Márcio, usuário de cocaína em recuperação há 10 anos: “Eu pulei no último vagão do último trem”

No point dos surfistas, em Santos, litoral de São Paulo, ele e o seu carrinho de bebidas são conhecidos de todos. A sua história de luta contra as drogas, nem tanto. E ele a contou em detalhes à Fórum

Márcio no seu carrinho. Foto: Julinho Bittencourt
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Márcio Ferraz dos Santos tem 48 anos, é comerciante e acorda, normalmente, em torno das cinco da manhã, pega seu carrinho a vai para a praia, ao lado do Emissário Submarino, em Santos, litoral de São Paulo. Quem é da cidade conhece bem o local, o principal point dos surfistas da região, repleto de campeões do esporte, curiosos e entusiastas. Ao contrário de todos os outros ambulantes da extensa faixa de areia da cidade, ele fica bem acima, no areão, como os moradores locais chamam. Em torno do seu pequeno carrinho ele vende cervejas, refrigerantes, batidas e porções. Além disso, cuida das chaves, bicicletas e pertences dos surfistas que entram no mar. Quando voltam, há no local uma espécie de cabide, que ele mesmo fez, onde podem pendurar as pranchas. Até pouco tempo, uma geringonça construída por ele também, amparava um amplificador enorme onde só tocava rock and roll. Bem alto. A geringonça foi recentemente substituída por uma moderna caixa JBL. A trilha, no entanto, não mudou. Márcio corre pra lá e pra cá, atende a todos com desenvoltura, chama todo mundo pelo nome e, ao que parece, é querido por todos. A ironia maior é que foi ali, naquele ambiente repleto de elementos que colaboram para o estereótipo que ele se livra, a cada dia, do maior flagelo que enfrentou na vida, as drogas. Márcio é bem articulado e contou a sua história em detalhes para a Fórum, em um final de tarde que, apesar de chuvoso, ele ainda estava por lá trabalhando, se preparando para desmontar tudo e voltar pra casa. [caption id="attachment_135730" align="alignnone" width="475"] Márcio. Foto: Julinho Bittencourt[/caption] Fórum – Você trabalha há quanto tempo aqui na praia? Márcio – Amanhã, 27/06, faz 10 anos que eu tô aqui. Quando eu comprei o carrinho estava há quatro meses limpo, sem usar nenhuma droga. Fórum – Como é que começou essa história das drogas contigo? A maconha, como todos dizem, foi a porta de entrada? Márcio – Comigo não. Foi em 1991, eu tinha 21 anos de idade e estava em um show dos Paralamas, alguém me apresentou, experimentei, gostei e virei usuário de cocaína. Eu achei que eu tinha descoberto a solução dos meus problemas. Na verdade eles estavam apenas começando. Eu comecei usando um pouco só sexta, depois só sexta e sábado, depois só quinta sexta e sábado, Depois, só quando tinha festa. E daí em diante, eu ficava arrumando festa todo dia só pra ter a desculpa e poder usar. Fórum – Como você bancava? Márcio – No princípio trabalhava, sou formado em faculdade, mas eu não percebia que eu deixava de comprar uma camisa de boa qualidade, comprava uma mais barata para poder usar droga com a diferença. O consumo vai virando prioridade. Fórum – Você era casado, tinha namorada? Márcio – Nesse período eu perdi as duas namoradas devido ao uso compulsivo das drogas. Fórum – Quando você percebeu que tinha virado um dependente? Márcio – Foi em 96, quando tive a minha primeira internação. Mas a minha mãe descobriu antes, no dia da minha formatura da faculdade, em 92. Eu estava tão louco na minha formatura que eu não tirei foto com ninguém, eu fui para colação muito louco. Então hoje eu não tenho fotos da minha formatura. Fórum – Você se formou em quê? Márcio – Ciência da Computação, na Universidade Santa Cecília. Fórum – Você fez algo, algum vexame na festa? Márcio – Não, porque nesse começo de um ano você ainda consegue ou acha que consegue dar uma disfarçada. Fórum – Como foi a primeira internação? Márcio – Foi no ano de 1996. Eu já não conseguia mais lidar com nada, sumia do trabalho por duas semanas, ficava dias fora de casa, aí a família se reuniu e falou que eu precisava de ajuda. E eu, no fundo, sabia que precisava me internar, porque eu já não dormia mais, a aparência física estava ruim, então decidi: vou me internar. E essa foi a minha primeira internação das 18 que eu tive, onde só 6 ou 7 eu completei. Um monte delas eu abandonei e saí