Laboratório Permanente e Guerras Intermináveis

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O uso indiscriminado da palavra laboratório serve, entre outras coisas, para esconder as relações sociais que se estabelecem entre forças de segurança que fazem uso da violência estatal e a população. Funciona como uma espécie de licença para o estado usar a força livremente e retirar direitos de uma classe.  Por Diego Araujo Gois Nas últimas semanas a palavra laboratório apareceu por diversas vezes nas notícias referentes a intervenção federal na segurança pública no estado do Rio de Janeiro. Como forma de justificar a intervenção, o termo laboratório remete às experiências e aprendizado que os participantes da Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (MINUSTAH) teriam adquirido no país caribenho. Essa ideia ganhou destaque tanto para respaldar a participação das forças armadas na ocupação do Haiti, quanto agora, para fazer um contraponto ao questionamento sobre a falta de preparo e de condições das tropas de atuar nas favelas cariocas e nas funções relativas à segurança pública. O termo laboratório foi sendo progressivamente utilizado por diversos atores brasileiros que participaram da MINUSTAH. O Haiti, deste modo, se apresentava como um espaço para práticas e para experiências sociais. Rubem César Fernandes, diretor-executivo da ONG Viva Rio, que atua na área de direitos humanos, segurança pública e que faz parte da MINUSTAH, disse em entrevista que “onde o Haiti se apresenta como laboratório para nós é na criação de conceitos-chave. A dificuldade é colocar em prática. Por exemplo, a estratégia progressiva de ocupação e desenvolvimento. Como foi no bairro de Bel Air, depois em Cité Militaire e, por último, em Cité Soleil. Cada passo foi uma progressiva ocupação”. Além de ser um laboratório para iniciativas de ONGs, o Haiti também serviu como experimento para ações militares e de segurança. A estratégia desenvolvida nas favelas de Porto Príncipe, de ocupar o local, destituindo o controle e eliminando os criminosos pretendia impedir que facções criminosas e milicianas voltassem a exercer influência nas comunidades. A ocupação e a “pacificação” desses pontos permitiu que uma série de ações sociais e humanitárias fossem empreendidas nas favelas. Essa estratégia desenvolvida em Porto Príncipe foi um dos fundamentos da criação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) nas favelas do Rio de Janeiro. Especialistas de diversas áreas e militares viram na missão do Haiti uma chance para o Exército brasileiro treinar e aprimorar suas tropas em campo. A ideia de “Pontos Fortes”, enclaves localizados no coração da área mais perigosa foi extraída das operações de ocupação e contenção de distúrbios urbanos em Cité Soleil e, posteriormente, Cité Militaire em 2007. Além disso, a primeira tropa a entrar nos complexos da Penha e do Alemão na cidade do Rio de Janeiro foi a Brigada de Infantaria Paraquedista, que tinha sido empregada no contingente militar brasileiro da MINUSTAH. De acordo com o pesquisador Thiago Rodrigues, a preparação das tropas e da brigada teve que considerar “não só os propósitos gerais das operações de paz, mas também se condicionar a táticas e estratégias específicas de guerra urbana (...) e alta interação em combate com a população local.” Com a intervenção federal na segurança pública do estado do Rio de Janeiro, em 16 de fevereiro, as comparações com a cidade de Porto Príncipe ficaram ainda mais evidentes e a palavra laboratório voltou a aparecer com força. As notícias e declarações que sucederam o ato do presidente Temer apontavam nessa direção. Ao ser questionado em entrevista coletiva no dia 27 de janeiro sobre a possibilidade de que o modelo de intervenção pudesse ser estendido a outros estados, o general Walter Souza Braga Netto afirmou que o estado do Rio de Janeiro “é um laboratório para o Brasil”. No mesmo dia, o governador Pezão declarou que o episódio no Rio é um “laboratório” e acha “que cada vez mais estados e cidades vão pedir essa parceria”. Outro item que foi considerado a partir da experiência da MINUSTAH é o uso de mandado coletivos de busca e apreensão em operações das forças armadas. Segundo o General da reserva Augusto Heleno Ribeiro Pereira, o mandado coletivo visa “permitir que operações custosas, que às vezes levam meses para acontecer, atrás de um chefe de quadrilha, acabem esbarrando em um empecilho jurídico que pode perfeitamente ser autorizado lá na hora, no Haiti já aconteceu”. Além do uso de mandados coletivos, Heleno também defende a flexibilização da regra de engajamento para os militares envolvidos na segurança pública do Rio. A ideia é de que as forças armadas tenham o poder de ferir e chegar ao ferimento letal daquele indivíduo diante de um ato ou intenção hostil, sendo que numa situação hipotética, “um sujeito armado de fuzil, assaltando, roubando carga, ele passa a ser um alvo e, a partir daí, eu posso eliminá-lo (...) e quem fizer essa ação está isento de responsabilidade jurídica”. A ideia de laboratório caiu no gosto das forças de segurança e parece que ganhou vida, tornando-se um adjetivo para qualificar o trabalho de “treinamento” e “intercâmbio” no uso da violência estatal contra a população civil. Nos treze anos de ocupação brasileira no Haiti, as forças armadas se tornaram referência mundial no quesito “pacificação” de regiões urbanas violentas. Em 2012, 139 militares estrangeiros foram treinados por brasileiros a partir dos conhecimentos adquiridos nos “laboratórios” Porto Príncipe e Rio de Janeiro. O que ocorre na prática, entretanto, é que a ideia de “laboratório” funciona como uma ilusão, e como toda ilusão é usada muito mais para esconder do que para revelar. Pensar em termos de “laboratório” limita a compreensão dos aspectos políticos e sociais que fundamentam a intervenção e o uso da violência por parte do Estado. Os experimentos e aprendizado adquirido pelas forças armadas são produtos de uma série de relações sociais, entre pessoas reais, nas favelas de Porto de Príncipe e do Rio de Janeiro, e não em salas higienizadas de fundo branco com técnicos usando jaleco e manipulando substâncias químicas em tubos de ensaio. A insistência no termo “laboratório” pelos seus interlocutores pretende revelar uma ideia de que o trabalho desenvolvido nessas intervenções são procedimentos técnicos, pontuais, cirúrgicos e precisos, desenvolvidos por especialistas capacitados, fazendo uma alusão a cientistas, sobretudo físicos e químicos que manipulam substâncias e materiais para chegar num determinado resultado ou objetivo científico. No caso em questão, o termo laboratório é utilizado para esconder as relações sociais que se estabelecem entre forças de segurança que fazem uso da violência estatal como meio para controlar populações. As Forças Armadas manipulam os meios de violência controlando a população e garantindo a produção e fabricação de um tipo de ordem social. É essa a experiência que está sendo feita nos “laboratórios” Porto Príncipe e Rio de Janeiro. Uso da violência, restrição à livre circulação e outras medidas de repressão estão sendo usadas e testadas em pessoas reais com propósito de aprimorar e desenvolver técnicas de guerra e “pacificação”.     Diego Araujo Gois é mestrando do Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP) e pesquisador do GECI.