Líder de associação evangélica é acusado de intolerância religiosa contra professor

Uziel Santana, que além de presidente licenciado da ANAJURE é docente na Universidade Federal de Sergipe, é acusado ainda de praticar lawfare para impedir a posse do professor Ilzver de Matos Oliveira na instituição

Uziel Santana (Reprodução)
Escrito en BRASIL el

Por Thiago Dhatt, especial para a Fórum

Nesta quinta-feira (19), uma Diligência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados irá a Sergipe e, ao que tudo indica, colocará gasolina na faísca.

A Universidade Federal de Sergipe tem vivido um imbróglio administrativo, no mínimo, constrangedor. O presidente licenciado da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE), Uziel Santana, que é docente da instituição, está sendo acusado de uso de recursos jurídicos e administrativos para impedir a posse de Ilzver de Matos Oliveira, professor aprovado em concurso público para professor no Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe (UFS), realizado em 2019.

Tudo começou no dia 24 de março, após a aposentadoria de um professor do Departamento de Direito da UFS. Segundo o Edital, ainda válido, o professor Doutor Ilzver de Matos Oliveira, primeiro da fila, deveria ser convocado à posse, e assim foi feito. No entanto, no dia 5 de abril, o professor de Ciências Contábeis, Uziel Santana, enviou requerimento ao setor de Recursos Humanos da universidade para manifestar interesse na remoção interna.

Do aspecto jurídico

Foram diversas as entidades e associações, muitas ligadas ao Direito, que manifestaram apoio ao professor Ilzver, elencando elementos jurídicos parar contestar a interrupção da convocação, dentre elas a Ordem dos Advogados do Brasil em Sergipe (OAB/SE) e a Associação Nacional de Advogados Negros (ANAN). A própria universidade, num primeiro momento após o recuso apresentado por Ilzver, no dia 26 de abril apresentou o parecer do Procurador Federal, Paulo Celso Rego Leo, em favor de Ilzver. Perecer que não tardou em ser “caçado” com unhas e dentes por Uziel.

Em linhas gerais, dentre os muitos argumentos em favor do professor Ilzver está a referência à Súmula 15, do Supremo Tribunal Federal (STF), estabelecendo, em resumo, que “do prazo de validade do concurso, o candidato aprovado tem o direito à nomeação”, além do fato de o concurso estar válido, mas prestes a expirar no mês de setembro, o que aumenta o incômodo acerca da protelação que a universidade vem adotando com a não-convocação do professor até o momento.

Também pesam aspectos administrativos e regimentais da UFS, como o que se refere ao Art. 5º de uma Resolução Interna (50/2015) preconizando que a remoção interna, tal qual reivindicada por Uziel, segue um caminho alheio ao que ele apresentou, como um Edital próprio “antes da abertura de novos concursos ou de aproveitamento de candidatos excedentes de concursos já homologados”, o que de fato, ocorreu no dia 28 de março de 2019, antes do concurso que apontou o professor Ilzver no horizonte da UFS, mas sem qualquer manifestação de interesse de Uziel naquele momento. Outra possibilidade admitida pela Resolução também prevê pedido de Edital a pedido da administração e demais Campi, coisa que não houve, não cabendo, portanto, ensejo individual, como acabou por ocorrer.

Outros fatores também colocam em desvantagem o pedido de Uziel, como a titularidade mínima para o preenchimento do cargo, que é a de Doutorado. Uziel tem apenas o Mestrado, ele pediu afastamento - com remuneração integral – da universidade para doutoramento desde 2008, apesar de haver Portaria do Reitor que fixou prazo para a finalização do seu doutoramento até dezembro de 2015, o que até agora não ocorreu.

O caso foi julgado, até agora, pelo Conselho Departamental de Direito que antes havia autorizado a convocação de Ilzver, mas “voltou atrás”, admitiu e votou pelo provimento do recurso de Uziel, apesar do parecer da Prof.ª Doutora em Direito Constitucional, Jussara Maria Moreno, ser totalmente favorável a Ilzver. Também foi votado no Centro de Ciências Sociais Aplicadas, cuja decisão do conselho é superior hierarquicamente ao Departamento de Direito, mas desta vez, não apenas o parecer do professor Doutor Sérgio Luiz Elias de Araújo foi favorável a Ilzver, como a decisão do Conselho seguiu este caminho.

