Bolsonarismo, capitalismo tardio e corrupção

Bolsonaro é corrupto porque defende a tortura. Não há corrupção maior do que a tortura: a tortura é a experiência de violência mais covarde que a humanidade já produziu.

Foto: Antonio Augusto/Câmara dos Deputados
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Sou carioca e conheço Jair Bolsonaro desde os anos 1990. Ele sempre foi um parlamentar popular entre as pensionistas dos militares, aquelas senhoras (viúvas e filhas solteiras) que com suas gordas pensões, muitas vezes, sustentam três gerações da família. No calor da atual crise, Bolsonaro despontou como figura pública e ganhou um “ismo”. Nasceu assim o bolsonarismo como fenômeno político. Sempre tive muita cautela no trato com o bolsonarismo, buscando um meio caminho entre a histeria e a indiferença, preocupado, sobretudo, em não servir como caixa de ressonância para o grotesco. Bolsonaro jamais foi uma opção sólida e viável para a Presidência da República. O bolsonarismo nada mais é do que a atualização dos valores morais patriarcais, que durante vinte anos estavam no armário tucano, travestidos de PSDB, tendo o PT como o inimigo a ser batido. Com o colapso do sistema político e com a quebra do PSDB, essa direita patriarcal encontrou mecanismos próprios de expressão, mas ela sempre esteve por aí. Falar em uma “onda conservadora” sugere que esses valores não existiam, que antes o Brasil era progressista. Falar em uma “onda fascista” é um abuso do conceito que mais atrapalha do que ajuda na compreensão do bolsonarismo. O bolsonarismo é, portanto, a atualização dos valores patriarcais já conhecidos, que atravessam o imaginário político brasileiro há muito tempo. Como na última década o Brasil foi governado pelo campo progressista, formou-se uma geração que viu nessa direita patriarcal a possibilidade de “ser do contra”. Pros bolsokids, o bolsonarismo é isso: a possibilidade de chamar a atenção sendo do contra. Soma-se tudo isso ao fato de que, hoje, as forças mais dinâmicas do capitalismo são progressistas no plano do comportamento que chegaremos na inviabilidade eleitoral do bolsonarismo para cargos majoritários. Costumo chamar esse capitalismo “clean” de “capitalismo tardio”, termo que já foi usado por autores como Ernest Mendel e Jürgen Habermas, mas numa outra chave. O “capitalismo tardio”, tal como uso a ideia, pode ser representado pela “nova direita Globo News”: Maria Prata, Maria Beltrão, Arthur Xexéo e entre outros. No capitalismo tardio, o trabalho formal é definido como opressor, o empreendedorismo é cultuado e o Estado é visto como obstáculo à prosperidade individual. No capitalismo tardio, há espaço para mulheres, Gays. Não há espaço para pobres, que são os que necessitam da ação civilizatória do Estado. No capitalismo tardio, há espaço para os direitos das mulheres de terem controle sobre seu processo reprodutivo, para mulheres trans ocuparem posições de comando em grandes empresas e para casais homoafetivos terem reconhecida sua união civil. Nada disso é incompatível com a dinâmica de acumulação do capital. É claro que o caminho para o capitalismo tardio não é linear e nem imune a retrocessos, apesar de a marcha parecer sólida. Trump é o exemplo mais acabado desse retrocesso e não à toa os russos fizeram o que fizeram: o camarada Putin sabe que uma figura como Trump desestabiliza a dinâmica do capitalismo tardio. Enfim, o que tô querendo dizer é que o bolsonarismo é incompatível com o atual estágio da história do capitalismo. O bolsonarismo não interessa ao capital e por isso tá sendo destruído pelas próprias forças do capital, pela imprensa hegemônica. A imprensa hegemônica é a porta-voz do capital. E tá sendo destruído com uma facilidade impressionante, pois Bolsonaro nada mais é que um tio despreparado que teve algum sucesso num momento de histeria coletiva. Por outro lado, isso não quer dizer que não precisamos nos preocupar com o bolsonarismo, tampouco idealizá-lo como "resistência ao capitalismo tardio". Não, definitivamente não! O fato de nas eleições desse ano 13% dos votos forem dados a Bolsonaro (duvido que ele passe disso) já é um problema civilizacional gravíssimo, pois isso significará que 13% dos eleitores brasileiros estarão corrompidos. Pois sim, amigos e amigas: Bolsonaro é corrupto. E quando digo que ele é corrupto, não tô pensando nessas denúncias envolvendo o lance dos imóveis. Temos que ter cautela também nesse assunto, pra não endossar o moralismo do capitalismo tardio, que com uma narrativa cirúrgica e estratégica restringe o conceito “corrupção” à política e ao Estado. Como se o mercado não fosse corrupto, como se especulação financeira não fosse corrupção. Lembro de uma entrevista do Jânio Quadros, quando ele dizia: “O poder abre portas. Basta colocar um cigarro na boca que aparecem três isqueiros acesos”. É da natureza do poder abrir as portas. Ao que parece, os Bolsonaro fizeram uns negócios estranhos envolvendo quinze imóveis, que foram comprados bem abaixo do preço do mercado. É claro que essas denúncias precisam ser investigadas, mas, ao menos na minha escala moral, não é por isso que acho Bolsonaro corrupto. Bolsonaro é corrupto porque defende a tortura. Não há corrupção maior do que a tortura: a tortura é a experiência de violência mais covarde que a humanidade já produziu. Bolsonaro não respeita os direitos humanos, que representam no mundo civilizado a matriz de toda legislação. Toda lei, todo direito, têm os direitos humanos como premissa. O bolsonarismo é criminoso, é corrupto, porque é selvagem. Por isso, amigos e amigas, se for pra confrontar o Bolsonarismo (às vezes acho que o melhor é ignorar) não façam usando a matéria da Folha de São Paulo, usando o lance dos imóveis. Isso significaria fazer o jogo das forças mais poderosas do capitalismo tardio, que já tiraram nossos direitos trabalhistas e agora querem nos tirar a previdência. Precisamos ampliar o debate sobre corrupção, mostrar outras maneiras de tratar esse conceito. Confrontem os valores do Bolsonarismo. A corrupção, mesmo, está aí. A corrupção da alma. A corrupção do que significa ser humano.