Exclusivo: série mostra o que pensam lideranças evangélicas que se opõem a Bolsonaro

Fórum traz a partir de hoje a série especial "Evangélicos Contra Bolsonaro", que entrevistará quatro destacadas figuras do segmento pentecostal brasileiro abertamente críticas à política extremista do presidente

Foto: Relevant Magazine (Reprodução/Edição de imagens)
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Desde a chegada de Jair Bolsonaro ao poder, há quase dois anos e meio, grande parte dos críticos e opositores do presidente extremista vê os segmentos evangélicos pentecostais e neopentecostais como seus maiores aliados. Na verdade, esta percepção tem início ainda no processo eleitoral de 2018.

É inegável que os grupos autodenominados cristãos, não só no Brasil e também não só nos dias atuais, majoritariamente são (e foram) vinculados a pautas e visões de mundo mais conservadoras. No entanto, de algumas décadas para cá, a abordagem excessivamente moral de alguns líderes destes grupos, em contradição com a ganância extravagante e o charlatanismo de parte deles, passou a ser questionada por fiéis e sacerdotes que professam valores diferentes daqueles que essas lideranças mais midiáticas nutrem.

Estes seguidores, avessos ao conservadorismo bufo, passam então a se orientar, segundo eles próprios, por uma fé que se aproxima da verdadeira consciência cristã e dos verdadeiros valores do Evangelho e de Jesus Cristo. Para compreender essa dinâmica, a Revista Fórum ouvirá nos próximos dias quatro lideranças evangélicas progressistas que se opõem frontalmente ao discurso extremista de Bolsonaro: os pastores Henrique Vieira, da Igreja Batista do Caminho, do Rio de Janeiro, e Zé Barbosa Jr, da Aliança de Igrejas Batistas do Brasil, atualmente em Campina Grande, e as pastoras Eliad Dias, da Igreja Metodista da Luz, de São Paulo, e Odja Barros, da Igreja Batista do Pinheiro, de Maceió.

Num movimento contrário, e de reação, as hostes mais radicais do neopentecostalismo passaram a se apegar cada vez mais a discursos e figuras igualmente radicais. Foi justamente aí que um entulho político ultrarreacionário como Jair Bolsonaro ganhou preferência neste grupo religioso.

Mas a coisa nem sempre foi assim.

Como foi a trajetória política dos evangélicos

Há pouco mais de 10 anos o setor evangélico sustentava boa parte dos votos e da aprovação dos governos progressistas do PT, sob a condução de Lula. A esquerda tinha boa penetração nessas camadas sociais com recortes religiosos, algo visto como resultado de seu trabalho de base e da proximidade que o partido mantinha com o povo das periferias.

Nos últimos anos, as demandas e a agenda política dos evangélicos sofreram mudanças. Uma face muito mais conservadora e moralista submergiu, embora seja necessário frisar que isso não vem ocorrendo de forma generalizada no grupo, que é muito diverso.

Aliás, todos os entrevistados da série "Evangélicos Contra Bolsonaro", sejam acadêmicos ou clérigos, foram unânimes em relação a esta constatação: o segmento evangélico é muito plural, acentuadamente diverso, diferentemente daquilo imaginado por quem não está familiarizado com o grupo.

Para a antropóloga Carly Barbosa Machado, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), que há 11 anos pesquisa o neopentecostalismo nas periferias urbanas, enxergar os evangélicos como um segmento social uniforme é um erro, já que esse grupo de brasileiros tem um perfil muito heterogêneo.

"O campo evangélico é um campo muito diverso. Ele não é muito diverso só porque têm progressistas e não progressistas. Ele é diverso em suas formas de organização, formas de institucionalidade. As denominações religiosas evangélicas são muito variadas, e não só pelos seus perfis teológicos, políticos, mas sobretudo por suas formas de organização. Há igrejas maiores, com expressão nacional, como a Igreja Universal do Reino de Deus, há igrejas locais, periféricas, fundadas por uma única pessoa e com uma membresia de 20 fiéis. Por isso é muito difícil falar de um campo tão diverso, como todo o campo religioso brasileiro", explica.

Questionada sobre como se deu o rito de entrada dos evangélicos na vida política, ela contextualiza cada etapa do movimento nessa direção, mostrando que sua influência foi crescendo paulatinamente e por meio de estratégias em diversas frentes.

