Juca Kfouri: tempo para virar o jogo

Em entrevista, jornalista critica a forma como os megaeventos esportivos têm sido conduzidos, mas vê nas manifestações de junho possibilidades para que novos rumos sejam tomados

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Jornalista critica a forma como os megaeventos esportivos têm sido conduzidos, mas vê nas manifestações de junho possibilidades para que novos rumos sejam tomados Por Glauco Faria e Igor Carvalho Esta matéria faz parte da edição 125 da revista Fórum. Nas bancas ou compre aqui Ex-militante da Ação Libertadora Nacional (ALN) durante parte da ditadura militar, o jornalista esportivo Juca Kfouri continua militando. Ainda que o ofício, em especial na TV aberta, tenha sido “contaminado” pelo que ele chama de “leifertização” (referência a Tiago Leifert, apresentador do Globo Esporte), que transforma a prática jornalística em entretenimento. Hoje, é um dos maiores críticos em relação à forma como se conduzem os processos de realização dos megaeventos esportivos no Brasil, mas vê esperança em uma virada de jogo após as manifestações de junho. Na entrevista a seguir, Kfouri fala sobre política, tema que está, em mais de um sentido, associado ao futebol e ao esporte no país, discute o legado da Copa e relembra o processo de criação da Timemania no governo Lula. Ele acredita que o ex-presidente teve oportunidade de mudar a relação do governo com os dirigentes esportivos, mas acabou não indo à frente. “Em nome da governabilidade e da realpolitik – e com esse Congresso – não existe estrutura para fazer o que precisa ser feito, mas no esporte poderia se fazer uma ruptura”, afirma. Confira trechos da entrevista abaixo. Fórum – Que tipo de legado a Copa do Mundo de 2014 vai deixar para o Brasil? Juca Kfouri – Acho que pode deixar um legado da festa do povo brasileiro, se festa houver. Não podemos comparar com a Copa das Confederações porque o mundo não vem para esse tipo de competição, vai depender da quantidade de turistas. Tem um livro que diz mais ou menos que uma Copa do Mundo deveria ser algo feito por um estadista que se principiasse por uma consulta ao povo. “Nós temos aqui R$ 50 bilhões para fazer uma Copa do Mundo, vocês topam? Vai ser uma baita festa durante um mês.” Os ingleses que escreveram esse livro – um é economista do Financial Times e o outro é colunista de esportes – dizem que é função do estadista fazer seu povo feliz; agora, você tem que conversar e propor. Já houve propostas deste tipo na Holanda e o povo não quis fazer. É preciso informar seu povo que vai custar tanto e dizer que para fazer esse evento deixaremos de investir em outros setores. Topam? O que é uma Copa do Mundo? É uma oportunidade que um país tem de fazer uma propaganda sua durante um mês, correndo um risco: fazer um mau anúncio. Vamos olhar para a história. A Alemanha fez um grande anúncio de si mesma, era o primeiro grande evento do país unificado, desmistificou-se aquela ideia do cinema americano sobre a Alemanha sombria. Ao contrário, foi uma baita festa, e eles tinham muito cuidado para não fazer festas nacionalistas... Vocês sabem, cachorro mordido de cobra tem medo de linguiça. Barcelona, Olimpíadas de 1992: foi uma grande propaganda, deixou uma grande cidade para o país e fortaleceu a Espanha pós-Franco. Já para Atenas foi um péssimo anúncio, e o mesmo para Montreal, que pagou por quase 30 anos a tal da taxa olímpica. Então, essa é a discussão. Sempre respondi que o Brasil pode receber a Copa do Mundo; se fez em 1950, por que não é capaz de fazer em 2014? Se a África do Sul fez, por que não podemos fazer? Nós podemos, mas podemos fazer a Copa do Mundo do Brasil, no Brasil. Não a Copa do Mundo da Ásia ou da Alemanha no Brasil. As prioridades deveriam ser os legados, novas estradas, nova rede hospitalar, nova rede de hotelaria, comunicação... Os estádios, esses deveriam ser reformados, não precisava fazer outros. Aí, as pessoas me perguntam: “Pô, mas você acha que o Maracanã era ideal para uma Copa