Não é a polícia que define o que um professor pode ensinar, afirma Carlos Latuff

Chargista prestou solidariedade à vice-diretora de escola cívico-militar, em Brasília, que tem sofrido pressões por defender liberdade de cátedra, após trabalho sobre o Dia da Consciência Negra virar alvo de polêmica, com charges que tratavam de violência policial e racismo.

Carlos Latuff vai à escola cívico-militar e presta solidariedade à vice-diretora, que sofre pressão após trabalho do Dia da Consciência Negra
Escrito en BRASIL el

Por Christiane Peres

A violência no Brasil tem cor e recorte social. Agatha, Eduardo, Guilherme, João Pedro são apenas um pequeno exemplo de como a ação policial tem alvo predominante. Todos eram negros, crianças e jovens, moradores de comunidades pobres, vítimas das “balas perdidas”, que sempre, ou quase sempre, encontram corpos pretos pelo caminho. Corpos que viram números para as pesquisas sobre violência e evidenciam o racismo estrutural no Brasil.

Discutir estes temas, no entanto, não é tarefa simples. Nas últimas semanas, quando o Dia da Consciência Negra (20 de novembro) pautou a abordagem escolar em diversas unidades de ensino Brasil afora, no Centro de Ensino 1 da Estrutural, em Brasília, a censura ganhou forma, quando um trecho da exposição que trazia charges e textos questionando a violência policial virou alvo de polêmica.

A escola é uma das 12 da capital federal que adotou o sistema cívico-militar, onde a parte pedagógica é administrada por servidores da rede pública e a disciplinar feita por policiais militares.

“O diretor disciplinar pediu que os cartazes fossem retirados, mas eu disse que não retiraria, pois era o ponto de vista dos alunos e nós deveríamos debater”, conta a vice-diretora da unidade escolar, Luciana Pain.

O regimento das escolas cívico-militares, no artigo 4º, garante a autonomia didático-pedagógica. “Não tem essa interferência. Ela não pode existir. O aluno tem o direito de se expressar e a gente precisa debater o tema. Só assim a gente vai combater o racismo da nossa sociedade”, pontuou a dirigente.

Parte das charges que abordavam a violência policial eram do cartunista Carlos Latuff, que já teve seu trabalho igualmente censurado em 2019, em exposição na Câmara dos Deputados, quando um parlamentar bolsonarista quebrou uma das placas que tratava do tema.

“Não é a polícia que define o que um professor pode ensinar. As charges tratam de temas que precisam ser discutidos: violência policial e racismo. O Brasil é um país racista. O Estado mata, sim, preto e pobre. Quando se tem a oportunidade de um trabalho de escola abordar esse assunto isso é fundamental”, destacou o chargista, que visitou a escola esta semana, após os ataques sofridos pela direção, docentes e alunos.

De acordo com o último Atlas da Violência, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), a chance de um negro ser assassinado no Brasil é 2,6 vezes superior à de uma pessoa não negra. Em 2019, os negros (soma dos pretos e pardos da classificação do IBGE) representaram 77% das vítimas de homicídios, com uma taxa de homicídios por 100 mil habitantes de 29,2. Comparativamente, entre os não negros (soma dos amarelos, brancos e indígenas) a taxa foi de 11,2 para cada 100 mil.

“Se a violência policial contra jovens negros pautou parte desses trabalhos é preciso debater. Mas toda vez que se trata de violência policial numa escola tem reprimenda. Isso tem que acabar. Se a gente quer combater a violência policial, o papel das polícias, isso precisa ser debatido sem medo”, afirmou Latuff.

Além da visita do cartunista, a escola promoveu um ato, na quinta-feira (2), para defender a liberdade de cátedra e combater a censura. A manifestação recebeu representantes da Ordem dos Advogados do Brasil, do movimento negro, do movimento estudantil, além do apoio de sindicatos e parlamentares.