Preocupação com afegãs reacende necessidade de desmistificar narrativa ocidental – Blog Terra em Transe

Abundaram as já famosas comparações da vida em Cabul nos anos 1970, quando mulheres usavam roupas ocidentalizadas, e fotografias atuais nas quais, sob o domínio do Talibã, o uso da burca é obrigatório

Protesto contra o Talibã no dia 19 de agosto I Insider
Escrito en OPINIÃO el

Por Beatriz Marques e Verônica D'Angelo *

As recentes imagens e vídeos circulando nas redes nesta última semana chocaram o mundo com os horrores de um projeto de desocupação súbito e desesperado por parte dos Estados Unidos e a retomada do poder pelo Talibã. Com a ascensão do grupo fundamentalista, redobrou-se a atenção da comunidade internacional em relação aos direitos das mulheres no Afeganistão. Abundaram as já famosas comparações da vida em Cabul nos anos 1970, quando mulheres usavam roupas ocidentalizadas, e fotografias atuais nas quais, sob o domínio do Talibã, o uso da burca é obrigatório.

Fonte: https://afghanistaneducationinconflict.wordpress.com/gender-education/

Direitos das mulheres afegãs: da ocupação a ascensão do Talibã

O Afeganistão esteve sob ocupação militar americana desde 2001 quando, após os atentados do 11 de setembro, o país foi considerado como parte do “Eixo do Mal” do governo Bush pela presença do Talebã, grupo parceiro da Al-Qaeda que assumiu a autoria dos atentados. Dentre os 19 participantes dos atentados identificados, nenhum era afegão.

Na época, a justificativa para ocupação seria de conter o terrorismo, o que foi colocado como uma guerra global ao terror e em prol das instituições democráticas do Ocidente. Mas, a proteção dos Direitos Humanos e do Direito das Mulheres também era um discurso potente para legitimar as ações perante a comunidade internacional, proclamado, inclusive, pela então primeira-dama Laura Bush. No discurso da primeira-dama, ela deixa claro que a “salvação das mulheres” viria como consequência da ocupação estadunidense no país, reforçando a narrativa colonialista e imperialista da intervenção.

Diante dos 20 anos de ocupação e de mais de 2 trilhões de dólares gastos, a qualidade de vida da mulher afegã não mudou tanto assim. Entretanto, quando observamos alguns dados socioeconômicos, a percepção pode ser outra. De fato, o Afeganistão possui mais mulheres na política do que o Brasil. As mulheres aumentaram de maneira significativa a presença nas escolas. Porém, essas medidas foram feitas de maneira imposta e não refletem, por si só, a vida cotidiana das mulheres no país.

Na realidade, a produção de ópio e a pobreza aumentaram. Mais de 50 mil civis foram mortos, sendo 43% mulheres e crianças. Entre 2015 e 2016, o número de refugiados afegãos chegando à Europa superava o de sírios ou iraquianos, porém, salvo raras exceções, os países não os considerava merecedores de ajuda. Além das práticas de violência contra as mulheres, como casamentos infantis forçados, terem se mantido durante os anos de ocupação, abundam denúncias de violência sexual por parte dos talibãs, mas também das forças policiais afegãs e dos militares americanos. A violência chega às afegãs por diversos caminhos e de formas muito cruéis, mas de alguma forma o uso do véu é o único elemento escolhido para representar a opressão feminina.

Em 2019, a vida do povo afegão, de maneira geral, e das mulheres afegãs, em particular, não tinha melhorado de forma a justificar que as negociações entre EUA e Talibã fossem feitas de portas fechadas e sem presença feminina. Desta forma, a teoria não é colocada em prática, uma vez que os Estados Unidos prega pelo asseguramento dos direitos das mulheres na região, mas ao mesmo tempo não oferece espaço nem representatividade para articulação e organização política das mesmas, executando assim políticas de cunho “top-down”.

