Rússia e Israel: testando os limites da cordialidade no Oriente Médio

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Amistosas em diversas áreas, relações entre Rússia e Israel se desenvolveram à sombra de desacordos sobre o chamado “eixo da resistência” no Oriente Médio - Irã, Hezbollah e Síria. Conflito na Síria tem posto em evidência as potenciais contradições entre os dois países, que se empenham em acomodar seus interesses na região.

Por Gustavo Oliveira

Enquanto a Rússia chamava a atenção do noticiário internacional pelas expectativas em torno do encontro entre Donald Trump e Vladimir Putin na Finlândia, Moscou sediou outro importante acontecimento político. Pela segunda vez em dois meses, Putin e Benjamin Netanyahu reuniram-se na capital russa em 11 de julho para discutir os desdobramentos do conflito sírio. O encontro se deu em meio a renovadas ações militares nas proximidades da fronteira israelense, onde o regime de Bashar al-Assad, com auxílio da força aérea russa, avançava sobre alguns dos últimos territórios dominados por grupos opositores.

Na mesma semana, Israel também atacou alvos militares dos aliados de Moscou na Síria, produzindo uma situação similar à da última visita do primeiro-ministro israelense à Rússia. No início de maio último, ao mesmo tempo em que Donald Trump anunciava a saída dos EUA do acordo nuclear iraniano, o amigável encontro de Putin e Netanyahu se deu de maneira quase simultânea aos ataques israelenses contra alvos de um importante parceiro russo na Síria: o Irã. Os dois cenários, assim como a frequência e o timing dos encontros entre os dois líderes, são indicativos da relevância e das ambiguidades de um eixo por vezes subestimado do atual quadro de conflito no Oriente Médio: as relações entre Rússia e Israel.

De um lado, os dois países forjaram laços predominantemente cordiais desde o fim da Guerra Fria. Estima-se que cerca de um milhão de judeus emigraram das ex-repúblicas soviéticas para Israel nos anos 1990, contribuindo para sedimentar uma numerosa comunidade russófona - cerca de um quinto da população israelense, responsável por tornar o russo a terceira língua mais falada no país - que constitui importante conexão econômica e cultural com a Rússia. Em virtude de tais laços, atribui-se a Vladimir Putin a frase “Israel é um pouco a Rússia”, ilustrativa da ruptura com o pesado fardo antissemita/anti-israelense associado ao passado de seu país - tanto em sua encarnação tsarista, quanto soviética.

O bom relacionamento russo-israelense teve também desdobramentos em outras áreas. No campo econômico, Israel tem frequentemente figurado como segundo maior consumidor de hidrocarbonetos russos no Oriente Médio, atrás somente da Turquia. No campo político, houve tentativas de convergência em torno da narrativa da ameaça em comum do radicalismo islâmico. Traçando paralelos com a repressão sobre os palestinos, importantes políticos israelenses como Ariel Sharon e Avigdor Lieberman estiveram entre os poucos líderes estrangeiros que apoiaram o duro combate russo ao secessionismo na Chechênia muçulmana, enquadrado por Putin como manifestação do terrorismo islâmico transnacional. Mais recentemente, Israel não se alinhou às críticas dos EUA com respeito à anexação da Crimeia e não aderiu às sanções ocidentais contra a Rússia na esteira do conflito na Ucrânia. Por fim, a cordialidade entre os dois Estados teve reflexos também no campo militar: a indústria de drones russa desenvolveu-se com tecnologia israelense.

Tal quadro oferece um contraste gritante com aquele de hostilidade que prevaleceu durante a maior parte da Guerra Fria, alimentado principalmente pelo apoio de Moscou aos regimes árabes nacionalistas e à causa palestina contra o Estado sionista aliado dos EUA. As pretensões sionistas sobre a lealdade dos judeus soviéticos também constituíam uma fonte de tensão com a URSS. Na sequência da Guerra dos Seis Dias de 1967, os dois países romperam relações diplomáticas oficiais, o que duraria até o encerramento da Guerra Fria. Foi somente a partir da era Gorbachev, com o progressivo esvaziamento dos marcos ideológicos e geopolíticos que informaram a confrontação bipolar, que os dois países começaram a normalizar suas relações de modo a propiciar os bons laços descritos acima.

A proximidade entre Rússia e Israel, contudo, tem se desenvolvido à sombra de discordâncias a respeito de outros atores no Oriente Médio. A simpatia israelense com a postura russa no Cáucaso, por exemplo, nunca foi retribuída na mesma medida por Moscou, que não endossa o rótulo de terroristas atribuído por Israel ao Hamas e ao Hezbollah. Há anos, inclusive, a Rússia mantém contatos oficiais públicos com a organização palestina.

