Trump e as raízes do populismo conservador

Atacar as elites, sem ameaçar as lógicas centrais do sistema, é algo presente na política norte-americana há mais de um século. Como esta tradição foi gestada. Por que a globalização multiplica sua força. Quais são seus limites

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Atacar as elites, sem ameaçar as lógicas centrais do sistema, é algo presente na política norte-americana há mais de um século. Como esta tradição foi gestada. Por que a globalização multiplica sua força. Quais são seus limites

Por Reginaldo NasserWillian Moraes Roberto

O resultado das eleições presidenciais nos EUA trouxe espanto para o establishment do país, confiante na vitória de Hillary Clinton. A apreensão diante da vitória de Donald Trump também percorreu a rede global de aliados do país, da Europa ao Japão. Especulou-se sobre a possibilidade de que o sistema de segurança estadunidense poderá ser repactuado devido ao questionamento feito por Trump em relação ao papel da OTAN e de outras alianças militares.

Mas, o que de fato podem representar os votos dados a Donald Trump? Aparecendo, retoricamente, como o candidato anti-establishment, uma contraposição à elite política tradicional de Washington, o bilionário e apresentador de reality shows capitalizou sobre o amplo descrédito na política e na representatividade dos partidos, sobre percepções de perdas socioeconômicas advindas do processo de globalização, e sobre a impopularidade de Hillary Clinton. De acordo com a autora Naomi Klein, a candidata democrata representa a personificação da “classe de Davos”, em menção à cidade suíça onde ocorre o Fórum Econômico Mundial – uma rede hiper-conectada de banqueiros, bilionários dos setores tecnológicos e industriais, e líderes eleitos que estão amplamente integrados com tais interesses. Enquanto essa elite transnacional e globalizada enriqueceu-se enormemente, nos últimos vinte anos, com a expansão do neoliberalismo, a população estadunidense viu seu padrão de vida despencar em meio a uma estagnação real da renda familiar e dos salários.

O regime neoliberal e o advento da globalização, junto dos acordos de livre-comércio assinados pelos EUA, beneficiaram diversas empresas multinacionais que passaram a mover seus processos de produção para outros países em busca de menores salários e maiores incentivos tarifários. Wall Street e seus bancos aliaram-se ao processo, usufruindo de lucros extraordinários e de intensa desregulamentação financeira, enquanto, por outro lado, a manufatura doméstica entrava em declínio, impactando no nível de empregos e salários.

Apesar de construir uma polêmica candidatura conflagrada por escândalos de caráter misógino, racista e homofóbico, e mesmo sendo ele mesmo um bilionário, Trump conseguiu dialogar com essa parcela da população. Seu discurso serviu a uma classe trabalhadora branca, principalmente masculina, afetada pelos efeitos da globalização e que percebe o crescente aumento da desigualdade no país. Estados que compõem o chamado “Cinturão da Ferrugem” (Rust Belt) abraçaram o discurso de Trump contrário ao NAFTA, ao TPP e aos efeitos da globalização. Iowa, Ohio, Wisconsin e Pennsylvania há anos davam vitória aos democratas. Mas sua economia baseia-se na indústria pesada e na manufatura. Por isso, são declinantes e empobrcidos.

Ao mesmo tempo, a campanha de Trump mobilizou setores conservadores da população branca, sobretudo aquela rural ou de pequenas cidades, que acreditam numa suposta ameaça do multiculturalismo, principalmente de muçulmanos, e veem a imigração como uma fonte de roubo de seus empregos, principalmente latinos e mexicanos. Donald Trump soube, assim, explorar o medo, a insegurança e o sentimento de exploração e descrença política em um momento de incertezas globais.

Entretanto, apesar da mídia tradicional desenhar Donald Trump como um fenômeno meteórico e desconectado da história dos EUA, sua fala de campanha, embora na maioria das vezes expressar agressividade e propostas desconexas, é possível identificar elementos que dialogam com uma vertente populista existente desde o século XIX no país. John Judis, autor do novo livro “The Populist Explosion” (2016), clarifica questões acerca do termo populismo e sua aplicação na história dos EUA. Para o autor, é difícil conceitualizar tal termo devido ao fato de que não há um conjunto universal de características comum a todos os grupos e partidos colocados sob esse signo. Nos contextos específicos dos EUA e da Europa, entretanto, sob matizes à esquerda e à direita, o populismo seria uma espécie de lógica política, uma forma de pensar a ação dentro das regras do jogo em que se diferencia, de maneira geral, “o povo”, “nós”, de um “outro”, “eles”.

