Iraque fragmentado: entrevista com o jornalista Yan Boechat – Blog Terra em Transe

A incursão estadunidense, além de causar a morte de milhares de civis e a destruição da infraestrutura, serviu para aprofundar as divisões sectárias no país

Foto: News18 (Reprodução)
Escrito en OPINIÃO el

Por Marcela Gonçalves e Rodrigo Amaral *

Atualmente, associar o Iraque a um cenário de crise não é algo surpreendente. Desde a Guerra do Golfo, no início da década de 1990, o país vive uma sucessão de eventos que o transformou de um Estado de grande relevância regional em um Estado pária do Sistema Internacional. Além disso, é impossível desassociar o processo de enfraquecimento iraquiano da presença norte-americana no país, sobretudo após a invasão estadunidense em março de 2003.  Desde então, o Iraque mergulhou em uma profunda crise social, econômica e política da qual ainda não conseguiu se recuperar, agravada pela ascensão do grupo terrorista Estado Islâmico e pela atuação de outros grupos dentro do território iraquiano.

O cenário atual

Para falar um pouco mais sobre esse cenário, o jornalista Yan Boechat participou do programa Terra em Transe, organizado pelo GECI/PUC-SP em parceria com a TV PUC, no início de julho para contar como foi a experiência de cobrir a Guerra contra o Estado Islâmico no Iraque e a crise pós invasão norte-americana.

A incursão estadunidense, além de causar a morte de milhares de civis e a destruição da infraestrutura, serviu para aprofundar as divisões sectárias, pois as tropas americanas utilizavam o apoio da maioria xiita para atuar no Iraque. Os soldados xiitas, por sua vez, ao invadirem cidades predominantemente sunitas, desenvolveram um certo senso de orgulho e vingança contra a elite sunita, argumenta Yan. Essa cisão se aprofundou nos anos seguintes, corroborando para o estopim de uma guerra civil que contaria ainda com o ascensão do Estado Islâmico em 2014.

Embora o governo iraquiano tenha anunciado vitória contra o EI na região em 2017 e o grupo tenha sofrido um aparente enfraquecimento nos anos seguintes, o que se vê desde o ano passado é uma nova ascensão dos terroristas por meio do que Yan define como “células adormecidas”: membros que se escondem no meio dos civis e que atuam inesperadamente. Forças estadunidenses vêm sendo reimplantadas no país para combater os terroristas e também em reação aos ataques a alvos norte-americanos por parte das Popular Mobilization Units (PMU).

Rodrigo Amaral, professor de Relações Internacionais da PUC-SP e pesquisador do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI/PUC-SP), ressalta que durante a guerra contra o EI, além da coalizão militar internacional liderada pelos EUA e o exército iraquiano, diversas milícias foram reconhecidas formalmente pelo Estado iraquiano como forças paramilitares. Dentre elas destaca-se o papel das peshmergas curdas e as PMU’s, uma organização guarda-chuva composta por aproximadamente 40 forças que são principalmente grupos muçulmanos xiitas, mas também incluem grupos muçulmanos sunitas, cristãos e yazidis. A maioria delas são grupos pró-Irã. Deve-se ressaltar que sem a atuação destes grupos paramilitares, seria difícil uma vitória tão rápida contra o EI no país, conforme afirmado pelo próprio governo iraquiano.

Desde então, a atuação permanente de milícias pró-Irã dentro do território iraquiano vêm ganhando cada vez mais apoio popular e relevância política. A presença destes grupos eleva as tensões na região, visto que os EUA não cultivam boas relações com iranianos desde a Revolução Iraniana de 1979. Os grupos atuam atacando bases norte-americanas em países como Síria e no próprio Iraque, gerando uma resposta violenta por parte do Pentágono. A situação foi deteriorada ainda mais após o ataque americano ao aeroporto de Bagdá em janeiro de 2020, que culminou na morte do general iraniano Qasem Soleimani, figura política extremamente poderosa em seu país. Soleimani se reunia com o líder das PMU’s, Abu Mahdi al-Muhandi, quando um ataque de drone norte-americano assassinou ambos. Desde o ocorrido, houve uma escalada da violência entre as milícias atuantes pró-Irã e Washington.

 Os impactos gerados tanto pelos norte-americanos quanto pelo combate ao EI podem deixar marcas profundas, sobretudo para as próximas gerações: Yan comenta que foi possível observar uma geração de jovens sem perspectivas socioeconômicas futuras, cujo objetivo maior tornou-se combater o ISIS para vingar os familiares mortos. Além disso, a divisão sectária utilizada pelos EUA pode radicalizar ainda mais o conflito, visto que os norte-americanos formaram uma elite política xiita,  deixando regiões de maioria sunita - como Mossul - com pouquíssimo investimento. Essa divisão, argumenta Boechat, esfacela qualquer possibilidade de se construir uma identidade nacional iraquiana.