"O que aconteceu nas últimas décadas foi um movimento de formação de um campo evangélico na política. Não só nas candidaturas. A princípio, essa relação entre evangélicos e política era mais tensa, delicada, porque inicialmente os protestantes se distanciavam mais do campo político. Com o passar do tempo, o que vem ocorrendo é uma organização dos evangélicos e uma articulação com a política formal e isso se dá tanto no poder Legislativo, como no poder Executivo. No Legislativo isso passa a ocorrer por meio de partidos e candidaturas evangélicas. Já no Executivo, isso é possível por meio de uma articulação nas mais variadas esferas... Municipal, estadual e federal", completa.

A professora Carly chama a atenção ainda para o fato de os evangélicos não serem a primeira denominação religiosa a promover uma relação aberta com o universo político, ainda que o tenham feito de uma maneira muito particular e ostensiva.

"É importante lembrar que a igreja católica já tem articulação com esses poderes políticos. Nós temos que tomar cuidado porque os evangélicos não entram na política sendo o primeiro grupo religioso. O que ocorre é que eles se organizam no campo político de uma forma diferente da igreja católica", compara.

Sobre a adesão dos neopentecostais à política formal e tradicional, a pesquisadora lembra que esse fenômeno começa a tomar forma nos anos de governo Lula (2003-2010) e que a integração, a princípio, era em grande parte à esquerda.

"Não dá pra dissociar esse processo de organização política dos evangélicos dos anos do governo Lula, do PT. Falo do reconhecimento dos atores evangélicos como atores políticos. A tentativa de aproximação com o campo evangélico, a formação de um governo, com a própria presença do Marcelo Crivella, se dá no início dos anos 2000, nos governos Lula", relembra Carly.

Já no segundo mandato da ex-presidente Dilma Rousseff, quando o movimento para removê-la tomou força, parte significativa desse grupo religioso passou a engrossar as fileiras de oposição ao PT e é aí que sua agenda começa a se voltar mais para pautas morais e de costumes, na visão da pesquisadora.

"A percepção de que esse campo é um campo político relevante se dá no governo Lula e por meio de outras pautas, com outra agenda. A inclinação para o campo conservador, eu interpreto, se dá sobretudo na crise do governo Dilma, que leva ao impeachment, visivelmente com pautas de ordem moral. São nesses anos, em torno do período do impeachment, que há essa migração do campo evangélico do, eu não diria do petismo, mas do governo em si, para novas negociações que começam a surgir, com parte desse grupo indo para o centro e outro para a direita."

Carly evidencia, então, que o caminho percorrido pelo atual presidente para ganhar apoio de grande parte dos evangélicos não foi abrupto e repentino.

"O movimento eleitoral de Jair Bolsonaro foi um movimento que conseguiu conquistar algumas dessas lideranças, gradativamente. Não foi um movimento rápido, maciço e nem fácil. Ainda assim, esse campo eleitoral foi sendo conquistado por esses atores."

Engana-se quem imagina que os 64 milhões de evangélicos que existem no Brasil (31% da população, segundo dados do Datafolha, de 2020) passam o dia remoendo pautas morais, apartados da realidade complexa do país. A pesquisadora Carly Barbosa afirma que esse grupo de nossa sociedade mantém pautas comuns, sobre condições de vida cotidianas, como qualquer outro perfil de eleitor brasileiro, ainda que esses aspectos morais tenham peso em muitas de suas escolhas. Ela ressalta também que essa abordagem de assuntos diversos é feita a partir de uma realidade muito própria.

“O campo evangélico vem discutindo políticas econômicas, políticas sociais e morais há alguns anos, nos seus próprios formatos, assim como na dinâmica de todos os grupos religiosos. A finalidade é construir a sua consciência política a partir da sua própria realidade e de seus espaços de organização. Evangélicos pensam como qualquer pessoa, são atores sociais competentes como qualquer outro indivíduo no campo político. O que eu poderia dizer é que, para o ambiente eleitoral, a pauta moral é sim muito forte”, reforça.

Por fim, a acadêmica da UFRRJ opina sobre o caminho a ser trilhado pelos setores evangélicos a partir dos resultados do governo extremista e ultraconservador de Jair Bolsonaro, reforçando a importância das lideranças progressistas pentecostais e neopentecostais nessa empreitada que objetivará uma mudança de opção nos eleitores do grupo.

“O que me parece que vai ser feito eleitoralmente daqui pra frente é um forte trabalho de oposição ao bolsonarismo, tanto fora quanto dentro das igrejas evangélicas. Por isso eu friso que é importantíssimo o papel de atores evangélicos progressistas buscando diálogos com os membros de duas igrejas e partindo de princípios teológicos e bíblicos para que só assim essa negociação possa ser feita”, finaliza.