do Mundo?” Não, não era, como o Mineirão e o Morumbi não eram. A questão é se precisamos de um estádio ideal para um evento de um mês que vai receber um ou dois jogos. Os estádios que temos são esses, tínhamos que dar uma “garibada” e não gastar a maior parte dos recursos com isso. Temos que lembrar que esses estádios “velhos” não têm ocupação plena no futebol daqui, a média de público do Campeonato Brasileiro é de 14 mil pessoas, mais baixa que a do campeonato de futebol dos EUA, que é de 19 mil, ou que a segunda divisão do campeonato alemão e inglês. Isso coloca em discussão uma afirmação que acho falsa, de que o “Brasil é o país do futebol”. As pesquisas mostram que não é bem assim, o primeiro contingente é de pessoas que não gostam de futebol, depois vem a torcida do Flamengo, e em terceiro a do Corinthians. Faça essa pesquisa na Argentina, o primeiro é de torcedores do Boca, depois do River, em terceiro vêm as pessoas que não se interessam por futebol. Teríamos que ter feito a nossa Copa aqui, não comer mortadela e arrotar caviar, isso não é bom para o Brasil. Na página 3, da Folha de S. Paulo, tão logo o Brasil foi oficializado como país sede, o senhor Ricardo Teixeira [ex-presidente da Confederação Brasileira de Futebol] afirmou que seria a “Copa da iniciativa privada” e que não entraria um tostão de dinheiro público. Não é o que o Tribunal de Contas da União (TCU) está mostrando. Minha restrição é essa, mais que isso, minha restrição é com essas pessoas que estão à testa da Copa do Mundo e que não nos dão um motivo para confiarmos que elas farão uma boa Copa do Mundo. Por quê? Pelas coisas mínimas demonstradas. Enquanto na França o presidente do Comitê Organizador Local (COL) era o senhor [Michel] Platini e na Alemanha era o senhor [Franz] Beckenbauer, no Brasil foi o Ricardo Teixeira e hoje é o [José Maria] Marin. Será que não temos um nome no futebol mundial que pudesse assumir essa função? A mesma coisa se dá nas Olimpíadas, pela primeira vez na história dos Jogos Olímpicos da era moderna, o presidente do Comitê Organizador e do Comitê local é o mesmo. Por que aqui é assim? Nós sabemos. Pega a Olimpíada novamente, quem está organizando é a mesma gente que fez o Pan-Americano, que foi um engodo, e que hoje é reconhecido assim, mas diz-se que “agora pagamos o preço do noviciado”. Poxa, as mesmas pessoas? O Brasil não tem porque fazer uma Olimpíada, não me venha com esse argumento, porque não temos uma política de esportes desde que fomos descobertos. Um evento como as Olimpíadas não é feito para iniciar uma cultura esportiva, mas sim para coroá-la. O Brasil não é capaz de fazer da prática de esportes nem um meio de prevenção em saúde, que é a primeira função do esporte e que está na Constituição brasileira. Essa meta que se estabeleceu, de ficarmos entre os dez primeiros é um absurdo, uma contradição enorme, porque vamos ver investimento em luta greco-romana, naturalizar esportistas de outros países, enfim, coisas que não têm nada a ver com nossas tradições esportivas. [caption id="attachment_29979" align="alignright" width="276"] "O que é uma Copa do Mundo? É uma oportunidade que um país tem de fazer uma propaganda sua durante um mês, correndo um risco: fazer um mau anúncio"[/caption] Fórum – Essas críticas aos megaeventos... Kfouri – A minha crítica é fruto de uma decepção. Fosse no governo do Fernando Henrique Cardoso, do Fernando Collor ou do Itamar Franco, e as coisas estivessem sendo conduzidas desta maneira, não me surpreenderia, porque esse é o modo de pensar dessa gente. Mas isso é diferente com o Lula, não vou falar da Dilma porque ela pegou o bonde andando, mas o Lula sabe muito bem o que isso significa. Sempre conto um episódio, de quando ele assinou generosamente o Estatuto do Torcedor. Generosamente porque foi aprovado no governo Fernando Henrique Cardoso, a única lei nos oito anos de Fernando Henrique aprovada por unanimidade, por acordo de lideranças. O Gilberto Carvalho me ligou aqui e perguntou: “Você vem para a cerimônia de assinatura da Lei?”