Daniel Trevisan Samways: “Fahrenheit 451 e a destruição da memória”

Um museu é o espaço de preservar o melhor que a humanidade já foi capaz de produzir ao longo de milhares de anos. Solidariedade, união, cooperação e o esforço por uma sociedade mais justa e plural

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[caption id="attachment_139793" align="alignnone" width="700"] Foto: Reprodução/TouTube[/caption] Por Daniel Trevisan Samways*  No livro “Fahrenheit 451”, do escritor Ray Bradbury, a sociedade optou por queimar seus livros e esquecer sua memória, com o argumento de que aquilo traria infelicidade. Na narrativa, escrita em 1953, os bombeiros não mais apagavam incêndios, mas queimavam livros na temperatura de 451 graus fahrenheit. O personagem principal é o bombeiro Montag, que passa a questionar seu papel no mundo e tudo que o cerca, sua esposa e seu trabalho. A única pessoa com quem consegue manter um diálogo é com sua vizinha, Clarice. Sua esposa, assim como todo o restante da sociedade, é atormentada por um grande vazio, aplacado por boas doses de medicamentos e muito barulho. Em meio a isso, Montag começa a roubar livros em suas missões e encontra neles um rumo para sua vida. Deixo para leitores mais curiosos o fim da história no livro de Bradbury. Se o livro é uma metáfora do nascimento da televisão e do descaso com os livros, podemos dizer que o incêndio no Museu Nacional é uma metáfora de grandes proporções daquilo que se tornou o Brasil. Ruínas, cinzas, fumaça, tristeza. Tudo veio abaixo em questão de horas e milhões de itens simplesmente deixaram de existir. Parte da memória nacional e mundial estava naquele espaço. Fósseis milenares, cadernos de anotações, espécies e toda uma biblioteca. Tudo se desfez, queimando ao vivo para todo o país e com a perplexidade de quem ousou se torturar assistindo aquilo. Entre funcionários e diretores aterrorizados e desolados com anos de trabalho e materiais perdidos, políticos também vieram a público para defender o projeto do governo e colocar a culpa em governos anteriores. Não demorou nem 48 horas para que a culpa recaísse nas costas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), à qual o museu está vinculado, e do reitor Roberto Leher. Sobrou até para o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), partido que o reitor e alguns membros da reitoria são filiados. Se o filme de domingo foi uma verdadeira tragédia, com cenas de pânico e terror, o que se seguiu não foi diferente. Acusaram a UFRJ de ter rejeitado recursos com o Banco Mundial e uma doação de 80 milhões, o que já foi desmentido pela universidade e pelo próprio banco. O ministro da Cultura afirmou, para fechar o roteiro macabro, que o ideal seria entregar o museu para uma Organização Social e retirá-lo da universidade. Não vou tentar identificar um único culpado. O trágico acidente é fruto de anos de descaso com nosso patrimônio cultural, histórico e material. E ao que pesem todos os investimentos feitos pelas gestões petistas, o fato é que o Museu Nacional sempre viveu na penúria e isso precisa ser dito e relembrado. Mas também é fato que os dois anos da gestão Temer pioraram muito a situação de tudo aquilo que não se relacionava com os interesses do sistema financeiro, do agronegócio e do grande empresariado. Todo o restante padeceu de 2016 para cá. Analistas de primeira hora, saídos dos bancos de instituições e veículos liberais, correram para defender o fim da gestão pública desses espaços, afirmando que o melhor seria entregá-los para a iniciativa privada, pois ela administraria melhor. O país, o governo e o Estado brasileiro, não teriam condições de cuidar de sua própria memória, de sua própria cultura. Custaria caro demais. O que podemos esperar de um país que não preserva sua memória? O que vamos contar aos nossos filhos e netos? Nossa história é marcada por um processo de grande violência contra diferentes grupos étnicos e sociais, pela expropriação de territórios e demolição de residências e bairros inteiros, para que construtores erguessem templos da modernidade e do consumo. Um museu tem a função de nos lembrar disso, de recordar a violência que nos ronda, que está marcada em nossos corpos, em nossa cultura. Um museu guarda não apenas vestígios materiais, pode também conter fragmentos de idiomas que se perderam, faladas por grupos que sofreram o abuso do colonizador. Nossa história é atravessada de ponta a ponta pela violência. Um museu em chamas sempre é a metáfora perfeita de uma sociedade que almeja apagar seu passado, sua história. Esconder para baixo das cinzas ou fazer desaparecer como fumaça todo o processo de exclusão. Tentar apagar as tensões que nos marcam é buscar esconder que a riqueza de um pequeno grupo foi obtida com a exploração de muita gente, de muitos braços. Um museu não é apenas violência. É também cultura, alegria, vida. Também é o espaço de preservar o melhor que a humanidade já foi capaz de produzir ao longo de milhares de anos. Solidariedade, união, cooperação e o esforço por uma sociedade mais justa e plural. Que possamos, entre as cinzas e os cacos de nossa tristeza e da raiva, articular um movimento em defesa da cultura e da memória e resistir ao descaso que marca nossa sociedade. *Daniel Trevisan Samways é doutor em História e professor no Instituto Federal do Triângulo Mineiro (IFTM)