uma oposição comprometida com uma ampla reforma constitucional e de frear o avanço de partidos de extrema-direita. A retomada e o fortalecimento da atuação de base dos movimentos sociais devem indicar um projeto político operado de baixo para cima, apoiado na incorporação de reivindicações populares e no fortalecimento da frágil e recente democracia peruana.   * Julia Périco é graduanda em Relações Internacionais na PUC-SP e integrante do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI) da PUC-SP.