. Recusei porque para mim o importante era a lei, e ele disse: “o presidente gostaria que você viesse”. Claro que fui. Ao chegar lá, um cara do cerimonial me pegou e colocou na primeira fila, contestei: “não, não, quero sentar lá no fundo, desde os tempos de escola sento no fundo, tem uma visão mais ampla”. Não teve jeito, fiquei na primeira fila. Não tinha um cartola importante na cerimônia, porque sabiam que aquela lei era contra eles, era enfiada goela abaixo deles. O Lula começou o discurso e disse: “Nunca mais vamos ouvir o jornalista Juca Kfouri dizer que no Brasil torcedor brasileiro é tratado como gado”. A plateia veio abaixo e eu não sabia onde enfiar a gravata. Bom, o Lula terminou o discurso dizendo: “a presença do jornalista Juca Kfouri aqui é uma homenagem aos jornalistas que esses anos todos tiveram credencial negada e que foram perseguidos por essa cartolagem malsã que nos infelicita há tantos anos.” Saí dessa cerimônia, com 52 anos de idade, às vésperas de me tornar avô, e esmurrava o ar dentro do táxi de felicidade e dizia: “ferraram-se”. Meu professor de sociologia na USP, Gabriel Cohn, dizia para não acreditar em sociólogo no Brasil que não tivesse os fundilhos da calça puídos pela arquibancada, e eu pensei “o Lula tem”. Eu o conhecia desde as greves do ABC, porque tinha sido designado pelo sindicato dos jornalistas para cobrir as greves. Achava que a cartolada estava ferrada. Seis meses depois, o Lula estava de braços dados com o Ricardo Teixeira fazendo o jogo pelo Haiti, que foi uma coisa bonita, mas ele se deixou seduzir de uma forma tal que até a Timemania fez para os caras. Bom, vamos colocar as coisas nos seus devidos lugares, o Brasil vai receber os dois maiores eventos esportivos do mundo, os dois maiores eventos da humanidade, graças ao único que usou sua língua nativa para ganhar os Jogos Olímpicos, e depois de Obama ter falado na cerimônia. E a nossa única diferença, dessa vez, era o Lula, quem trouxe foi ele, com seu poder de sedução. Qual é o meu temor? Que essa enorme vitória se torne uma enorme derrota. Fórum – Você chegou a conversar com o ex-presidente Lula depois? Kfouri – É chato falar essas coisas, nosso último encontro foi às vésperas da instituição da Timemania, no dia em que o jornal Valor Econômico fez cinco anos. O Lula veio até São Paulo e o Zé Dirceu pediu que eu e Sócrates fôssemos encontrar com ele na sede do Banco do Brasil. Tinha entendido que era uma conversa reservada, mas quando chegamos no saguão do Banco do Brasil tinha 60 jornalistas, que queriam saber o que eu faria lá com o Magro [Sócrates]. Sentamo-nos, Lula, o Zé, o Gilberto, Magro e eu. O presidente perguntou o que a gente achava, e disse: “Presidente, o senhor sabe, cansei de escrever, acho um absurdo que isso vire medida provisória e acho que o senhor está dando um presente para os caras que fizeram a dívida, está errado”. O Magro, ao meu lado, falou a mesma coisa. Aí, perguntou ao Gilberto Carvalho se ele havia prometido aos cartolas que seria por medida provisória, e o Gilberto disse: “prometer não prometeu, mas diversas vezes o Agnelo [Queiroz, então ministro do Esporte] falou disso e você não contestou”. Aí o Lula disse, nesses termos: “Não assino, nem fodendo, a medida provisória”. Aí o bocó aqui, muito leal, disse que o presidente criaria um problema com o Agnelo, que tinha marcado a assinatura da medida provisória para a quarta-feira seguinte com todos os cartolas, o que o Zé Dirceu confirmou. No meio da conversa, o Zé colocou o [Dias] Toffoli no viva-voz – ele, nessa época, era advogado geral da União – e perguntou qual a opinião dele. O Toffoli disse: “Não há cabimento, não tem porquê, essa medida provisória, não há o que justifique, isso tem que ser projeto de lei”. Muito bem, o Lula determinou, então, que seria projeto de lei. Ao sair da sala, perguntei ao Zé Dirceu o que eu deveria falar aos 60 jornalistas que estavam lá embaixo, e ele disse que eu deveria falar a verdade, que o presidente