As variações à esquerda definiriam “o povo” contra a elite ou o establishment, em um tipo de política vertical das classes baixas e médias contra o topo. Já as variações à direita definiriam “o povo” contra uma elite que acusam de beneficiar a si mesma e um terceiro grupo, em geral minorias – no caso dos EUA, imigrantes, islâmicos e afro-americanos. Assim, o populismo à direita mobilizaria uma fatia populacional — o “povo”, nessa concepção — que se levantaria contra uma elite, ligada às grandes corporações e ao capital que os fazem enriquecer, mas também contra um grupo com mais dificuldades socioeconômicas, de classes mais baixas ou de culturas diferentes, que seriam sustentados, nessa visão, pelos impostos e pelo trabalho dessa classe média branca.

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Essa tradição populista conservadora iniciou-se nos EUA ainda no final do século XIX, com a fundação do Partido do Povo, em 1891, que postulava maior regulação por parte do Estado nas companhias ferroviárias, controle de preços, bem como limites na imigração e taxação de renda. De acordo com Judis, o Partido do Povo teria sido, nos EUA, o primeiro grande movimento contra a visão de mundo laissez-faire do capitalismo. Seu candidato à presidência, James B. Weaver, de Iowa, pleiteava a plataforma de “restaurar o governo da República de volta para as mãos do povo”. Segundo o autor, na medida em que suas ideias se expandiram, tendo influenciado o próprio New Deal de Franklin Roosevelt, o partido se extinguiu. No século XX, a vertente populista conservadora reemergiu nos partidos tradicionais, sobretudo na figura de George Wallace pelos Democratas ao longo dos anos 1960 e 1970. Tendo chegado a defender a segregação racial, afirmava que “nós estamos cansados do cidadão comum ser taxado até a morte enquanto multibilionários como os Rockefellers, os Mellons e os Carnegies não pagam impostos”.

Nos anos 1970, o sociólogo Donald Warren realizou um importante trabalho que identificou a existência de uma parte da sociedade norte-americana que denominou “Americanos Médios Radicais” (Middle American Radicals, MRA). Essa fração social, que representaria, à época, mais de 25% do eleitorado, se sentia alienada tanto dos Democratas quanto dos Republicanos, desprezando questões como direitos sociais e de minorias e controle de armas, mas reverenciando o antigo partido Democrata, sob Franklin Roosevelt, com sua ênfase na economia, empregos e segurança social. Eles também se sentiam espoliados tanto pela “elite plutocrática”, quanto pelas classes sociais mais baixas, que viam como sustentadas pela classe média e pelo Estado de bem-estar social.

Percebe-se, assim, que o discurso de Donald Trump não tem nada de inusitado e pode ser compreendido como algo que faz parte de uma tradição política nos EUA, com um diálogo claro com experiências passadas. O atual momento tem como diferença, de um lado, o fato de um candidato dessa plataforma ter conseguido chegar à Presidência da República e, de outro, o sucesso deste ter conseguido expandir sua base de apoio – o que está intimamente ligado aos efeitos do neoliberalismo, do crescimento da desigualdade, dos efeitos da globalização e da interligação do establishment político tradicional com a “classe transnacional de Davos”.

Entretanto, ainda que se possa identificar sua filiação política, agora que chegou à presidência, Trump ainda permanece como uma incógnita em termos do que realmente implementará como política. Não só suas propostas são confusas em diversas áreas, como também se faz necessário questionar até que ponto o novo líder eleito pode, segundo suas vontades, redefinir os rumos da maior potência mundial.

