Exército diz que treinamento que simulou alvos de esquerda não teve "conotação político-ideológica"

A Operação Mantiqueira, um treinamento de guerra feito em 2020, tinha como "inimigos" organizações fictícias com claras referências à esquerda, como "Partido dos Operários" e "Movimento de Luta pela Terra"

Registros da Operação Mantiqueira (Fotos: SD Pegado/Divulgação/Comando Militar do Leste)
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Para o Exército Brasileiro, não há conotação político-ideológica em adotar nomes com referências à esquerda em um treinamento de guerra.

O posicionamento incoerente consta em uma resposta ao deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP), que acionou o Exército, via Lei de Acesso à Informação (LAI), para obter estudos e pareceres que embasaram a Operação Mantiqueira, realizada em novembro de 2020.

O caso veio à tona a partir de reportagem do The Intercept Brasil publicada em dezembro do ano passado. Segundo a matéria, que obteve documentos das Forças Armadas, em novembro de 2020 foi realizada a Operação Mantiqueira, um treinamento do Curso de Forças Especiais que contou com a participação de cerca de 200 militares, incluindo 19 instruendos. O treinamento consistiu em uma simulação de guerra que tinha como inimigo fictício a esquerda. 

Há inúmeras referências, nos nomes, a organizações de esquerda e movimentos populares reais brasileiros, como, entre outras, o "Partido dos Operários", em uma clara referência ao Partido dos Trabalhadores (PT), e o "Movimento de Luta pela Terra", que emula o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Apesar da alusão óbvia, o Exército, na resposta enviada ao pedido de esclarecimentos de Ivan Valente, se limitou a dizer que as informações do treinamento "são meramente fictícias e serviram somente para contextualizar o Exercício de Operações Contra Forças Irregulares do Curso de Forças Especiais, sem nenhuma conotação político-ideológica nem de nacionalidade".

O serviço de informações do Exército argumentou, ainda, que "o exercício visa tão somente aos militares desenvolverem a capacidade em combater Forças Irregulares, de Insurgência, de Guerrilha e/ou grupos armados contra o Estado de Direito". Sem esclarecer, contudo, o motivo pelo qual foram adotados nomes com referências a organizações de esquerda para simular esses "grupos de guerrilha".

Os militares, ao justificarem o treinamento na resposta ao deputado, afirmaram ainda que a Operação Mantiqueira foi baseada na previsão constitucional do emprego das Forças Armadas "na defesa do Estado Democrático de Direito".

"O Exército respondeu a nosso requerimento de informação sobre Operação Mantiqueira, que simulava combates contra grupos de esquerda. Minimizaram, responderam estar em consonância com Estado Democrático de Direito. Absurdo! Por que não treinam com uma operação antifascista?", questionou Ivan Valente.

Entenda

O Exército Brasileiro, teoricamente responsável pela defesa do país, está sendo treinado para atacar movimentos de esquerda. Segundo documentos entregues ao repórter Rafael Moro Martins, do The Intercept, candidatos que participaram de uma simulação tinham como inimigo fictício “uma dissidência do Partido dos Operários”, o “PO”, que “recruta e treina militantes do MLT”, o “Movimento de Luta pela Terra”.

A Operação Mantiqueira, realizada em novembro de 2020 em Piquete, cidade no interior de São Paulo que é sede de uma das mais antigas unidades da Indústria de Material Bélico do Brasil, uma estatal vinculada ao Exército, teve a participação de cabos e soldados que eram alunos do Centro de Instrução de Operações Especiais, o CIOpEsp, localizado em Niterói, no Rio de Janeiro.

Essa foi a última atividade do curso que serve como vestibular para o ingresso nas Forças Especiais. Em 2020, segundo a fonte que entregou os documentos ao The Intercept – que preferiu não ser identificada -, de uma turma de quase 40 alunos, 17 foram aprovados para trabalhar no Batalhão de Forças Especiais, o BFEsp, sediado em Goiânia.

De acordo com o The Intercept, o texto que consta no exercício começa apresentando o “Exército de Libertação do Povo Brasaniano”, o ELPB, “criado a partir de um projeto de partido político de caráter marxista e com uma organização armada clandestina, nascido de uma dissidência do Partido dos Operários e que recruta e treina militantes do MLT” num país fictício chamado Brasânia.

As referências, óbvias, são ao Exército de Libertação Nacional da Colômbia, ao Partido dos Trabalhadores e ao MST.

“As cores do ELPB são defendidas em diversos tipos de protestos pelo país, logo o ELPB não é apenas um grupo criminal, mas um movimento que assume contornos de irregularidade com objetivos políticos”, prossegue o texto assinado pelo major Marcos Luís Firmino, oficial de inteligência do BPFesp.

Outro trecho traz uma referência à guerrilha do Araguaia, a última célula da resistência armada à ditadura militar, dizimada pelo Exército, e às jornadas de 2013.

“A primeira frente do EPLB se organizou em 2012, recrutada de diversos grupos de pressão insatisfeitos com a situação do país [e] infiltrando elementos violentos em diversos protestos. Esses grupos infiltrados em protestos causaram grande destruição em propriedades governamentais e privadas, estabelecendo um clima de desordem e ineficiência do aparato de segurança do estado”, afirma o texto.

Em seguida, o documento simula a criação de um canal semelhante ao Mídia Ninja, que ganhou notoriedade ao documentar os protestos contra reajustes nas tarifas do transporte público no Brasil e se tornou um veículo de mídia importante na esquerda.

“Cabe ressaltar que esses grupos têm utilizado canais da Deep Web e de mídias sociais para disseminar vídeos, imagens e outros produtos sobre as ações violentas executadas. Essa prática ficou conhecida como ‘Mídia Samurai’”, diz a parte que faz referência ao veículo.

Segundo o The Intercept, “também é difícil não notar a coincidência dos personagens fictícios com figuras reais. Pedro João Cavalero, criador das ELPB, e a deputada estadual Erica Ericsson, ‘expulsa do PO por portar-se de maneira extremada’, parecem menções a João Pedro Stédile, do MST, e Erica Malunguinho ou Erika Hilton, respectivamente a primeira mulher transexual eleita para a Assembleia Legislativa de São Paulo e primeira mulher trans eleita vereadora na capital paulista. Ambas são filiadas ao PSOL”.

O repórter afirma que entrou em contato com o Exército. Passadas mais de três semanas, as Forças Armadas informaram que não responderiam. “Em momento algum, porém, a força ou os oficiais da assessoria de imprensa – dois coronéis, um capitão e um tenente – com quem tratei sobre o pedido de informações desmentiram os documentos”, complementa Martins. Clique aqui para ler o texto na íntegra.