Cresce a preocupação da comunidade internacional para com as mulheres afegãs

Em um momento em que o assunto está sendo repercutido no mundo todo e a preocupação está voltada para as mulheres afegãs, é importante levar em consideração a separação entre o uso equivocado e deturpado do da religião islâmica pelo Talibã e o que de fato a religião prega com relação aos direitos das mulheres. Como consequência da retórica orientalista da guerra ao terror, o uso do véu ou da burca e a ideia estereotipada de povos árabes já os intitula como “terroristas”. Nesse cenário, a desconstrução da imagem de pessoas do Oriente Médio nos dias de hoje se faz mais que necessária. Enquanto os homens são tidos como opressores, atrasados, terroristas ou inerentemente violentos, as mulheres são colocadas como “dormentes”, submissas, oprimidas e vítimas. Não devemos cair na armadilha do discurso imperialista de associar religião a violência, pois por meio dele se reduz a complexidade da maioria dos conflitos que existem hoje na região.

A luta contra a islamofobia e o feminismo islâmico

Uma corrente de pensamento atual que visa se aprofundar nessa questão da luta contra a islamofobia é o feminismo islâmico, uma vertente do feminismo que pretende focar nas questões das mulheres muçulmanas. A narrativa ocidental associou o uso de véu (niqab, hijab ou burqah) a um símbolo de repressão vindo da religião, sendo interpretado como algo contrário ao feminismo. Entretanto, o feminismo islâmico evidencia o uso do véu como parte das tradições religiosas culturais locais e também coloca o seu uso como algo que depende do livre arbitrio de cada um, isto é, não é obrigatório. Em outras palavras, o feminismo islâmico busca esclarecer que o uso ou não do véu diz respeito à liberdade de escolha da mulher.

O véu também é símbolo de liberdade, diz a muçulmana feminista Dani Albalkhi. Por ser um movimento diverso, o feminismo deve ser capaz de abranger as diferentes vivências das mulheres do Oriente Médio e seu contexto local, colocando fim na comparação com os movimentos sociais que ali nascem com as correntes feministas vindas do Ocidente.

Existe uma relação paradoxal da islamofobia proveniente do mundo ocidental: ao mesmo tempo em que o Ocidente celebra os avanços nas conquistas dos direitos das mulheres nos países árabes, em seus próprios países aplicam leis que ferem a liberdade religiosa, como o banimento do hijabs em espaço público, pautado em um discurso de segurança, um dos pilares da chamada “Guerra ao Terror”.

Foto: “Juntos contra a Islamofobia” - Protesto contra a Islamofobia na França I Al Jazeera

São diversas as mulheres afegãs que relataram preocupação em seguirem com seus projetos de vida com a ascensão do Talibã, enquanto o Talibã afirma que respeitará seus direitos de acordo com o que estiver estipulado pela lei islâmica. Embora a mudança no discurso seja sutil, a atenção está voltada para os próximos passos do Talibã que serão acompanhados de perto pelo mundo inteiro. Sai de cena uma ocupação intervencionista que pouco fez com relação aos direitos das mulheres no país para a chegada ao poder de um grupo fundamentalista com uma agenda política clara, que não abre brechas para melhorias desses mesmos direitos.

E então… quem irá salvá-las?

É evidente que as mulheres afegãs estão em risco e precisam de ajuda, mas não podemos acreditar que a salvação virá do Ocidente. Tampouco podemos acreditar em discursos que usam os direitos das mulheres apenas quando convém para legitimar suas ações, mas que não se sustentam a uma análise mesmo superficial dos dados. Se para o Ocidente de maneira geral e os EUA de maneira particular, o uso do véu é um símbolo inequívoco de opressão feminina, o que foi feito em relação ao seu principal parceiro regional, a Arábia Saudita? Se as violências sexuais são intoleráveis, como metade das oficiais femininas das forças armadas americanas relatam terem sofrido abuso?

Se queremos ajudar de alguma forma as mulheres da região, precisamos aprender, em primeiro lugar, a ouvi-las. Ao expor de forma acrítica mulheres que usam vestimentas religiosas como sendo oprimidas, retiramos o poder de escolha dessas mulheres e as tornamos simples vítimas e reforçamos preconceitos que possibilitam inclusive novas intervenções na região. Como vimos, não nos faltam dados para denunciar a situação da mulher afegã. Não o façamos de forma irresponsável.

*Beatriz Marques é graduanda em Relações Internacionais pela PUC-SP e pesquisadora do GECI.

*Verônica D'Angelo é mestranda no programa de pós-graduação San Tiago Dantas.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.