queria me ouvir sobre a Timemania, mas que não dissesse nada sobre a decisão. Assim foi feito. Segui para a TV Cultura, onde faria o Cartão Verde, e fui ouvindo a rádio CBN, onde eu trabalhava. Bom, aí escuto a notícia. “Presidente Lula e sua comitiva acabam de sair, após discutir com Juca Kfouri, e o presidente resolveu que a Timemania não será encaminhada por medida provisória, como tem anunciado o ministro Agnelo Queiroz, mas sim por projeto de lei”. Entrei ao vivo na rádio CBN dizendo o que vi, escrevi minha coluna para o Lance! dizendo que seria projeto de lei e abri o Cartão Verde dizendo isso. Estava em casa e meia-noite toca meu telefone, era o Mag, Marcos Augusto Gonçalves, editor do Lance!, me dizendo que no Jornal da Globo a Ana Paula Padrão havia anunciado para quarta-feira a assinatura da medida provisória da Timemania. Fiquei irritado e disse: “Tá bom, Mag, joga fora minha coluna. Passei boa parte da tarde com o presidente e o seu chefe da Casa Civil e ouvi isso deles. Se você acha que a Ana Paula tem a informação, então joga fora a coluna”. Aí ele ponderou e disse que a coluna seria mantida. Resultado, a medida provisória foi assinada na quarta-feira. Eu, então, fiz uma coluna: “Lula, o cartola”, dizendo que do mesmo jeito que o Edson Arantes costumava trair o Pelé, o Luiz Inácio da Silva traiu o Lula. Nunca mais nos falamos. Tempos depois, o Orlando Silva [ex-ministro do Esporte], a pedido do Lula, marcou um almoço comigo. Quando fez o convite, o Orlando mandou um recado do presidente: “Fala para o Juquinha que ele está muito esquerdista”. Falei “porra, Orlando, estou falando com um cara do PCdoB e eu que sou o esquerdista? Estamos fodidos” [risos]. Em bom português, digo para vocês que eu também desejava que o presidente Lula não tivesse feito os acordos que fez com os PMDBs da vida. Mas consigo entender, embora nosso papel seja de estilingue, ao me colocar no lugar do presidente do Brasil compreendo que, se não faço alguns tipos de acordo, não governo. Em nome da governabilidade e da realpolitik – e com esse Congresso –  não existe estrutura para fazer o que precisa ser feito, mas no esporte poderia se fazer uma ruptura. A população ia adorar, esses cartolas não podem ir no Maracanã ou no Morumbi, mas nem essa ruptura ele fez. A crítica que faço é à esquerda, e aí o rótulo de “esquerdista” que entendo que ele tenha dito. Hoje, temos uma relação civilizada, a mesma que tenho com o Aldo Rebelo, o único cara na vida para quem dei dinheiro, registrado no TRE, para a campanha a deputado, logo depois que ele presidiu brilhantemente a CPI da Bola. [caption id="attachment_29980" align="alignleft" width="300"] "Ninguém vai me dizer que o Morumbi, que serve o futebol mundial há 50 anos, não serve para um evento de um mês" (Estádio do Corinthians em Itaquera - http://www.flickr.com/photos/copagov/)[/caption] Fórum – O quanto você acha que esses megaeventos esportivos cooperaram para o que vimos nas ruas em junho? Kfouri – É claro que o estopim foi a passagem do ônibus e a violência da polícia em São Paulo, essas coisas objetivas. Agora, não tenho dúvida que na medida em que a população brasileira foi tomando conhecimento da suntuosidade megalomaníaca e faraônica dos estádios para a Copa das Confederações, começou-se a pedir saúde padrão Fifa, escola padrão Fifa e segurança padrão Fifa. Se somos capazes de fazer um estádio como o de Brasília para 60 mil pessoas, em um lugar onde não tem futebol, por que não fazemos escolas com esse dinheiro? Essa dúvida pingou no copo. Na abertura da Copa das Confederações, quem chegou cedo como eu, escutava as bombas explodirem do lado de fora do estádio. As pessoas que chegavam contando histórias escandalizadas de quem não está acostumado a ver confronto com polícia, diziam “está havendo um morticínio lá fora”. Já cobri, na carreira, uns dez megaeventos, e nunca vi nada parecido. A única coisa próxima foi uma manifestação do Solidariedade na Copa de 1982, na Espanha. A polícia, treinada ainda