A bancada desbancada

Eleitos com destaque, os parlamentares da Bancada da Bala têm uma espécie de crédito sombrio com a população. Ter em seus santinhos o logotipo da Rota significa ser principal referência quando o assunto é a segurança de uma sociedade ainda extremamente temerária

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Eleitos com destaque, os parlamentares da Bancada da Bala têm uma espécie de crédito sombrio com a população. Ter em seus santinhos o logotipo da Rota significa ser principal referência quando o assunto é a segurança de uma sociedade ainda extremamente temerária Por Felipe Neves Conte Lopes sobe na tribuna do plenário da Câmara Municipal de São Paulo para mais um discurso. Antes de falar, ele saúda os nobres pares que, nem sempre tão dispostos a ouvi-lo, tocam seus projetos em notebooks, falam ao telefone com assessores ou aproveitam o tempo para dar uma cochilada. Em poucos minutos, depois de alguns ajustes no cós da calça para abarcar a barriga avantajada, ele estará com o dedo indicador em riste, apregoando teorias sobre sua especialidade: a Polícia Militar. A cena já é regra há mais de um ano na rotina de pronunciamentos da Casa. Ex-capitão da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), batalhão da PM criado na década de 70 para agir energicamente no enfrentamento ao crime em São Paulo, Roberval Conte Lopes hoje faz parte da tríade de vereadores apelidada de “Bancada da Bala”, ao lado dos Coronéis Camilo e Paulo Telhada. Com avançado histórico político, ele já havia sido eleito por seis vezes deputado pelo estado antes de somar cerca de 140 mil votos com os novos companheiros da segurança pública em 2012. Lopes ainda ostenta duas importantes participações literárias no currículo. A primeira delas, um capítulo inteiro do livro Rota 66, de Caco Barcellos, sutilmente intitulado “Deputado Matador”. A outra, uma tentativa de mostrar sua própria versão da história. Em “Matar ou Morrer”, que ainda ganhou uma adaptação cinematográfica, ele figura como o herói que salva a cidade de sanguinários e inconsequentes bandidos, sempre com o poder infalível e incontestável de um calibre 38 e das emblemáticas Veraneios cinza chumbo. Eleitos com destaque, os parlamentares da Bancada da Bala têm uma espécie de crédito sombrio com a população. Ter em seus santinhos o logotipo da Rota significa, mais do que multiplicação de votos, tornar-se a principal referência quando o assunto é a segurança de uma sociedade ainda extremamente temerária. Levantando velhas bandeiras como “bandido bom é bandido morto”, “defesa do cidadão de bem” e proferindo discursos escatológicos que preveem um assassinato a cada esquina, eles legitimam sua versão de poderio estatal. E o fazem com os pés em duas instituições que ditam as ações desse poder. No atual gabinete de Telhada, por exemplo, é nítida a ambiguidade: atrás de sua mesa repleta de papéis relacionados à atividade legislativa, uma sinistra caveira com o nome da antiga corporação imprime a autoridade exercida no passado pelo vereador, oficial da reserva das Rondas Tobias de Aguiar. “A Rota ainda é o nosso Bope”, diz o jornalista Bruno Paes Manso, especialista no assunto. Ele é autor de uma extensa análise sobre a curva de homicídios em São Paulo entre a década de 60 e os anos 2000. Segundo o estudo, os assassinatos cometidos na cidade cresceram à taxa de 900% durante o período. Em sua pesquisa, Bruno, na procura por entender os principais agentes envolvidos com a explosão das estatísticas, identificou como cada um deles se relaciona com o assassinato. O homicida passional, por exemplo, foi e ainda é taxado como o “anormal” ou o “monstro”. Muito dessa caracterização se deve à abordagem de programas televisivos sensacionalistas, responsáveis por construir a figura desses criminosos e apresentá-la à sociedade como o único lado de suas personalidades. A análise também esbarrou no papel exercido pelos justiceiros, contratados exclusivamente para impor a ordem justamente através do crime. Matar um assaltante de bairro para proteger os comerciantes do local, por exemplo, era e ainda é uma ação legítima num território teoricamente sem lei. Por mais paradoxal que tenha sido sua atuação, eles encontravam respaldo por grande parte da população, da mídia e, sobretudo, tinham aval da polícia. O problema, no entanto, era o efeito dominó gerado por essa lógica. No auge do caos, uma morte desencadeava outras 150. “Você tem um processo de contágio. Brincar com violência é brincar com fogo. Quando você lida com o conflito recorrente de pessoas, você passa a considerar a possibilidade de matar. Vendo homicídios todos os dias, essa escolha passa a fazer parte da sua racionalidade. E a partir do momento que você mata, gera ciclos de vingança que sugam as pessoas”, afirma Manso. Apesar de ter uma visão clara do papel de justiceiros e homicidas nesse processo, ele não tem medo de incluir as arbitrariedades cometidas pela própria polícia em suas contas. E são esses os dados que nos ajudam a entender a cultura de segurança pública adotada pelo estado ainda hoje. “Quando os crimes começam a acontecer nas periferias, nos anos 70 e 80, a Rota vai patrulhar nesses locais com essa mentalidade de que o homicídio é uma forma de lidar com o crime. Essa crença é muito importante para entender o crescimento das mortes nesse período”, analisa o jornalista. Somente na década de 80, a PM matou 4 mil pessoas nas periferias. Somadas, as mortes ocorridas em revoltas populares durante toda a história brasileira não alcançam os números da corporação. Analisar esse formato de política pública também foi a preocupação de Caco Barcellos quando elaborou o dossiê de Rota 66. Mesmo debruçadas sobre as mortes causadas pela PM, que chegaram ao ápice nos anos 70 e 80, suas críticas ainda reverberam na análise que se faz atualmente corporação. A própria ONU sugeriu ao país que extinguisse o grupo. A simples citação de temas como esse, que geralmente culminam na questão da desmilitarização da polícia, causa arrepios nos vereadores da Bancada da Bala. “Quer desmilitarizar? Desmilitariza. Mas a gente vai poder fazer greve, parar de trabalhar. E aí não vai adiantar reclamar”, argumenta Coronel Telhada que, por mais bruto que possa parecer, tem lá seus toques de humanidade. Amante de música, ele arrisca notas no clarinete, instrumento que toca durante os cultos da Congregação Cristão do Brasil. Mas que ninguém abuse de sua vontade. Ai de quem ousar cantar temas como “banditismo por questão de classe”, de Chico Science, perto dele. Vai ouvir. O texto faz parte do 7° Curso Repórter do Futuro - Descobrir São Paulo, Descobrir-se Repórter Foto de capa: Divulgação/Alesp