sem completar todo o tratamento. Então, o recurso também vai secando, a família já não quer mais pagar. Fórum – E essa história que todo mundo fala que se usa droga dentro da clínica é verdade? Márcio – Não, é mentira. Lá é como a escola e vai do aluno se dedicar ou não ao programa de desintoxicação, de conhecer a doença. É uma doença comportamental, mas aí tem aqueles que querem e aqueles que não querem. Fórum – E assim, você se deu conta que precisava parar mesmo, que precisava de ajuda? Márcio – Eu fui no fundo do poço, morei um tempo na rua. Uma vez, passei a noite usando, cheguei de manhã me escorando no armário, minha mãe já tinha deixado eu voltar para casa, mas eu dormia naquele quartinho de empregadas. Nesse momento, eu já estava pedindo dinheiro na rua, contando mentiras: ‘a gasolina acabou’, ‘a minha mãe tá doente’. Hoje, se eu ainda estivesse na rua estaria morto, porque você começa a querer dar o mesmo golpe na mesma pessoa. E o cara me “localiza”. Fórum – Você teve 18 internações em quantos anos? Márcio – Foi de 1996 a 2008, quando eu parei, após doze anos de internações. Em 96, foi o ano em que meu pai morreu. Em 2008, um dia eu levantei de manhã e disse: chega. Não dá mais, estava com a cara, os pés machucados, sentia tonturas, já tava “borderline”, a um passo da loucura. Fórum – E o que você fez? Márcio – Eu lembro que eu joguei 4 cápsulas na privada. Depois que eu dei a descarga deu vontade de mergulhar na privada pra pegar de volta. Fórum – Você já chegou a roubar coisas de casa? Márcio – Já levei algumas coisas sim, mas nada caro, coisas que a gente nem considera roubo, um whisky caro do meu pai, uma bermuda. Naquele momento, você não considera nem a roupa mais. Fórum – Você teve problemas com a polícia ou com traficantes? Márcio – Não, nunca foi um preso e nem chantageado. Eu sempre fui meio cagão, vai entender. Fórum – E com os lugares que você frequentava, os bares? Você deve ter virado “mosca de padaria”, não? Márcio – Eu fui proibido de entrar em um bar aqui em Santos. O dono era um cara que me conhecia e disse: ‘desse jeito você não entra mais aqui’. E hoje eu vi que ele me ajudou. Fórum – Teve algo que te virou a chave, que te deu o estalo pra parar? Márcio – Uma das principais coisas que me ajudou a parar foi que eu não conseguia ficar sem, mas também não conseguia ficar com. Eu ficava deprimido quando eu usava e também quando não usava, entendeu? Depois de tudo, na sua cabeça roda um filme. Hoje, 99% dos caras que usavam comigo ou estão mortos ou estão presos. Fórum – E quando você resolveu parar, foi difícil, teve que tomar tranquilizantes, teve crises? Márcio – Não foi fácil, mas parecia que tava faltando alguma coisa. Como eu vou pra praia sem ‘dar um tiro’, pro cinema? Mas eu não tive nenhuma reação física. Tem gente que tem convulsão, mas eu não. Eu troquei a dependência pelas drogas pela dependência do trabalho, que não é maligno. Não é bom ser dependente de nada, mas naquele momento foi o que me salvou. Fórum – E como foi a vida depois disso? Márcio – Quando você para, você tá sozinho. Eu não tinha mulher, não tinha nada. Você precisa reconstruir sua vida, mas ai você está de quatro. Você escuta muito as pessoas dizerem: ‘Não acredito, você não vai parar’. Ai você tem que mostrar para os outros que parou de usar. Fórum – E como se recupera a confiança das pessoas, da família? Márcio – Você tem que mostrar com atitudes como, por exemplo, começar a trabalhar, chegar com roupas novas em casa, ajudar a sua mãe, tomar banho regularmente, entendeu? E aí começam a surgir as oportunidades. Meu irmão, por exemplo, me ajudou: ‘Pô, Márcio, tem um amigo aí, vamos ver se eu te empresto uma grana, aí vamos comprar um carrinho para você’. Fórum – E foi aí que você veio parar aqui, no carrinho, que é um point da molecada, na praia, em um ambiente onde circulam drogas, a malandragem tá aqui em volta o tempo inteiro. Isso não te provoca tentação? Márcio – Isso te prejudica ou te ajuda. Eu estava muito focado no que eu queria, que era parar de usar. Hoje, eu não deixo ninguém usar perto do meu carrinho, não deixo nem enrolar um baseadinho, pode ser quem for. Isso foi espalhando e hoje me respeitam. Eu não sou ‘tirado de careta’, porque eu não prego pra ninguém, cada um faz o que quer. Se alguém