pelo franquismo, mesmo que já estivéssemos no pós-franquismo, desceu a lenha nos manifestantes, dentro do estádio. O Aldo [Rebelo] gosta de dizer que o país tem dimensões continentais e que não pode ser a Copa do Sudeste, mas começo por criticar a construção do estádio do Corinthians, pois o Morumbi tem condições de receber a Copa. Aliás, o Lula defendia que devia ser no Morumbi. Uma vez encontrei o José Serra, quando governador, e perguntei por que ele não informava ao [Joseph, presidente da Fifa] Blatter que a Copa do Mundo em São Paulo seria no Morumbi e pronto. E eu tinha certeza que a população ficaria ao lado do governador. Sabe o que ele respondeu? Que não, porque no dia seguinte o Estadão e a Folha de S. Paulo trariam editoriais contra ele. Cheguei em casa e brinquei com a minha mulher que não queria ser mais governador de São Paulo porque descobri que o governador vai dormir com medo da Folha e do Estadão. Fórum – As manifestações contribuíram para expor mais essa relação da Fifa com os governos? Houve uma entrevista do Blatter, para o Lance!, em que ele diz que não pediu para construir estádios, algo um pouco cínico... Kfouri – Vou fazer aqui o papel de advogado do diabo e pegar a questão por outro lado. A Fifa não convida ninguém para receber a Copa do Mundo, os países vão lá e se candidatam. É mais ou menos como se eu dissesse: “Glauco, eu quero dar a sua festa de casamento”, mas você pondera: “Olha Juca, prometi para a minha mulher que vai ser a melhor festa, com bebida cara, talher de prata”. Falo que quero bancar porque sou seu amigo. É isso que acontece, um país fala: “Quero receber sua festa, dona Fifa”, e a Fifa fala: “ó, tem que ter isso, tem que ter aquilo, tem que ter bebida alcoólica nos estádios, não vamos pagar um puto de impostos, quem comprar ingresso fora do país vai entrar sem passaporte, essas são as condições”. O que é combinado não é caro e nem barato, é combinado. Adoraria ver a implosão da Copa do Mundo, mas quando argumentam que estamos entregando nossa soberania, é um exagero. As mesmas condições que o Brasil aceitou foram aceitas por EUA e Alemanha. Vi na Alemanha manifestações do Partido Verde, porque a cerveja vendida no país da cerveja era esse “xixi de caveira” da Budweiser. Fórum – Faltou, então, capacidade de nossos governantes para negociar os termos do acordo? Kfouri – Não sei se vocês estão acompanhando, mas tem saído na imprensa alemã elogios e mais elogios ao que os brasileiros estão fazendo nas ruas, dizendo que nós estamos fazendo aquilo que eles, alemães, deviam ter feito. Cobri a Copa dos EUA em 1994 e não tinha um estádio novo, eram adaptados de futebol americano e beisebol, e estou falando do país mais rico do mundo. Na França, foi construído um estádio, nos subúrbios de Paris. Ali, fui cobrir o jogo do Brasil contra Noruega, em Marselha, no mesmo estádio em que a seleção havia jogado na Copa de 1938. Rigorosamente o mesmo, mudaram a louça do banheiro, tinha cabo de fibra ótica, mas era o mesmo estádio. Ninguém vai me dizer que o Morumbi, que serve o futebol mundial há 50 anos, não serve para um evento de um mês. Aí vão fazer um estádio em Itaquera, tá bom. Vamos acreditar que ali não tem dinheiro público, que o Corinthians vai pagar cada real, que não tem isenção... Vamos aceitar e fazer de conta que é assim. Diziam que seria um polo de progresso para aquela região desfavorecida. Vai lá ver. As pessoas estão sendo expulsas de suas casas, vai ver o progresso que o Engenhão levou para o Engenho de Dentro no Rio de Janeiro, vai ver o progresso que o Soccer City levou para Soweto em Johanesburgo. E o Estádio da Cidade de Cabo, o mais lindo que vi na vida? Foram expulsas de suas casas 4 mil pessoas, que hoje moram em uma periferia, num lugar que se chama “Cidade da lata”. Estão até hoje morando em contêineres, numa cidade onde faz 43 graus no verão e 3 no inverno. Então, essas coisas é que não aceito. Sob um governo popular, o que está se expulsando de gente, no Rio de Janeiro, e nas outras onze