JESUS X MARX

“Guerra espiritual” invade o campus da maior universidade do país

Culto promovido pelo movimento evangélico Dunamis transformou a Praça do Relógio na USP em um palco de pregações, curas e discursos contra o “comunismo”

“Guerra espiritual” invade o campus da maior universidade do país.Jornal do Campus da USP, com a manchete Créditos: Reprodução / instagram @gabrielnamorato_
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Recentemente, a Praça do Relógio, um dos símbolos da Universidade de São Paulo, foi tomada por uma multidão de jovens que, com as mãos erguidas e lágrimas nos olhos, entoavam cânticos a Jesus. A cena poderia ter saído de um festival gospel, mas acontecia dentro da maior universidade pública do país, em pleno horário de aulas. O evento, organizado pelo Dunamis Movement, reuniu cerca de mil pessoas — segundo os organizadores — e marcou o chamado “encontro geral dos Pockets”, grupos de oração e evangelização universitária que se espalham por campi do Brasil e do exterior.

A música alta ecoava pelos prédios, o som atravessava o Conjunto Residencial da USP e chegava até a Faculdade de Arquitetura, a mais de 700 metros de distância. O público dançava, orava, chorava e testemunhava supostos milagres — entre eles, curas instantâneas de miopia, dores e até o “crescimento” de uma perna encurtada. No palco, o influencer e pregador Nick Moretti convocava os jovens para uma batalha espiritual: “Você está em guerra. Acho que você não entendeu, mas você está em guerra.”

Mas a guerra, ao que tudo indica, não era metafórica. Em meio a gritos de “A USP pertence ao Senhor Jesus Cristo!”, pregadores bradavam contra “falsos deuses” e até contra Karl Marx, acusado de “possuir” a universidade. Para o público do culto, a filosofia marxista — e por extensão o comunismo — seria uma ameaça direta à fé cristã.

O Dunamis Movement — nome derivado do grego dynamis, que significa “poder explosivo” — foi criado em 2008 pelo pastor Teo Hayashi, filho da pastora pentecostal Sarah Hayashi, da Igreja Monte Sião, em São Paulo. Embora se apresente como uma organização “paraeclesiástica”, isto é, sem vínculo direto com uma denominação, o grupo opera como uma empresa religiosa multifacetada: mantém editora, gravadora, marca de roupas, produtora de eventos e até uma faculdade própria.

A estética é moderna, importada do universo pop e empresarial. Seus eventos misturam pregação com estética de festival: luzes, telões e discursos motivacionais no estilo coaching espiritual. Os grupos universitários — chamados de Pockets (“bolsões”) — funcionam como células missionárias: hoje, segundo o movimento, estão presentes em quase 500 universidades de 14 países e reúnem semanalmente cerca de 10 mil jovens.

Essa roupagem “cool” é parte de uma estratégia de comunicação voltada à geração Z, que combina linguagem de games e festivais de música a um conteúdo teológico profundamente conservador. É o reacionarismo em versão descolada: orações em inglês, roupas de marca, discursos de “ocupação de territórios” e uma mensagem espiritual que se confunde com projeto político.

De Jerry Falwell a Teo Hayashi: a rota americana do evangelismo universitário

Teo Hayashi formou-se em Psicologia pela Liberty University, nos Estados Unidos — instituição fundada em 1971 pelo televangelista Jerry Falwell, um dos líderes da direita cristã norte-americana e defensor da “guerra cultural” contra o progressismo e o secularismo nas universidades. O objetivo declarado da Liberty era criar um espaço “livre da influência liberal” e formar líderes cristãos capazes de “reconquistar” a política, a cultura e a economia para Cristo.

É desse mesmo imaginário que brota o discurso do Dunamis. Após sua formação, Hayashi passou três anos no Havaí, preparando-se para evangelizar jovens universitários brasileiros. Hoje, o movimento que fundou se apresenta como uma “missão de avivamento global”, mas sua inspiração — tanto estética quanto ideológica — é claramente norte-americana: a teologia da guerra espiritual, que enxerga as instituições como territórios a serem “conquistados” pelo Reino de Deus.

Fé, campus e conflito

Na USP, essa lógica de “ocupação espiritual” colide frontalmente com a noção de universidade laica, plural e crítica. Quando se demoniza uma crença, pode haver indícios de crime de ódio, alerta Márcio Ponzilacqua, professor da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto. Segundo ele, a liberdade religiosa é garantida pela Constituição, mas não é absoluta: “A Universidade também é um espaço sagrado que precisa ser respeitado. É espaço público, mas não é ‘terra de ninguém’".

O episódio expõe uma fronteira cada vez mais tênue entre religião e política — e revela um novo tipo de militância cristã que vê na juventude universitária o campo de batalha por excelência. No entanto, o que se apresenta como “avivamento” pode também ser a tentativa de impor uma visão teocrática do mundo dentro de um espaço historicamente dedicado ao pensamento livre.

Enquanto o campus volta ao silêncio, a cena da Praça do Relógio ecoa como metáfora de um tempo em que até o saber se tornou campo de guerra espiritual. A batalha da USP talvez diga menos sobre o “fogo de Deus” e mais sobre o avanço de um projeto de poder que, sob o disfarce da fé, mira o coração das universidades — e da própria democracia brasileira.

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