A advogada e professora Soraia Mendes, primeira mulher negra eleita oradora oficial em 182 anos do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), denuncia que foi destituída do cargo por decisão unilateral da presidenta do órgão, Rita Cortez, em 6 de outubro deste ano. Soraia classificou a medida como “um ato autoritário que apaga a representatividade de mulheres negras e fere a democracia interna” da entidade fundada em 1843, antecessora da OAB.
“Minha voz, imagem e representatividade pertencem às mulheres negras que me antecederam e às que virão depois de mim”, declarou ela, indignada com o que considera um retrocesso histórico. A advogada protocolou um documento reafirmando compromisso com o cargo no mesmo dia em que tomou conhecimento da destituição.
Segundo ela, a principal motivação teria sido, entre outras razões, críticas que ela vinha fazendo ao genocídio praticado em Gaza por Israel, que culminou com uma espécie de veto a uma moção de repúdio ao sequestro pelo governo de Benjamin Netanyahu da flotilha humanitária que se dirigia ao território palestino, apresentada pela jurista e por outros integrantes do IAB.
As tensões entre a atual diretoria do IAB, descrita à Fórum por fontes internas como “muito conservadora”, e a jurista “progressista”, de acordo com as mesmas fontes, teriam começado meses antes. O primeiro embate ocorreu quando Soraia rejeitou, em plenário, uma moção de repúdio ao presidente Lula pelo desligamento do Brasil da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA). Com argumento técnico, ela teria sustentado que a IHRA não integra o sistema internacional de direitos humanos e, portanto, não justificava a medida simbólica proposta pela própria diretoria.
Depois, na sessão comemorativa dos 182 anos do IAB, Soraia classificou a guerra em Gaza como genocídio contra o povo palestino. A diretoria teria considerado a fala “intolerável”. Em suposta retaliação, segundo ela, teria então apagado imagens, discursos e o nome da oradora de vídeos institucionais, matérias e do site do IAB, inclusive de uma homenagem ao ministro aposentado do STF Ayres Britto.
Uma outra frente de conflito foi o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ. A diretoria queria apenas moção simbólica contra o PDL 89/2023, que tenta sustar o protocolo. Soraia, perita no caso Márcia Barbosa vs. Brasil, primeira condenação internacional do país por feminicídio, e coordenadora do comitê que levou o caso Maria da Penha à Comissão Interamericana, defendeu parecer técnico por considerar o projeto legislativo ilegal, inconstitucional e inconvencional. Cortez teria resistido, mas teria acabado acatando o parecer após “pressão interna”, atribuindo autoria a si própria, apesar de a proposta ser de outra integrante, conforme versão apresentada por Soraia.
A PEC da Blindagem, que blindaria autoridades de responsabilização, foi mais um ponto de atrito. Soraia teria proposto parecer crítico, mas Cortez teria retido a iniciativa sem debate até perder objeto. “Com o apagamento racial, a defesa do Protocolo de Gênero, a retenção da PEC e o bloqueio da flotilha, percebi que o ambiente se tornaria insustentável”, desabafou Soraia.
Ela continua integrante do IAB e promete medidas jurídicas no momento oportuno. “A atual diretoria não faz jus ao legado da Casa de Montezuma. Lutar por mulheres negras, democracia e direitos humanos é lutar pelo próprio IAB”, concluiu.
Presidenta do IAB dá versão muito diferente
A Fórum ouviu a presidenta do IAB, Rita Cortez, que garantiu que a própria Soraia teria renunciado à função de oradora oficial num diálogo travado pelo WhatsApp. A dirigente garante que a questão relacionada à moção de repúdio envolvendo a ação de Israel contra a flotilha humanitária não foi exatamente rejeitada.
De início, Rita enviou uma contranotificação que foi endereçada a Soraia, como resposta a uma notificação extrajudicial encaminhada por esta. O documento refuta as alegações da jurista que diz ter perdido o cargo por conta de uma suposta ação arbitrária, e elenca uma séria de imagens e transcrições que têm por intenção comprovar que a referida então oradora teria renunciado ao posto em questão.
Depois, a presidenta se manifestou em relação ao assunto e explicou que teria havido, sim, uma comunicação de renúncia ao cargo de oradora oficial e que apenas por conta disso o posto passou a ficar vago, entrando no mérito sobre o imbróglio referente ao caso da flotilha que ia rumo a Gaza.
“Foi ela quem renunciou ao cargo e isso foi num longo áudio, de mais de 20 minutos. Ela me disse e deixou claro que não se sentia mais confortável no posto pela tal história da moção sobre a flotilha, mas como já expliquei anteriormente, não houve uma rejeição da moção em sim, mas sim o fato de que nós rejeitamos a moção como elemento para criar uma indicativa de parecer... E por quê? Porque hoje há toda essa situação internacional, em que nela está incluída a questão da flotilha, e esse assunto foi para todas as comissões pertinentes, como a comissão de Direito Internacional, Comissão de Direito Constitucional, enfim, para que então se emitisse um parecer sob o ponto de vista jurídico da moção, até porque o IAB tem um perfil acadêmico, e não tem como agir a todo momento de uma forma panfletária... As coisas não são política, política, política o tempo todo, toda hora”, explicou Rita.
Segundo a dirigente, a motivação de Soraia e de outros integrantes de seu grupo, que segundo seria responsável pelos problemas que vêm surgindo ultimamente em relação ao IAB, teria “um caráter iminentenemte eleitoral”, já que a direção da entidade teria sido duramente disputada ao fim da última gestão.
“Houve uma disputa eleitoral no instituto, e isso é muito raro disso acontecer. Então, eu venci a eleição, não foi como habitualmente é, que é um processo natural sucessório, que é o normal no IAB. Então, houve uma disputa, e nessa disputa o grupo que perdeu, que vinha anunciando aos quatro cantos que iria ganhar, passa a agir assim...Me parece é que algumas dessas pessoas estão inconformadas com o resultado da eleição”, acrescentou ainda Rita Cortez.