cidades que vão receber a Copa do Mundo... No Rio é mais grave ainda, porque tem Olimpíadas. Manu militari. Nós podíamos fazer de outro jeito. Com a nossa cara: nós somos esse país, com essas carências, somos afetuosos e estamos marchando na direção correta. Ó, o estádio é esse aqui, velho, mas veja ali o hospital que a gente fez, a escola que está sendo erguida ali... Esse é o Brasil. Ainda saindo do Terceiro Mundo, a sexta ou a sétima economia do mundo, mas ainda temos muitos problemas... Nós nunca escondemos isso, por que vamos esconder agora? E não vamos esconder. Infelizmente, por conta do Ricardo Teixeira, me tornei uma referência do que as pessoas identificam como o cara crítico e passei a ser procurado por argentinos, alemães, holandeses e outros, para dar entrevista, então preciso colocar um freio nesse povo, porque eles ficam me perguntando sobre o quão surpreendente é o povo brasileiro na rua. Para mim, é uma leitura errada que os intelectuais fazem, não somos mansos e cordeiros, eles não conhecem o Brasil. Qual outro país pôs um milhão de pessoas nas ruas pedindo eleições diretas? Em que outro país mais de um milhão foram à rua e derrubaram um presidente dois anos depois de ser eleito? Vai ver as lutas regionais que aconteceram nesse país. Que história é essa de que brasileiro é só festa e mulher de biquíni? Estereotiparam o brasileiro. [caption id="attachment_29985" align="alignright" width="300"] "Tem saído na imprensa alemã elogios e mais elogios ao que os brasileiros estão fazendo nas ruas, dizendo que nós estamos fazendo aquilo que eles, alemães, deviam ter feito" (Divulgação)[/caption] Fórum – Interessante, porque os comitês populares sobre a Copa, em relação à moradia, fazem manifestações há muito tempo, que inclusive não são divulgadas pela mídia tradicional... Kfouri – Vou te contar um episódio de Brasília só pra ilustrar. Eu, no blogue, desde sempre ponho a agenda deles, tal... sabendo dos limites. Estava em Brasília, a abertura [da Copa das Confederações] era no domingo, fui me credenciar e soube que só poderia pegar o ingresso para o jogo no sábado de manhã. Fui dar minha caminhada, porque sempre caminho, pus meu calção, camiseta e fui para o estádio, já com minha credencial, para pegar meu bilhete. Estou caminhando em direção ao estádio e começa a vir aquela fumaça negra. “O que é isso que está acontecendo lá perto do estádio?” Eu sabia que haveria manifestação dos trabalhadores sem teto, tinha anunciado no blogue, mas havia esquecido. Na tarde desse dia, ouço o secretário da Segurança do Distrito Federal dizendo que tinham sido pegos de surpresa pela manifestação. Em seguida, entra um cara da Abin dizendo “o secretário de segurança faltou com a verdade, porque nós alertamos que era possível que houvesse alguma manifestação às vésperas da abertura”. Era possível, não... estava agendado, estava no blogue. Desde a semana anterior. O movimento nunca tinha feito nada em segredo, não foi um ato relâmpago, um ato de guerrilha. Foi uma coisa marcada. Então, outro dia entrevistei, no meu programa da ESPN, o Vladimir Safatle, que disse o seguinte: “de fato houve um hiato nesses 20 anos, digamos, mais contido de manifestações no Brasil. Mas, se você olhar, houve manifestações de todo tipo espalhadas pelo Brasil afora nesses últimos anos”. De todo tipo, quer dizer, desde as questões de direitos civis, casamento igualitário, contra a homofobia, contra o racismo... Qual categoria profissional não fez greve no Brasil nesses últimos 20 anos? Não há. Então, isso tudo, vai somando, vai somando. Não quero dizer com isso que não tenha sido uma surpresa. Foi. Mas era uma decorrência meio natural. Precisava de um estopim ou de uma gota d’água. Acho que ambos se deram. Essa elite política brasileira não tem o hábito de ouvir a população, a não ser em época de eleição. Fórum –  Em relação a uma declaração sua, na qual disse que ou o Ronaldo se faz de bobo ou ele é limitado. Já descobriu a resposta? E como enxerga o papel do Ronaldo e do