Vejamos o caso de Barack Obama. Ao ser eleito em 2008, prometeu uma mudança substancial na política externa estadunidense, mas se essa foi sua vontade, não foi capaz de controlar a estrutura do establishment político-industrial-militar do país. Os EUA venderam, entre 2009 e 2014, 190 bilhões de dólares em armas, mais do que sob qualquer governo desde a Segunda Guerra Mundial. Em relação a Israel, hoje os EUA oferecem o maior compromisso de assistência militar em termos absolutos de toda sua história: mais de 40 bilhões de dólares em um período de 10 anos, iniciando em 2018. Internamente, a militarização da polícia dos EUA também vem se aprofundado, a despeito das promessas em sentido contrário de Obama. Os anos de 2014 e 2015, por exemplo, testemunharam picos nas transferências de equipamentos militares para a polícia do país, em meio a uma escalada de tensões envolvendo questões raciais, como em Ferguson, em 2014. Aprofundou-se, assim, uma crescente militarização das cidades, que securitiza cada vez mais protestos e manifestações civis.

De qualquer forma, a postura de Trump, apesar de vaga, marca o discurso de que haverá mudanças – de que agora é “América primeiro”. Suas propostas aventadas para a área de política externa são igualmente polêmicas. Prometeu a construção de um muro na fronteira com o México para conter a imigração ilegal e a ser pago por esse país; sugeriu banir temporariamente a imigração de pessoas da religião islâmica que viessem de países subjetivamente considerados “problemáticos”; defendeu o uso de certas técnicas de tortura para interrogatório de suspeitos de terrorismo; prometeu rasgar o NAFTA, o TPP e o Acordo Climático de Paris e também retirar as tropas do país estacionadas em território de aliados, como em Estados da Europa e da Ásia, tendo inclusive sugerido que Japão e Coreia do Sul poderiam desenvolver armas nucleares para sua própria defesa.

Sobretudo, o mote de Trump parece ser uma rejeição ao intervencionismo liberal que marcou as presidências de Bill Clinton e Barack Obama, ou mesmo o intervencionismo de ocupação de George W. Bush no Oriente Médio. Taxado por ter uma visão “isolacionista”, é possível que a política externa de Trump tente não manter o tipo de engajamento internacional atual, mas sim remodelar a forma do internacionalismo do país – sem necessariamente se isolar. Cabe relembrar o período (1919-1933) na história dos EUA durante o entre-guerras, em que sua política externa foi chamada de “isolacionista” por ter se recusado a participar da Liga das Nações, mas que, na verdade, foi um momento em que o país expandiu suas ligações internacionais e esteve presente em diversas negociações na Ásia-Pacífico e em outras regiões do globo – apenas fora do circuito multilateral, dominado principalmente pela diplomacia europeia.

A questão, entretanto, é em que medida suas promessas poderão se tornar realidade diante das pressões dos grupos sociais organizados bem como dos poderosos lobbies do país. É preciso compreender que é um momento de divisão e disputa renhida entre elites políticas e econômicas nos EUA. Sua equipe de transição é composta por políticos conhecidos por suas funções lobistas em Washington – apesar de Trump ter denunciado tais práticas durante sua campanha. O bilionário conta com nomes como Michael Catanzaro, lobista para as empresas Koch, e Eric Ueland, anteriormente lobista republicano pela Goldman Sachs.

Por trás de sua retórica “antielitista” a eleição de Trump e a orientação de seu futuro governo podem estar revelando um ponto de inflexão na politica norte-americana. Se, desde os anos 1930, sociólogos e analistas têm chamado a atenção para o poder dos círculos corporativos na realização de seus próprios interesses sobre a maioria da sociedade, atualmente há uma complexa rede de conexões que impede com que haja uma proposta unificada dessa elite. As eventuais medidas protecionistas podem prejudicar alguns, mas deverão promover outros, resultando em composições politicas e econômicas bastante heterodoxas.

Assim, muito provavelmente, teremos mais um presidente dos EUA a cumprir a máxima do príncipe de Lampedusa: tudo deve mudar para que tudo fique como está.

Reginaldo Nasser é professor de Relações Internacionais da PUC(SP) e do Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP). Coordenador do GECI – Grupo de pesquisa em Conflitos Internacionais

Willian Moraes Roberto é mestrando do Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP) e pesquisador do GECI