precisar de ajuda, eu ajudo, encaminho para os Narcóticos Anônimos, Alcoólicos Anônimos. Do contrário, fico na minha. Fórum – Você frequenta sempre os Narcóticos Anônimos? Márcio – Não vou regularmente, mas eu vou. Quando vem na cabeça, quando dá vontade, quando eu sinto que eu tô precisando partilhar, desabafar com pessoas que vão entender meu problema. Quando tem um ano que você tá limpo, seus ‘barulhos’ são uns, quando você tem dez anos são outros. Fórum – Você fala abertamente sobre a sua dependência. Você veio trabalhar aqui na praia, nesse ambiente mais arejado, pra fugir do preconceito? Você sofre preconceito, tem vergonha de algo? Márcio – Não. Eu não tô nem ai. Eu tinha vergonha quando eu usava. Da época que eu estou em recuperação eu não tenho vergonha nenhuma. Eu falo em qualquer ambiente, pra qualquer público, falo muito com adolescente, eu falo o mesmo vocabulário deles, tem gente que acha que você vira crente depois que para de usar. Quando eu conheci a minha esposa, por exemplo, a primeira coisa que eu falei foi isso. Ela ficou assustada, mas hoje a gente ri, porque eu fui um investimento de risco (risos). Fórum – Hoje, você tem uma barraca na praia, tem uma vida boa, esposa, você está casado há nove anos, viaja todo ano pro exterior com o dinheiro que você ganha aqui, enfim, você tem uma vida estável, algo duvidoso para um dependente químico. Você é uma exceção? Márcio – Tem bastante gente que se recupera. Eu costumo dizer que eu pulei no último vagão do último trem. Eu estava bem mal. Eu tenho uma mulher do meu lado que só soma, que me dá retaguarda. Hoje, o segredo da parte financeira não é o quanto eu ganho, mas de que forma que eu gasto. Eu não vivo em festas, não bebo. Fórum – Você teve problemas com álcool também? Uma coisa chamava a outra? Márcio – Sim, mas comigo a outra chamava uma. Eu nunca gostei de beber, mas depois que eu cheirava, eu bebia. Como eu parei de cheirar, a bebida foi tranquilo. Não como nem bombom de licor. A bebida te libera, ai você fica mais suscetível a fazer besteiras. Fórum – Até que ponto as drogas estão ligadas à juventude, ao comportamento imaturo? Márcio – Eu precisei passar por isso pra entender. Se eu não tivesse passado, eu não ia entender. O jovem sempre acha que com ele e diferente. Hoje eu tenho um problema em casa, com a minha enteada. Ela é usuária de maconha e a gente está numa batalha pra tentar fazer ela parar. Hoje eu estou vendo o que eu fiz com os meus pais. Fórum – Mas espera, você está comparando a maconha com a cocaína? Márcio – Não tem essa. Droga é droga. Hoje, se a cocaína for legalizada, eu, o Márcio, não posso usar. Não é por causa da cocaína, é por minha causa. Eu sou usuário compulsivo. Fórum – Você é a favor da legalização das drogas? Márcio – Pra mim é indiferente. Eu só acho que, se as drogas fossem legalizadas, elas iriam custar caro para o usuário final, portanto, iam continuar sendo vendidas no mercado negro. Fórum – Você acha, então, que as drogas não andam junto com a cidadania? Mário – Pro usuário social, sim, aquele que fuma um baseado antes de dormir. Eu, Márcio, e a minha enteada, por exemplo, somos dependentes químicos, então não dá. Fórum – Mas existe viciado em maconha? Márcio – Existe. Ela tem 19 anos e não consegue ficar sem fumar. As pessoas falam: ‘olha, maconha não é droga’. Ai a sua mãe vai fazer uma cirurgia cardíaca e o médico chega pra você e fala: ‘olha, vou fumar um baseado ali e já volto pra fazer a operação’. E ai, você vai achar tudo bem? A diferença entre a cocaína e a maconha é que um vai perder os valores mais rápido e o outro vai demorar um pouco mais. Fórum – Mas existe o usuário social de cocaína? Márcio – Eu costumo dizer que quem usa social, mente. (risos) Fórum – E da maconha, existe? Márcio – Cada um sabe onde dói o seu calo. Eu posso te afirmar que pra mim não dá. Pra qualquer um que tá por aqui, na praia, dá. Pra mim não. Só posso responder por mim. Fórum – Você cheirava da hora que acordava até a hora de dormir? Márcio – Eu tinha que entrar em casa com um papel fechado, para acordar de manhã e, antes de escovar os dentes, cheirar. Fórum – Pra encerrar, dá a fórmula mágica. Como se para de usar? Márcio – Tem que ocupar o tempo. Eu trabalhava da hora que acordava até a hora de dormir. Colaborou: Thais Prado