Romário nesse processo da Copa do Mundo? Kfouri – O Ronaldo é limitado. Daquela limitação bem esperta, que o favorece muito. Uma coisa é ele dizer que se não estivéssemos gastando em estádio, não estaríamos necessariamente gastando em hospitais. Ok, mas, olha, dizer que não se faz Copa do Mundo com hospitais é de uma insensibilidade atroz. O resultado disso está colhendo, ele não podia sair na rua em Salvador, e não é porque iam pedir autógrafo, mas porque iam bater nele. Fórum – Você foi amigo do Joaquim Câmara Ferreira [jornalista e militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), foi morto em 1970 após ser preso e levado para o sítio clandestino do delegado do Dops paulista Sérgio Fleury]. É verdade que você quase entrou para a luta armada durante a ditadura? Kfouri – Eu era do chamado grupo de apoio da ALN, ajudava a fazer documentação para as pessoas saírem do Brasil, levava gente pra fronteira, fiz algumas pessoas saírem do Brasil, talvez a mais conhecida seja o Carlos Knapp, eu dirigia em algumas situações pro Velho, levava ele pros pontos. Quando entrei pra faculdade, fui liberado do exército por excesso de contingente, e falei pra ele, feliz, que respondeu: “não, precisamos de você, vai lá no CPOR e se alista como voluntário. Na infantaria, nada de cavalaria, de arma de burguês, precisa aprender a fazer guerrilha, andar na selva...”. Eu fui. Já estava na faculdade, menti na inscrição do CPOR e disse que fazia Economia na USP, achava que não ia entrar se falasse que fazia Ciências Sociais. No ano seguinte fiz aqueles testes físicos todos, foi a única vez na minha vida que consegui subir em pau de sebo, corda, e olha que jogava basquete. Cortei cabelo, tirei medida da farda... E surge o convite de trabalhar na Editora Abril, no Dedoc. Veja, eu namorava, desde os 15 anos, com a mulher com quem me casei aos 20, emancipado pelo meu pai. Estava na ALN, queria ter meu próprio aparelho, morava com meus pais e meus irmãos, e meu pai era procurador de Justiça. O medo enorme que eu tinha era de um dia cair e expor meu pai a isso tudo. Fui convidado para trabalhar na Abril, que tinha algo indiscutível, o Paulo Francis sempre falava isso, foi a primeira empresa no Brasil que permitiu aos seus jornalistas ter um emprego só, não era bico. Tinha 20 anos, recebi um convite para trabalhar no Dedoc e atender a Placar, que estava nascendo, em dinheiro de hoje, pra começar, seria algo em torno de R$ 5 mil. Hoje, vê se alguém começa ganhando isso na Folha, na Globo... Não tem. Fui falar com ele. O Marighella já tinha sido morto, o meu guru, que tinha me introduzido na ALN, o Norberto Nehring também; e fui conversar com ele, que me disse uma frase que minha vida inteira procurei, mas ele mentiu pra mim, me enganou (risos). Disse: “você procura nas obras do jovem Marx, na Ideologia Alemã, e tem lá a frase ‘não queira resolver os problemas do mundo antes de resolver os seus’. Te libero”. E aí comecei a ter um trabalho enorme para sair do CPOR e saí por uma dessas coisas bem brasileiras. Meu avô paterno era amigo do seu Bittar, gerente da Antarctica em São Paulo, que fornecia guaraná e cerveja de graça para o comando do 2º Exército. E me conseguiu tirar do exército. Não é que ele [Joaquim Câmara] evitou que eu fosse para a luta armada. Evitou que eu morresse. A ALN estava sendo dizimada, ele morreu logo depois. Acho que sabia, deve ter olhado e pensou “não vou sacrificar mais um. Moleque, vai tocar sua vida”. Ele morreu e perdi todos os contatos que tinha na ALN e, em seguida, entrei pro Partidão. Sou eternamente grato a ele, sou muito amigo da neta dele. Fórum –  Falando em jornalismo esportivo, você acha que ele cumpre um papel efetivo hoje no Brasil? Kfouri – Não existe um jornalismo esportivo, existem diversos. O jornalismo esportivo que você vê na TV aberta é um escândalo, a leifertização, o palhaçamento da cobertura esportiva, que é uma maneira cômoda de não falar as coisas que se deve falar. Os caras compram os eventos e se sentem sócios