Exclusivo: advogada que atuou em cortes internacionais fala sobre acusações a Bolsonaro

Carolina Marossi, especialista em Direito Internacional que trabalhou com a promotoria do TPII, para a antiga Iugoslávia, explica caminhos à Haia, diz ser possível conduzi-lo até lá, mas pessoalmente não crê que isso vá acontecer

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A acusação de crimes contra a humanidade atribuída ao presidente Jair Bolsonaro no relatório final da CPI que apurou a conduta do governo federal durante a pandemia da Covid-19 acirrou os ânimos e acendeu a esperança de muitos brasileiros que se indignaram com o comportamento do mandatário brasileiro diante da tragédia sanitária que nos abateu desde o início de 2020.

Acabou sendo retirada do documento momentos antes da divulgação oficial a acusação de genocídio, mas no caso dos crimes contra a humanidade, sempre que mencionados, fazem com que boa parte da sociedade imagine o líder extremista e seus colaboradores sentados no banco dos réus. Mas não num banco qualquer: no banco do Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia, na Holanda.

No entanto, esse não é um caminho tão simples e, talvez, não tão plausível. A reportagem da Fórum entrevistou a advogada Ana Carolina Marossi Batista, mestre em Direito Internacional pela USP e em Crime Internacional e Justiça pela Università degli Studi di Torino, na Itália, e que já atuou como advogada associada na promotoria do Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia e no Tribunal Especial para o Líbano.

Carolina Marossi explicou de forma simplificada um tema tão complexo e transitou por alguns aspectos fundamentais do caso de Jair Bolsonaro, procurando esclarecer como funciona a jurisdição do TPI, como se configuram os crimes contra a humanidade e como seria o caminho até uma condenação do chefe do Executivo brasileiro, embora a advogada não acredite muito que essa hipótese possa se concretizar.

Fórum – O que são crimes contra a humanidade, como os que foram atribuídos nesta quarta-feira (20) ao presidente Jair Bolsonaro pelo relatório final da CPI?

Carolina Marossi – “É um crime bastante complexo, e é importante frisar que esse é um crime autônomo, ou seja, qualquer sujeito pode ser processado por esse crime, por uma conduta individual, por qualquer uma dessas alíneas previstas na lei, não é necessário que o indivíduo pratique tudo que está ali previsto. Além disso, para se caracterizar o crime contra a humanidade é necessário que essas condutas sejam direcionadas a uma população civil, e essa é uma exigência do Estatuto de Roma. Num segundo ponto, o agente, a pessoa que supostamente cometeu essas ações, precisa ter um dolo específico, uma intenção deliberada de causar qualquer uma dessas ações, e ao cometer essas ações ele precisa saber que essa conduta dele é ilícita. Diante disso, nota-se que há uma complexidade muito grande para a promotoria provar isso. O TPI exige da promotoria que os crimes sejam provados no que chamamos de ‘uma barra muito alta’, ou seja, sem sombra de dúvidas. O nível de provas pra você mostrar que aquela conduta se encaixa no cometimento de crimes contra a humanidade é muito complicado.”

Fórum – O Brasil é de fato signatário do Estatuto de Roma, que prevê juridicamente esses crimes? Estamos sob essa legislação?

Carolina Marossi – “O Brasil ratificou o tratado em julho de 2000 e foi incorporado no ordenamento pátrio, no ordenamento jurídico brasileiro, em 2004 pela Emenda Constitucional 45. A partir daí, o Brasil passou a reconhecer a jurisdição do Tribunal Penal Internacional. O que isso quer dizer na prática? Que um dos pré-requisitos para que um Estado seja membro do TPI é ele ceder, entre aspas, parte da sua soberania e basicamente reconhecer que aquela corte internacional tem autoridade e a competência para julgar todos aqueles crimes caso eles aconteçam. Quando o Estado passa a fazer parte disso ele passa a incorporar esse ordenamento internamente no país, por meio de normas constitucionais, de leis, até porque aquilo que está previsto não vai entrar em vigência automaticamente. A questão é que todo esse rol de crimes abarcados pelo TPI, inclusive os crimes contra a humanidade, eles são objeto de um projeto de lei que está parado há muitos anos no Congresso. Em tese, tecnicamente, pra ser bastante preciosista, estas normas ainda não estariam vigentes internamente. É óbvio que há uma discussão enorme no campo do Direito Internacional sobre se essa ratificação seria ou não necessária, e esse é um ponto importante a se considerar. Há quem entenda ainda que, por serem crimes de natureza grave, que afetam toda a comunidade internacional, essa ratificação interna pelos países não seria necessária.”

