EXCLUSIVO – Ex-ministro dos DH: “Não é palavra de ordem. O governo Bolsonaro é genocida”

Em entrevista à Fórum, Mário Mamede, ex-secretário Nacional dos Direitos Humanos, falou sobre o macabro caso da Prevent Senior, a responsabilidade dos médicos nisso e a contaminação da categoria pelo bolsonarismo

Imagem: YouTube (Reprodução)
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Mário Mamede Filho, médico e ex-ministro da Secretaria Nacional de Direitos Humanos da Presidência da República, falou com exclusividade à Fórum sobre o escândalo macabro envolvendo o plano de saúde Prevent Senior, acusado de fazer experimentos com medicamentos sem eficácia contra a Covid-19 em seus pacientes, além de outras práticas ilegais e desumanas num de seus hospitais, o Sancta Maggiore, em São Paulo.

Segundo os denunciantes, que eram médicos da operadora privada de saúde, tudo ocorria por alinhamento ideológico ao governo extremista de Jair Bolsonaro. O caso repercutiu nacionalmente, e até no exterior, depois da oitiva da advogada Bruna Morato na CPI do Genocídio. Ela representa os profissionais de saúde que trouxeram à tona as supostas barbaridades cometidas na empresa.

Formado em medicina pela Universidade Federal do Ceará em 1971, Mamede ocupou a pasta dos Direitos Humanos durante a gestão do ex-presidente Lula, entre 2005 e 2006.

Qual o papel da Conselho Federal de Medicina (CFM) nesse episódio da Prevent Senior?

“Não é só um silêncio obsequioso diante desses fatos e desses descalabros. Além de uma conivência, há uma conveniência nesse silêncio e há um relacionamento com o governo Bolsonaro que coloca o CFM como um parceiro, que passa a ser cúmplice de todo esse processo, que se agravou enormemente com essas denúncias e depoimentos trazido pela advogada Bruna Morato. Assume proporções muito assustadoras daquilo que está acontecendo na prestação de serviços de saúde por algumas empresas, e por alguns profissionais de saúde que não podem ser chamados de médicos. São pessoas formadas em medicina que enveredaram pelo caminho da desonra capitalista na prestação de serviços médicos e transformam o paciente numa mercadoria sobre a qual deve-se maximizar os lucros e minimizar os gastos. O que está acontecendo exige que um Conselho Federal, com seriedade e compromisso com a ética médica, e com a categoria, assim como com o respeito à sociedade, aja, algo diametralmente oposto ao que vem fazendo o CFM. Por isso nós pedimos em nota, assinada por quatro entidades médicas, que a direção do CFM renuncie, porque eles não têm mais condições de continuar à frente dessa instituição.”

O senhor acredita que o CFM tinha conhecimento disso tudo desde antes das denúncias se tornarem públicas?

“Na minha idade, com a minha trajetória de vida, com os cargos que ocupei e com o convívio com a prática médica e também na área de gestão eu não posso usar da irrealidade e achar que não havia uma parceria desde o começo, já que desde o início o CFM portou-se de maneira inaceitável manipulando o conceito de autonomia médica de maneira desavergonhada como manipulou também esses conselhos dados para o tal tratamento precoce. Entende-se por tratamento precoce o início de um tratamento, como o nome diz, em fase precoce em relação a uma hipótese diagnóstica, um procedimento terapêutico medicamento, ou outros recursos terapêuticos, para tratar de um paciente por meio de procedimentos instituídos, de forma que não se perca tempo iniciando um tratamento. Isso foi manipulado pelo CFM para justificar o tratamento com cloroquina, ivermectina, além de outras drogas, algumas das quais nocivas aos pacientes, porque não foram tomados sequer os cuidados mínimos que deveriam ter sido tomados na hora de se fazer uso desses fármacos.”

O conceito de autonomia médica é diferente dessa interpretação?

“O conceito de autonomia médica é um conceito ensinado desde o início da faculdade de medicina e refere-se ao direito do médico discernir em relação ao melhor caminho a se oferecer ao paciente. E esse caminho, ao ser escolhido, deve ser partilhado com o paciente, por respeito a ele, mostrando o que ele vai usar, por que vai usar, se tem risco de complicações, se tem efeitos colaterais, enfim. Tudo isso tem que ser dito ao paciente. A autonomia médica não permite que isso se transforme num ato de violência ou de desrespeito ao paciente, que também tem direito à sua autonomia. Por meio da manipulação desse conceito permitiram que o médico fizesse e prescrevesse o que bem entendesse, e isso significou prescrever cloroquina, ivermectina e fazer aplicação retal de ozônio para dar uma alta precoce. Quando eu vi que, aos pacientes que chegavam ao 10 dia de internação da Prevent Senior, era feita a diminuição do aporte de oxigênio, eu imediatamente pensei: isso é um crime! E não é permitido no Brasil. Vejam isso: havia uma orientação de se abreviar a vida do paciente sob a orientação de que ‘óbito é alta’. Isso é terrível, é horroroso, e o conselho (CFM) não poderia ter ficado na posição que ficou... Sendo parceiro, sendo tolerante, eu diria até sendo cúmplice.”