de quem os vendeu. E você não fala mal de sócio. Fórum –  Mas você acha que ainda falta algum tipo de formação política, no sentido amplo e também restrito? Às vezes há jornalistas que até querem ser críticos, mas pesam a mão por outro lado, parece que tudo está contaminado por corrupção, todas as obras são superfaturadas... Kfouri – Acho que sim. Anos atrás fizeram, irresponsavelmente, uma biografia minha, um bom jornalista até, o Carlos Alencar. A única coisa que eu gosto do livro é o título, Militante da Notícia. Em nenhum momento deixei de ser militante. Escolhi fazer jornalismo esportivo como uma maneira de permanecer fazendo política na medida em que nunca tive dúvida de que jornalismo tem lado. E deixo muito claro qual é o meu lado. Todo mundo que me contrata sabe e se tem uma coisa que faço questão de colocar em todos os meus contratos é que a minha defesa jurídica será feita por quem me contratou, senão já tinha falido. Acho que é difícil nessa coisa do jornalismo virar entretenimento, como virou na área do esporte, que a meninada ponha a cabeça pra fora com chance de aparecer. Mas se tivesse uma melhor formação política isso aconteceria mais facilmente. Mesmo assim, tem gente boa aparecendo, o Rodrigo Mattos, Sergio Rangel, só que tudo na imprensa escrita. Fórum – Voltando à questão das manifestações e relacionando com a imprensa, como vê esse “apedrejamento” da Globo? Kfouri – Era inevitável. Curiosamente, a Rede Globo hoje é capaz de fazer uma cobertura política – a gente esteja ou não de acordo – mais independente do que faz na cobertura esportiva. E está pagando o preço disso, também. A sociedade tem cada vez mais meios de saber das coisas, acabou aquela coisa monopolizadora. E tem outra discussão, que faz parte de tudo o que estamos vendo. Vem a presidenta e propõe uma Constituinte para a reforma política e é aplastrada imediatamente, sem nenhum motivo para que isso aconteça. Volto ao Vladimir Safatle, que foi na Islândia ver como se deu o processo, mas daí desqualificam porque é um país do tamanho da Lapa... Então vamos fazer na Lapa. Na Freguesia do Ó, em outros bairros, por que não? Puta medo que se tem do povo, essa que é a coisa. Por que estou dizendo isso? Para falar do tal controle social dos meios de comunicação, que se falseia e se diz que é censura. Acho que o governo não tem nada realmente que controlar os meios de comunicação, nós é que temos que fiscalizar o governo, mas a sociedade tem o direito. O que se faz na Inglaterra, aqui é censura? Aí essa discussão fica interminável. O [Hugo] Chávez era o presidente dos meus sonhos? O que é o Chávez, o que é o [Evo] Morales, o que foi o Lula, o que eventualmente seja a presidenta do Brasil? São quinhentos e poucos anos de domínio e de exclusão, exclusão, exclusão, de uma elite que não quer entregar um anel e que, de repente, naturalmente, se vê com o risco de perder os dedos. Quem é que é capaz de galvanizar uma massa e tomar o poder? É um cara bem comportado, pouco carismático ou é alguém que excede? É óbvio, não querer ver isso é não querer ver a realidade. Teve um cara que disse um dia que um país que torna uma revolução pacífica impossível, torna uma revolução violenta inadiável.  Quem disse isso não foi o Che Guevara, mas John Fitzgerald Kennedy. E tem toda razão. Daí você vê o Brasil na rua e a cobertura é toda “aí os baderneiros, olha os baderneiros...”. Não aguento mais ouvir falar dos baderneiros! Tô quase virando um. Mas esse é o tom. Claro que o Brasil vai ser melhor depois de junho de 2013. Que ele marca um momento de mudança no Brasil, não tenho dúvida, e se falará disso daqui a dez, vinte, cinquenta anos. Como se fala até hoje da campanha das Diretas, do impeachment do Collor. Temer isso ou achar que pode controlar, repito Vladimir Safatle, quando o povo vai pra rua, não volta mais para casa. Pega gosto. Cidade muda não muda. Não tenha dúvida de que a Copa do Mundo, mesmo com o processo quase terminado, será menos pior do que seria antes dos protestos.  F