Quem é Uziel

O professor Uziel Santana é presidente licenciado da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE), entidade ligada a Damares Alves (fundadora da Associação), ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo Jair Bolsonaro. Frequentemente a ANAJURE é vista nos noticiários dispondo de grande prestígio junto a Bolsonaro, inclusive a Associação é apontada como articuladora das nomeações do Procurador-Geral da República e evangélico, Augusto Aras, também, do Ministro da Educação e pastor presbiteriano, Milton Ribeiro.

Embora Uziel seja vinculado à UFS em regime de Dedicação Exclusiva, ele trabalhou como Secretário Parlamentar na Câmara dos Deputados, também 40 horas, para o Pastor Eli Borges (Solidariedade – TO) de 28/05/2020 a 13/12/2020 e também para o Pastor Roberto de Lucena (Podemos – SP) de 19/09/2019 a 27/05/2020, além de outros vínculos com o Governo Federal que constam no Portal da Transparência.

Recentemente, Uziel foi denunciado por 60 entidades no Ministério Público Federal por estar, supostamente, em situação irregular no quadro docente da instituição, uma vez que ele afastou-se para realização de doutorado em 2008, tendo como previsão para finalizar 2012, mas até agora não concluiu a capacitação. Além disso, segundo o relator do CCSA, o professor Sérgio Araújo, Uziel não ministra aulas há 10 anos no curso de Ciências Contábeis do Campus da UFS de Itabaiana. Segundo a Resolução n.º 24/2019/CONSU/UFS, em seu Art. 10, a universidade deveria exigir “o ressarcimento proporcional dos valores, devidamente corrigidos, correspondentes à remuneração do período de afastamento, bem como qualquer valor eventualmente custeado pela instituição ao servidor”, além do Art. 11 que defende o afastamento docente apenas “ao servidor que não esteja respondendo a processo disciplinar, e que esteja adimplente com as obrigações acadêmicas e/ou administrativas da Universidade Federal de Sergipe”. Nesse sentido, as atividades, para os deputados do Tocantins e São Paulo, poderiam estar em situação de irregularidade.

Uziel combateu com muita eloquência o Projeto de Lei 122/2006 que pretendia criminalizar a homofobia. Escreveu artigos como “Homofobia ou heterofobia?”, onde chamou o projeto de “flagrantemente inconstitucional” e escreveu trechos, no mínimo, questionáveis como “... conforme veremos, nos termos do Projeto, os heretossexuais é que passarão a ter medo do que pode acontecer com eles caso, por exemplo, insurgam-se contra um professor que, por ser homossexual, está ensinando na escola fundamental que o filhinho é livre para escolher ser homossexual ou heterossexual, independentemente da educação de seus pais” e “Onde vamos parar? Pois, nos termos em que estamos, o normal virou anormal e o anormal virou o normal”.

Uziel que, apesar de possuir fenótipo negro, se colocou na posição de branco durante a reunião do Centro de Ciências Sociais Aplicadas, quando quis refutar a tese de racismo apresentada por muitos Movimentos Sociais. “Não se trata de um branco tomando a vaga de um negro”, se defendeu. Agora o “branco” e “terrivelmente” evangélico, autor do texto que previa e condenava um professor homossexual, se depara com Ilzver, também pertencente às minorias questionadas por ele. Sobretudo ao trata-se de um candomblecista ou “macumbeiro demoníaco que mexe com magia-negra” como costumam julgar, pejorativamente e com total falta de conhecimento, muitos evangélicos do naipe de Uziel.

Você deve estar se perguntando: se juridicamente Uziel não se sustenta, por que ele insiste no processo e por que Ilzver não foi convocado até agora?

Lawfare

Lawfare é um termo muito usado no direito internacional que, em síntese, diz sobre o uso ou manipulação das leis/regimentos como um instrumento de combate/perseguição contra alguém, em detrimento dos procedimentos legais e os direitos do indivíduo que se pretende “eliminar”.