Essa veia reacionária de parte dos médicos e do próprio CFM é algo de agora ou já era possível perceber antes da chegada de Bolsonaro ao poder?

“Quando houve o Mais Médicos, o CFM fez algo absolutamente insuportável: ele fraudou a inscrição de médicos colocando nomes verdadeiros e registros de CRM falsos, para dificultar a localização desses profissionais interessados nas vagas. Isso bagunçou terrivelmente o início do programa Mais Médicos. A formação médica no nosso país ainda é muito elitista. O médico não se motiva a ir para territórios de difícil acesso, distantes, zonas que são muito pobres, comunidades carentes... Eles simplesmente não vão, mesmo se for uma coisa muito vantajosa. E a partir daí nasce uma narrativa falaciosa, edificadas em mentiras, dizendo que o governo Dilma estava contra os médicos, dizendo que ela queria desmoralizar os médicos brasileiros. Só depois disso tudo é que foi necessária aquela operação internacional, mediada pela OPAS, com o governo cubano, para trazer médicos cubanos, porque o programa dizia que poderiam ser médicos brasileiros residentes no país, médicos brasileiros residentes no exterior, médicos estrangeiros que possam aderir ao programa e isso não era algo estipulado do tipo “tem que ser médico cubano”. Só que a partir daí nasce essa coisa de caráter ideológico debaixo de um processo político extremamente pobre e reacionário, porque não há uma discussão, hoje, que possa permear essa relação entre aqueles médicos que tem esse comportamento e aqueles profissionais defendem um basta nessa relação com o governo Bolsonaro. É preciso deixar claro o que está havendo aqui: foi uma prática criminosa, utilizando uma plataforma terapêutica extremamente perversa com o usuário e a tentativa de alta rotatividade dos leitos.”

O CFM, hoje, é um órgão bolsonarista?

“Há fotografias do presidente do CFM com o Bolsonaro em eventos políticos de apoio ao presidente. É inaceitável isso, porque o presidente do conselho, sobretudo numa situação dessas, deve ter o cuidado de imagem e a isenção do órgão, no público e no privado.”

Marcelo Queiroga, atual ministro da Saúde, era um médico conceituado, foi presidente da Associação Brasileira de Cardiologia. O que houve para que o médico se sujeitasse a tudo isso?

“A natureza humana é muito complexa e quando a pessoa está no mundo político ela leva várias características positivas ou negativas para o exercício da prática política. Uma delas, e eu considero que precisa ser bastante medida, dosada, é a vaidade, a sede de poder. Uma outra é entender que na vida política você deve manter toda a sua coerência de pensamento, mesmo que isso possa trazer alguma contrariedade, algum tensionamento ou relação conflitiva com o superior hierárquico. Você não pode se adequar, se moldar a determinadas circunstâncias ou conveniências àquilo que o superior hierárquico que lhe nomeou para o cargo lhe impõe. A função pública tem como meta o bem-estar social, o bem-estar coletivo. Para um médico, o que lhe deve pautar é o compromisso absoluto com a vida, ditada por diretriz absolutamente inarredável. Para se estar no governo Bolsonaro, seja Mandetta, seja Queiroga, ou até mesmo com aquela passagem desastrosa do general Pazuello, que foi um boneco de pano, um bobo, tem que se adaptar à personalidade sociopata do Bolsonaro. Tem que se adequer e servir de capacho muitas vezes para o presidente ou ficar dando desculpa esfarrapada e disso destrói o conceito que qualquer um possa ter construído durante sua vida profissional. Se o Queiroga era um bom cardiologista, mas ele aceita ficar receitando cloroquina, fazer discurso dúbio sobre uso de máscara, de isolamento social, de vacina, como suspendendo a imunização de adolescentes... Todas essas atitudes reprováveis e inaceitáveis para depois ficar dando desculpas esfarrapadas é simplesmente indecente, é imoral. Aliás, o nome correto é esse: imoral. Ele deveria ter ficado onde sempre esteve, sabendo que cloroquina acarreta em complicações cardíacas, inclusive em óbito.”

