Transição agroecológica: Enfrentando uma catástrofe sanitária

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"O Estado brasileiro é omisso na defesa do interesse público quando se trata de proteger os cidadãos do poder da indústria química. Assim, permitimos uma matança silenciosa, a cada refeição. E isso simplesmente não vem ao conhecimento público. Esse poder é calcado nos lucros estratosféricos proporcionados pelo envenenamento do povo, por meio da venda de agrotóxicos". Leia o artigo de Marcelino Galo Por Marcelino Galo* O Estado brasileiro é omisso na defesa do interesse público quando se trata de proteger os cidadãos do poder da indústria química. Assim, permitimos uma matança silenciosa, a cada refeição. E isso simplesmente não vem ao conhecimento público. Esse poder é calcado nos lucros estratosféricos proporcionados pelo envenenamento do povo, por meio da venda de agrotóxicos. Na literatura brasileira, um cachorro faminto no sertão, dorme e sonha com um lugar cheio de preás. No mercado mundial de venda de agrotóxicos, o Brasil é o paraíso. Somos a preá, a ser devorada pelo capital internacional em seu melhor sonho. E isso não é obra do Graciliano Ramos, mas a realidade nacional. O Brasil é o maior consumidor, importador, exportador e “contrabandeador” (descaminho) de agrotóxicos do planeta, e, até que se prove o contrário, de todo o universo. Entre 2000 e 2010 a quantidade de agrotóxicos por hectares no Brasil aumentou 155%. Cada brasileira e cada brasileiro consumiu 7,3 litros de agrotóxicos em 2014. Em 2010 eram 5,2 litros; e já era um escândalo, lembrou o engenheiro Alan Tygel ainda em 2015, e de lá para cá o consumo continua crescendo de forma desproporcional à safra, à produtividade, ou ao número de hectares plantados. Pense nesta perspectiva. A menos que se prove a existência de vida em outra galáxia ou planeta, somos os campeões universais do consumo de agrotóxicos. Você acha que esses dados não têm relação com a saúde de sua família? Então é bom você sair da Matrix. A dura realidade é que, ao final, caberá a você, que foi envenenado, arcar junto com o Sistema Único de Saúde, o tratamento de doenças como a infertilidade, impotência, abortos, malformações, problemas hormonais, efeitos sob o sistema imunológico, câncer e demais males associados aos agrotóxicos. Desta forma, a regulamentação dos agrotóxicos, por um lado, e a promoção de uma transição agroecológica, por outro, são assuntos que devem ser tratados com a gravidade que os fatos impõem, sob pena de sermos cúmplices de uma catástrofe sanitária que coloca a vida em risco, com seus efeitos toxicológicos e genéticos. A questão é complexa e deve ser vista à luz da ciência, preservando-se sempre o interesse público, garantindo a supremacia do interesse público sob o interesse privado. Trata-se de assunto multidisciplinar, multifacetado e envolve uma série de instituições e atores. Os agrotóxicos são, a um só tempo, um problema previdenciário, médico, econômico, tributário, ético, agrário e por aí vai. Por coordenar a Frente Parlamentar Ambientalista da Bahia pude ouvir a opinião e as propostas de pesquisadores das mais importantes instituições científicas do país. A opinião é consensual quanto à necessidade de promover a redução do consumo e modelos que permitam uma transição agroecológica. Assunto discutido, diagnóstico pronto, entendemos então os principais gargalos legais ou de gestão que atrapalhavam ou impediam a proteção ao meio ambiente e à saúde população diante dos agrotóxicos. Então apresentei quatro Projetos de Lei e duas Indicações para regulamentar aspectos diversos, que passam pela proibição de determinados princípios ativos, a exemplo do glifosato, a proibição da pulverização aérea, até questões como o direito à informação quanto à presença ou não de agrotóxicos, por meio de um selo informativo nas embalagens dos produtos. Isso sem contar a Indicação de políticas públicas, como o Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos, ou ainda o Programa Estadual de Redução do Uso de Agrotóxicos. Não se trata de proibir o uso. Mas de encarar de frente a comprovada necessidade de diminuir o consumo destes produtos. E reduzir os seus impactos. Ou seja, regulamentar melhor o assunto. Entretanto, a agenda agroecológica precisa estar conectada com a realidade fática e cotidiana das pessoas para que tenha chance de prevalecer sob a concepção poluidora (e suicida) do uso da terra e de sua propriedade. O Projeto de Lei 21.916/2016 institui a Política Estadual de Agroecologia e Produção Orgânica e tem como objetivo promover ações indutoras da transição agroecológica e da produção orgânica e de base agroecológica, orientando o desenvolvimento sustentável e a qualidade de vida das populações nas cidades e no campo, por meio da oferta e consumo de alimentos saudáveis, com preços justos e acessíveis a todos, e do uso sustentável dos recursos naturais. Essa proposição foi aprimorada ao acolher as contribuições discutidas em diversas reuniões de trabalho da Câmara Técnica de Agroecologia e Educação Ambiental da Secretaria de Desenvolvimento Rural, as contribuições das reuniões do GT de Combate aos Efeitos dos Agrotóxicos da Frente Parlamentar Ambientalista da Bahia e demais audiências em universidades e territórios de identidades. A junção dos interesses da grande indústria química, aliada ao agronegócio, desencadeia no atual sistema político a formação de poderosa bancada disposta a “barrar” qualquer iniciativa de regulamentar o uso dos agrotóxicos. Diante disso, somente o acesso à informação e um amplo debate que envolva de fato a sociedade pode forçar a aprovação e implementação de medidas legais e políticas públicas que protejam a população desta que é a mais silenciosa e escondida catástrofe sanitária de nossa história. * Marcelino Galo é engenheiro agrônomo, deputado estadual pelo PT e coordenador da Frente Parlamentar Ambientalista da Bahia Foto: Pensamento Verde