É preciso entender que, segundo as próprias palavras de Uziel, ele não estaria fazendo isso por interesse particular na busca pela vaga, pois a vaga em si não é o foco de seu desejo, mas “é pelo direito de qualquer servidor que queira participar de um Edital de remoção” ou “uma luta pelo Direito”. De acordo com Uziel, ele não tem interesse na vaga, como afirmou em alguns momentos da reunião: “Em nenhum momento eu pedi para que fosse um Edital para mim”, “nem sei se vou concorrer”, “nem sei se quero estar aí, nem sei se participarei desse Edital”. De acordo com Uziel, todo esse foco e energia seria em decorrência da defesa das “regras” do Direito. Ele ainda antecipou outros esforços que estariam em sua missão; “teremos o judiciário, teremos outras instâncias” e “já está, inclusive, preparado meu mandado de segurança sobre isso”.

Conforme levantamento feito pela assessoria da Diligência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, nos últimos 10 anos, o Departamento de Direito da UFS teve 9 processos seletivos por concurso (004/2009, 013/2009, 029/2009, 015/2010, 23/2010, 026/2013, 028/2014, 007/2017, 011/2019) e 2 por remoção interna (01/2017, 02/2019), mas em nenhum desses editais, que aprovou majoritariamente candidatos enquadrados no perfil cristão-cis-branco-hétero houve interesse ou contestação de Uziel. “Coincidentemente” o concurso escolhido foi o de Ilzver, candidato que, durante sua carreira acadêmica, se dedicou a estudar as religiões de matriz africana e questões raciais, como a política de cotas. Estudos que lhe rendeu destaque na militância nacional, além de vários prêmios, dentre eles, a honraria do Prêmio Direitos Humanos em 2018. Ele também preside a Comissão da Verdade da Escravidão Negra da OAB/SE.

É fato reconhecido pela Ciência que o preconceito e a intolerância podem se manifestar de diversas formas, ainda que não manifestadas verbalmente. Estamos predispostos a encarar preconceito quando ele é verbalizado, mas um ato de hostilizar um cidadão “maltrapilho” para que ele saia de um restaurante elitizado, por exemplo, ou exigir frequentadores de “boa aparência” em boates de São Paulo, pode revelar que privilegiamos cidadãos “bem-vestidos” ou mesmo considerar que alguém que se encaixe numa estética e padrões de beleza eurocêntrica, é que são “aceitáveis na balada”. São atitudes muitas vezes não faladas em frases como “saia macaco!” ou “você é feia para estar aqui”, mas a motivação de tais atitudes revela o caráter preconceituoso que regem tais ações. Para o Psicólogo e Psicanalista, autor do livro “A Voz: O Tempo da Verdade”, Thiago Ramos, “o uso instrumental da ignorância como ferramenta de poder político, institucional, ideológico e religioso, alude a uma suposta tentativa de deslocamento para a vítima a causa do problema”, ou seja, além da agressão que as vítimas sofrem, há ainda uma tentativa de culpa-las ou justificar as agressões. É como se o lugar de um “maltrapilho”, ainda que tivesse condições financeiras para pagar sua refeição, fosse do lado de fora de um restaurante que só aceitassem “bem-aventurados” ou que, sim, uma jovem “fora dos padrões estéticos” pudesse ser rejeitada na entrada da festa.

Duas dúvidas ainda pairam no ar, a primeira é: até onde estaria disposto a ir Uziel? São tantos recursos, tanta energia, tanto tempo e cabelos a menos, tudo por um “altruísmo jurídico”? Tudo por algo que ele afirma não fazer questão?

A segunda questão diz respeito à influência de Uziel. Após três pareceres favoráveis, a de um Procurador e dois professores, por que Ilzver ainda não foi convocado? Por que as estruturas da universidade se movimentam sombriamente onde não deveriam se quer cogitar uma movimentação? Que força é essa que opera à revelia do que pregam os regimentos e a Lei, dando fôlego a um processo infrutífero enquanto o prazo do concurso de Ilzver expira a menos de 1 mês?

Não sabemos se a próxima quinta-feira, quando a Diligência da CDHM estará reunida na UFS, nos trará respostas objetivas, mas certamente esperamos que a estabilidade das instituições e Leis continuem a prevalecer em nosso país.