E quanto ao campo dos Direitos Humanos do governo, que deveria estar atento a tudo isso? O que se passa?

“Veja essa escolha da Damares para a Secretaria Nacional de Direitos Humanos. Alguém no início me perguntou: ‘Mário, você que é da área de Direitos Humanos, e essa escolha, foi péssima, né?’. Então em sempre respondo: ‘péssima escolha para nós, para eles é ótima. Para a bandeira dos Direitos Humanos, essa senhora estar lá destruir tudo e avacalhar a Secretaria de Direitos Humanos é o que eles querem'. Esse governo não serve ao povo, não serve aos interesses maiores do povo brasileiro. Esse governo serve aos interesses de um grupo que se apossou do poder central para várias coisas, como enriquecimento, outras falcatruas e para todo tido de marmota, e isso ocorre por meio de um pensamento viés ideológico, esse pessoal está destruindo a estrutura do estado brasileiro, está reduzindo o país em tudo, do ponto de vista diplomático, de política internacional, enfim. A relação do Brasil com todos os outros países, aliados ou não, foi reduzida a patamares absurdamente rebaixados e isso é grave demais. Nós não temos mais como suportar e

Como um ex-ocupante da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, como o senhor avalia uma tragédia dessa dimensão, como no caso da pandemia e mais particularmente das acusações contra a Prevent Senior?

“Eu escrevi um artigo hoje e o encaminhei para o jornal O Povo, aqui do Ceará, para ser publicado, e eu vou reportar o que digo nele para você. Houve um campo de concentração chamado Ravensbrück, que foi uma prisão nazista só para mulheres e assim, eu fiquei muito assustando estudando sobre o assunto quando soube que a profissão que mais se filiou ao Partido Nazista e à SS foi a profissão médica. Isso é uma coisa assustadora e evidentemente muito preocupante. Após saber disso, lendo os registros históricos, principalmente sobre as experiências e experimentos mais macabros com as chamadas “coelhas”, que era o termo usado pelos nazistas para se referir às presas judias e não judias, que eram submetidas a procedimentos, enganadas, ou à força, com quem eram feitas as mais horríveis experiências médicas, mais macabras, que sempre resultavam ou em morte, ou em problemas graves que as acompanhariam pelo resto de suas vidas, com complicações, sequelas e tudo mais. Pois bem, esses fatos não são fatos isolados. Esse é o exemplo que o nazismo nos deixa e hoje os alemães fazem questão de nos mostrar, de nos lembrar, para que isso nunca mais seja esquecido e nunca mais se repita. Há um relatório da Anistia Internacional denunciando o acompanhamento de médicos, na América do Sul, e nós estamos na América do Sul, durante ditaduras, nas sessões nas quais ocorrem a prática de tortura e isso não é novidade pra ninguém. Há depoimentos de presos políticos, vários relatos, e isso está registrado na Comissão Nacional da Verdade. Sempre deve haver uma preocupação de que fatos assim não venham a se repetir. Eu digo tudo isso para lembrar que a responsabilidade médica é muito grande. Um médico não pode tergiversar e ele precisa manter-se o tempo todo sob o juramento hipocrático, que diz: “curar sempre que possível, aliviar quando necessário e consolar sempre”.

Como os médicos deveriam reagir a isso tudo?

“Ocorreram crimes, e crimes graves! E não são crimes comuns, são crimes contra a pessoa humana, crimes contra a humanidade, e essas pessoas não podem ficar impunes. Por outro lado, a categoria médica não pode ficar fazendo de conta que nada aconteceu. Nem dizer 'ah, isso aconteceu em São Paulo, ou em outro estado'... Que seja, isso aconteceu na nossa nação. Foram médicos brasileiros! E nós precisamos nos preocupar com isso, porque há um silêncio e um distanciamento da categoria médica na hora de se lidar com essa situação e isso não é tolerável. Alguma coisa terá que ser feita, seja à luz da ética, à luz dos Direitos Humanos, ou à luz dos princípios que devem reger a atuação médica.”

O governo Bolsonaro tem responsabilidade direta nessas violações aos Direitos Humanos?

“Nunca foi tão oportuno e tão correto adjetivar um governo, como é o caso do governo Bolsonaro, de governo genocida. Não é uma fala panfletária, não é palavra de ordem, não é uma adjetivação inconsequente. É uma adjetivação embasada numa prática criminosa e irresponsável que não se importa com a vida das pessoas.”