A volta da presença de tropas americanas no Iraque também acarretou em grande descontentamento popular: desde outubro de 2019, mais de 3,000 protestos ocorreram no país. Além das reivindicações contra a presença norte-americana - agravadas após a morte do general iraniano - era comum encontrar demandas como alterar a constituição, mudar o sistema parlamentar para presidencial e também manifestações com slogans anti-Irã. Para além dos fatores sectários, é importante observar que a crise iraquiana dessas últimas décadas agravou as desigualdades sociais. Muitas das recentes manifestações populares têm como pano de fundo questões socioeconômicas básicas como a demanda por pleno emprego e as acusações de corrupção governamental, pobreza e desemprego.

Soma-se a isso o cenário crítico ao norte do Iraque, onde recentemente encontram-se forças turcas combatendo os curdos do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) em refúgio. De modo semelhante aos EUA combatendo milícias pró-Irã, a atuação turca nas fronteiras ao norte do Iraque é também agressiva. Além disso, eleva as tensões diplomáticas entre os governos de Bagdá e Ancara.

Origens históricas

O Iraque nem sempre viveu em um estado de crise. Após emancipar-se do poder colonial britânico em fins dos anos 1950, o Iraque ganhou relevância nas décadas seguintes, principalmente por participar da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), sendo o segundo maior produtor e a quinta maior reserva petrolífera do planeta.  A economia do país foi alicerçada no comércio deste combustível, tornando-a extremamente dependente de um único produto e vulnerável às variações de preço no mercado internacional.

Durante a década de 1960, o país destacou-se com uma proposta política autonomista com a instauração de um governo fundamentado no baathismo, ideologia derivada de movimentos nacionalistas árabes e baseada nos princípios da unidade, liberdade e socialismo. O período, que se estendeu até o início dos anos 2000, ficou conhecido como Era Baath. Tanto o petróleo quanto o projeto político baathista demonstram a importância que o país ganhou no Oriente Médio, sendo parte da estrutura de poder da região.

Em agosto de 1990, o Iraque chamou a atenção da comunidade internacional quando as tropas de Saddam Hussein invadiram o território vizinho do Kuwait, dando início a Guerra do Golfo. O país, com a economia bastante fragilizada devido à Guerra Irã-Iraque (1980-1988), alegava que seu vizinho, ao não respeitar os limites estabelecidos pela OPEP, afetava os preços do petróleo, configurando um obstáculo à recuperação econômica iraquiana, visto que essa depende majoritariamente do comércio do combustível. O conflito tinha em vista também questões territoriais, como o acesso ao Golfo Pérsico, região estratégica para o escoamento da produção petrolífera.

A Guerra do Golfo foi um momento significativo para a imagem do Iraque internacionalmente: além de ser o primeiro grande confronto pós Guerra Fria, mostrava que o Iraque não respeitava a nova ordem internacional liberal estabelecida, que, por sua vez, pregava a cessão de conflitos internacionais e o estabelecimento de uma ordem pacífica. Tal atuação do país resultou em um tratamento bastante severo por parte da comunidade internacional, acompanhado de sanções econômicas, tais como as impostas pelo Conselho de Segurança da ONU em agosto de 1990.

A visão do Iraque como um Estado pária do Sistema Internacional agravou-se com a invasão dos Estados Unidos ao país em março de 2003. Sob a alegação de que o regime de Saddam Hussein escondia armas de destruição em massa, violava direitos humanos e que servia como suposto abrigo para organizações terroristas, tropas norte-americanas invadiram o território, mesmo com grande reprovação da comunidade internacional e sem autorização do Conselho de Segurança da ONU. A operação se estendeu mais do que o previsto, com a retirada das tropas americanas somente no fim de 2011, deixando para trás um cenário de destruição. O país sofre  ainda hoje com as consequências deixadas pela invasão e pela guerra civil iniciada nos anos seguintes, somada à ascensão do Estado Islâmico.

Futuro incerto

Diante das dinâmicas que envolvem o Iraque, percebe-se um país fragmentado. As atividades norte-americanas no país - seja durante o período de invasão ou durante a reinserção das tropas para combater o EI ou milícias a favor do Irã - deixaram o país em uma crise política e socioeconômica, intensificando as distinções sectárias. Além disso, a devastação causada ao longo de todos os anos desde o início dos conflitos torna ainda mais complexa a recuperação econômica do país, o que afeta o futuro das gerações mais jovens. Soma-se a isso o aprofundamento cada vez maior da desigualdade social, a corrupção e o desemprego, que fragilizam ainda mais o tecido social iraquiano, resultando em convulsões sociais, como visto com os protestos do início de 2020.

A atuação de diferentes grupos com interesses divergentes em um local já devastado socioeconomicamente torna difícil enxergar uma perspectiva de melhora da crise. São países, grupos armados, milícias e organizações consideradas terroristas combatendo e devastando o solo iraquiano, enquanto a população se mantém em uma situação de pobreza e desamparo. Os acontecimentos mais recentes, como por exemplo o ressurgimento do EI e a volta das tropas americanas, evidenciam que ainda há muito por vir.

*Marcela Gonçalves é graduanda do curso de Relações Internacionais da PUC/SP.

*Rodrigo Amaral é professor do curso de Relações Internacionais da PUC/SP.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.