Outra histórica fonte de tensões entre os dois países é a cooperação russa com o Irã e a Síria. A Rússia é uma tradicional provedora de armamentos para os dois Estados tidos como maiores rivais de Israel no Oriente Médio. No caso iraniano, as desconfianças israelenses estendiam-se também à provisão de tecnologia nuclear civil. Com maior ou menor sucesso, Israel frequentemente tentou fazer com que a Rússia limitasse a venda de armas para seus dois adversários, assim como transferências destas para o Hezbollah, milícia libanesa aliada dos iranianos e de Assad. Na esteira da Guerra do Líbano de 2006, por exemplo, Israel criticou pesadamente a Rússia por sua suposta conivência com a aquisição pelo Hezbollah de armamentos originalmente destinados à Síria. Em outro caso famoso de divergências armamentistas, a Rússia, levando em conta os interesses israelenses, postergou por anos a entrega do sistema de defesa antiaérea S-300 ao Irã.

Esses desacordos ganharam uma nova dimensão a partir de 2011, com o amadurecimento do conflito na Síria. Então, Moscou passou a atuar como suporte vital para o acuado regime de Bashar al-Assad. Além do apoio financeiro e diplomático, a Rússia de Vladimir Putin elevou a provisão de armamentos para o governo sírio. Esta última questão tornou-se ainda mais sensível para Israel, pois contingentes armados do Irã (ou por ele sustentados) e do Hezbollah começaram a participar do esforço de guerra de Assad. Tal situação representou um duplo desafio para Israel. Em primeiro lugar, com a possível permanência duradoura dos iranianos e de seus aliados libaneses em uma Síria militarmente fortalecida pelos russos, o país vizinho poderia se transformar em uma poderosa “base” anti-israelense influenciada pelo Irã, podendo abrir um novo front na tradicionalmente calma fronteira das Colinas de Golã – estabilizada desde o armistício com a Síria na esteira da Guerra do Yom Kippur (1973). Em segundo, o Hezbollah poderia ter acesso a potentes armamentos russos (e iranianos) e levá-los para o Líbano, de onde, fortalecido, estaria em melhor posição para confrontar Israel.

Tendo em vista esses cenários, Israel buscou persuadir a Rússia a limitar o fluxo de armas para Assad e obter garantias de que o governante sírio não as repassaria para o Hezbollah. Para evitar o fortalecimento de seus adversários, além do diálogo diplomático, Israel também passou a usar a dimensão militar: sua força aérea começou a executar ataques contra alvos de seus rivais no território sírio, e o país proveu apoio material a grupos de oposição a Assad nas proximidades do Golã. Em 2013, a desistência russa em entregar o S-300 a Assad, recurso que tecnicamente dificultaria a capacidade israelense de executar as operações aéreas, foi atribuída ao respeito de Moscou pelos interesses de segurança de Israel.

A partir de setembro de 2015, com a entrada militar da Rússia no conflito da Síria em favor de Assad, o potencial de tensões com Israel chegou a um novo patamar. A conexão com o regime sírio, o Irã e o Hezbollah passou a ter ainda mais peso para a consecução dos objetivos de Moscou. Receoso dos custos políticos domésticos das baixas militares, Putin tem contado com a tríade para complementar em solo as ações predominantemente aéreas levadas a cabo pela Rússia. Nesse sentido, relatos dos bastidores dão conta de que a decisão pela intervenção militar se deu exatamente após consultas com o aiatolá Ali Khamenei e Qasem Soleimani, líder da força expedicionária Quds da Guarda Revolucionária Iraniana atuante na Síria. Em suas operações, a Rússia também chegou a utilizar uma base da força aérea do Irã.

Com vistas a acomodar os interesses de Israel, Netanyahu e Putin mantiveram contato no período imediatamente antecedente à intervenção russa. Poucos dias antes do início das operações, o primeiro-ministro israelense foi a Moscou reiterar a posição de seu país com respeito ao eixo Irã-Síria-Hezbollah. Do presidente russo, ouviu a condenação dos ataques a Israel, bem como garantias de que a Rússia continuaria a “agir com responsabilidade” na região. Significativamente, a visita de Netanyahu e sua comitiva resultou no encaminhamento dos chamados “canais de desconflito” similares aos existentes entre Rússia e EUA no território sírio. Com isso, os dois países estabeleceram mecanismos para evitar choques militares diretos em suas operações. Embora a intervenção russa tenha causado certos constrangimentos, os contatos militares permitiram a manutenção da margem de manobra de Israel, que continuou a atacar alvos relacionados a Irã, Hezbollah e Assad com um consentimento implícito do Kremlin.