Fórum – Diante dessa acusação que surgiu no relatório final da CPI, de fato, Jair Bolsonaro seria processado aqui, ou numa corte internacional?

Carolina Marossi – “Por conta dessa tecnicalidade, por conta do projeto de lei não ter sido aprovado até hoje, na verdade não seria possível processar Jair Bolsonaro internamente, que seria um primeiro caminho, porque ainda que a legislação estivesse em vigência no Brasil, pra esse crime chegar à Haia, que é uma jurisdição suplementar, primeiro o estado teria que tentar resolver por aqui, internamente, e nos casos de judiciários de países que sejam considerados disfuncionais, que não tenham condições de julgar aquela causa ou não queiram analisar aquela causa, aí sim a jurisdição do Tribunal Penal Internacional poderia ser acionada. Enfim, é algo complexo e que tem uma série de pequenos detalhes que devem ser levados em consideração.”

Fórum – Seria uma opção julgá-lo aqui? Você crê nisso?

Carolina Marossi – “Ser analisado no Brasil? Nesse estado de coisas? Eu não vejo possibilidade... Ainda mais tendo o Aras (Augusto Aras, procurador-geral da República, visto por todos como um aliado de Bolsonaro). Penso que até poderia, se tivéssemos um outro PGR, em outras circunstâncias, e que fosse por esse caminho do Direito Internacional. Por ora, não vejo isso acontecendo.”

Fórum – A imprensa e a sociedade civil, em vias gerais, fazem muito estardalhaço quando se fala de denúncias contra Bolsonaro ao TPI. O que isso significa na verdade?

Carolina Marossi – “É muito comum a imprensa ficar no frisson aqui no Brasil quando se apresenta algum tipo de queixa, por parte de partidos políticos ou de entidades civis, ao TPI... ‘Olha, foi apresentado à Haia’... E não é nada disso. Fazendo uma analogia bem simplória, isso seria como se eu fosse a um distrito policial e prestasse queixa de alguma coisa. Essa é só uma das primeiras portas para que haja uma denúncia formal contra alguém para que a promotoria atue, só que o TPI recebe milhares de reclamações dessas de todos os cantos do mundo, contra várias pessoas.”

Fórum – Fora do âmbito judicial, o Brasil vem sendo prejudicado e maculado pela conduta do presidente Jair Bolsonaro?

Carolina Marossi – “Isso é horrível e é claro que fica uma pecha de criminoso, de uma pessoa má, de uma pessoa ruim. O Brasil está sob escrutínio internacional já faz bastante tempo, o Bolsonaro é motivo de preocupação de países que formam grandes democracias e da comunidade internacional como um todo, principalmente por conta da questão indígena, das questões que envolvem a Amazônia e todo o seu negacionismo das vacinas. Ele já considerado um pária e isso faz muito mal para a reputação do país. Para o protagonismo que nós tivemos em termos diplomáticos e de poder regional, na América Latina, já se perdeu tudo por conta do Bolsonaro.”

Fórum – Particularmente, como especialista nessa área e tendo trabalhado em dois tribunais internacionais, você crê numa condenação de Jair Bolsonaro por crimes contra a humanidade?

Carolina Marossi – “Alguns dos elementos desse crime (contra humanidade), que é um crime muito extenso, são condutas autônomas e sim, algumas dessas condutas, por parte dele na condução da pandemia, poderiam, a princípio, se caracterizarem como crime. O problema é se em termos de estratégia de persecução penal pela promotoria, se isso teria sucesso. É com relação a isso que acho muito complicado, por conta dessas necessidades que são adicionais desse crime, e não só as condutas. É muito difícil na promotoria, seja aqui no Brasil ou no âmbito internacional, é muito complicado você conseguir comprovar por A mais B que, além dessas condutas que ele praticou, ele teve de fato intenção de fazer aquilo e que além disso ele tinha certeza de que aquelas atitudes eram de fato ilícitas. Pode até parecer muito óbvio pra gente, mas não é exatamente assim. Creio que se fosse construir isso internacionalmente, o promotor precisaria se debruçar sobre essas milhares de peças do quebra-cabeça. Teria que pegar essas declarações, lives, enfim, tudo isso, para analisar e determinar que configurariam, em tese, provas. Mas como eu disse, a ‘barra’ de provas para se comprovar que houve uma pratica deliberada contra a população civil, praticada com dolo específico, tendo a consciência de que a conduta era ilícita, é ‘muito alta’... São duas coisas distintas: eu acredito que algumas das condutas para se configurar crime contra a humanidade estão presentes, mas eu acho que em termos de se comprovar isso judicialmente, gerando uma punição a ele, é bastante complicado.”