Em "Carta a Marielle", delegado expõe penúria da Polícia "em tempos difíceis de intervenção federal"

Em texto dirigido à vereadora do PSOL, delegado diz que policiais são submetidos a uma "Escolha de Sofia" para decidir quais casos serão elucidados ou não

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O delegado Breno Carnevale, lotado no setor de inteligência da Polícia Civil do Rio, descreveu em uma "Carta Para Marielle" as péssimas condições de trabalho da Polícia Civil do Rio de janeiro. Segundo Carnevale, os investigadores são obrigados a viver em uma diária "Escolha de Sofia" para decidir quais crimes terão prioridade para a elucidação. No desabafo publicado nesta quarta-feira no site do jornal O Globo, o delegado culpa o desinteresse das autoridades políticas do estado do Rio de Janeiro nas melhorias das condições de trabalho dos policiais. "Nunca presenciei deputados ou outros poderosos lutando por equipamentos que permitam encontrar evidências durante a perícia no Instituto Médico-Legal", diz Carnevale. Ele esmiuça a falta de condições para o trabalho de investigação policial. "As viaturas estão sucateadas e sem manutenção. A quantidade de investigadores é pífia diante do volume de vidas humanas ceifadas. As escutas telefônicas, quase uma caixa-preta, muitas vezes inacessíveis a alguns delegados. Algumas armas somem, outras não funcionam", detalhou o delegado. Em um trecho contundente da carta, dirigido a Marielle, ele cita o caso da vereadora assassinada no último dia 14 de março como uma evidência da "Escolha de Sofia" que os investigadores são submetidos. "Sinto muito em confessar-lhe que a solução de seu caso pressupõe a paralisação de uma infinidade de investigações de outras mortes, pretas e brancas, ricas e pobres, todas covardes. Escolha de Sofia." Ele encerra a carta em um "pedido de socorro" a Marielle. "Socorro por amor ao ser humano que sei que você, Marielle, ainda nutre onde quer que esteja, mesmo em tempos difíceis de intervenção funeral" Leia na íntegra a "Carta a Marielle" escrita pelo delegado Breno Carnevale "Marielle, durante quatro anos ininterruptos de minha vida estive diretamente envolvido em investigações de mortes violentas no Estado do Rio de Janeiro. Acumulo em meu coração ardentes cicatrizes que me fazem lembrar mães, pais, filhos, irmãos, maridos, esposas. Todos vitimados pela maldade humana. Foram muitas madrugadas sem repouso. Muitas lágrimas na penumbra da folga. Assisti a muitos sorrisos desmancharem-se diante da morte. Ouvi gargantas secarem de tantos gritos de dor ao verem de perto a fragilidade do ser e deixar de ser humano. Carregava em meus ombros a pesada esperança do sucesso das investigações, afinal, meu trabalho representava o horizonte pós-tempestade para as famílias aviltadas pela violência. Era pouco, mas era tudo. Não fui herói. Alguns casos foram solucionados, mas a maioria das investigações ainda segue o errante caminho entre Delegacia de Homicídios e Ministério Público, à espera de uma empoeirada prateleira de arquivo onde possa descansar em paz. Ali se abafam os gritos por justiça ecoados pelos parentes e amigos daqueles que passaram a ser apenas mais um nome impresso em uma guia de remoção de cadáver. Não precisamos de heróis. Mas escrevo-lhe a verdade, Marielle. Poucos se preocupam com as mortes diárias. São muitas as agruras das investigações policiais em homicídios no Rio de Janeiro. As viaturas, por exemplo, estão sucateadas e sem manutenção. A quantidade de investigadores é pífia diante do volume de vidas humanas ceifadas. As escutas telefônicas, quase uma caixa-preta, muitas vezes inacessíveis a alguns delegados. Algumas armas somem, outras não funcionam. Nunca presenciei deputados ou outros poderosos lutando por equipamentos que permitam encontrar evidências durante a perícia no Instituto Médico-Legal. Aliás, esse mesmo instituto não tem impressora para permitir que uma testemunha seja ouvida imediatamente quando vai liberar o corpo de seu ente querido. Sim, muitos veículos apreendidos ficam abandonados e sem qualquer vigilância. Ouse chamar atenção para este fato e a resposta será sempre a mesma: "É assim mesmo". E, mesmo assim alguns colegas ainda insistem em se apresentarem em impecáveis ternos e gravatas para bradar nos microfones que está tudo em ordem. Heróis? Diante do caos programado, sinto muito em confessar-lhe que a solução de seu caso pressupõe a paralisação de uma infinidade de investigações de outras mortes, pretas e brancas, ricas e pobres, todas covardes. Escolha de Sofia. Infelizmente não tive a oportunidade de contribuir para a elucidação de sua covarde morte, e me desculpo por isso. Me aprofundei sobre a árdua e interrompida missão que você com êxito cumpriu por aqui e não pude deixar de escrever-lhe para pedir socorro. Socorro pelas investigações das mortes violentas. Socorro por amor ao ser humano que sei que você, Marielle, ainda nutre onde quer que esteja, mesmo em tempos difíceis de intervenção funeral. Com respeito e afeto, Brenno Carnevale Nessimian".