Mediante crucial auxílio de seus três principais apoiadores externos, Assad tem progressivamente recuperado e estabilizado seu controle sobre porções cada vez maiores do território sírio. Nesse sentido, o ano de 2018 tem sido particularmente importante do ponto de vista israelense: após reconquistar, em abril, os últimos redutos oposicionistas nos arredores da capital Damasco, o regime sírio preparou-se para dirigir uma ofensiva sobre o sudoeste do país (províncias de Daraa e Quneitra), justamente a região vizinha das Colinas de Golã. Temendo o fortalecimento excessivo de seus adversários, o governo israelense reagiu lançando uma ofensiva midiática e diplomática, bem como uma nova rodada de ataques militares para sinalizar a seriedade de suas linhas vermelhas, especialmente no que diz respeito à atuação do Irã e do Hezbollah.

A Rússia tem sido um interlocutor crucial na consecução dos objetivos israelenses sobre a Síria. A nova negativa russa sobre a entrega do S-300 a Assad, na esteira do ataque contra o regime sírio feito por EUA, França e Reino Unido em abril, foi mais uma vez atribuída a considerações para com Israel. A partir desse período, também surgiram indicativos de que Moscou começou a conduzir uma mediação entre Israel e Irã na tentativa de acomodar os interesses de ambos quanto à Síria. Nas vésperas dos pesados ataques à infraestrutura militar iraniana em maio – conduzidos logo após a visita de Netanyahu a Moscou – a Rússia, notificada previamente por Israel, teria alertado as lideranças iranianas sobre os temores e intenções israelenses na Síria. Para aplacar as inseguranças de Israel, a bem sucedida ofensiva do regime sírio no sudoeste, executada com forte apoio aéreo russo, se deu somente após Moscou buscar o afastamento de unidades filiadas ao Irã e ao Hezbollah das operações. No fim de julho, na medida em que o encerramento dessas atividades militares se aproximava, Israel novamente buscou persuadir a Rússia a limitar a presença de forças (pró-)iranianas na Síria, que continua objeto de desacordo – tanto em virtude da relutância do Kremlin em sacrificar por completo a importante parceria com o Irã, quanto dos próprios limites de sua influência sobre esse país.

Mais do que as afinidades culturais e os laços econômicos, essa complexa acomodação entre Rússia e Israel pode ser explicada primariamente pela distribuição de poder no Oriente Médio. Do lado israelense, o bom relacionamento com os russos pode implicitamente complementar o papel exercido pelos EUA de Trump, seu principal aliado estratégico, no novo período de contenção que se desenha contra o Irã (e por extensão, seus aliados) na região. Afinal, a Rússia, com a significativa influência política que possui sobre o regime de Bashar-al Assad e o grande poderio militar à disposição para intervir na Síria, está em posição privilegiada para determinar, in loco, o destino do país - o que inclui discussões sobre a atuação de atores externos em seu território durante e após o conflito.

Já a Rússia interveio na guerra com dois fins principais. Um deles é conservar um regime amigável e, por conseguinte, sua capacidade de influência em uma região onde enxerga nexos com sua segurança doméstica (a referida questão do extremismo/terrorismo islâmico transnacional) e possui relevantes interesses econômicos (comércio e exploração de energia e venda de armamentos, dois setores em que possui alta competitividade em nível internacional). Relacionado ao primeiro, o segundo objetivo é o de afirmar seu status de paridade frente às potências ocidentais, em especial os EUA. Apresentando-se em contraposição a Washington e seus aliados, rotulados pelo Kremlin como responsáveis pelo caos no Oriente Médio, a Rússia de Putin, ao “resolver” o brutal conflito e “combater com eficácia” o que vê como extremismo/terrorismo em uma região instável e que atrai múltiplos interesses internacionais, confere credibilidade à narrativa de uma peça responsável, indispensável e incontornável em um mundo que caminha para a multipolaridade, e que por isso mesmo deve ter seus interesses devidamente respeitados.

A imagem de hábil conciliadora de interesses díspares, ilustrada pelas tentativas de mediação no conflito Israel x Irã, é também uma dimensão dessa narrativa. Do ponto de vista russo, a atração da inimizade de Israel, dono de uma das forças armadas mais poderosas do Oriente Médio, inviabilizaria em grande medida a consecução de seus objetivos. Nesse sentido, os numerosos ataques conduzidos ao longo do conflito sírio deixaram claras a seriedade e a disposição israelenses em resguardar seus interesses na região.

Até agora, a cooperação tem prevalecido sobre o conflito entre Rússia e Israel. Com Assad e seus aliados consolidando o controle do regime na Síria, resta saber se a cordialidade entre os dois lados continuará a se sobressair – em especial no que concerne ao arranjo pós-conflito no Oriente Médio.

Créditos da imagem: Aleksei Druzhinin (TASS).