O caso iemenita: como as políticas brasileiras de comercialização de armas afetam outros países

O Governador Geraldo Alckmin, participa da entrega de armas custodiadas pelo Judiciário às Polícias Civil e Militar do Estado de São Paulo. DATA 22/05/2017. LOCAL: São Paulo/SP. FOTO: Diogo Moreira
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Vendas brasileiras à Arábia Saudita, país que bombardeia o Iêmen, mostram a urgência da ratificação do Tratado de Comércio de Armas pelo Congresso Brasileiro Por Giovanna Costanti A situação atual do Iêmen, país ao sul da Arábia Saudita e a oeste de Omã, é calamitosa. Os rebeldes Houthis e as forças leais ao ex-presidente Ali Abdullah Salleh lutam contra o exército dos apoiadores de Mansour Al-Hadi, que sucedeu Salleh em um governo provisório. A Coalizão Saudita, grupo de países liderados pela Arábia Saudita, em apoio a Hadi, tem bombardeado indiscriminadamente o país, principalmente o norte, região originária dos Houthis. O conflito armado no qual o Iêmen se encontra tem provocado uma perda humana altíssima e desestabilizado toda sua infraestrutura, sendo o sistema de saúde um dos mais afetados. Em meio a esse cenário, entra em voga a discussão a cerca da venda de armas e outros materiais bélicos à Arábia Saudita, quando relatórios de organizações como a Anistia Internacional e a Human Rights Watch apontaram para suspeitas de que os ataques sauditas tenham atingido civis iemenitas. Gabriel Valladares, assessor jurídico do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, afirma que é preciso entender que até mesmo em uma guerra, há regras, e estas precisam ser respeitadas por todas as partes beligerantes. Ele explica que o Direito Internacional Humanitário tem normas que garantem a proteção à todas as pessoas que não participam das hostilidades, mesmo que já tenham participado anteriormente. Essa proteção aos chamados civis, segundo o assessor, é garantida por alguns princípios que têm como objetivo “encontrar um equilíbrio entre as necessidades militares e as considerações de humanidade”. Segundo relatórios da organização Control Arms, a Coalizão Saudita teria ferido tais princípios do Direito Internacional Humanitário. Há evidências de que os ataques sauditas foram responsáveis por sofrimentos, perdas e danos desnecessários no conflito armado dentro do Iêmen, principalmente aos civis. O documento diz ser possível que a Coalizão tenha até mesmo cometido crimes de guerra. Além dos ataques aéreos indiscriminados, que chegaram a atingir estradas, escolas, fábricas e até mesmo hospitais, ainda sabe-se que a Coalizão tem mantido um forte bloqueio no país, dificultando a entrada de ajuda humanitária e de profissionais de organizações filantrópicas. Contudo, culpar apenas a Coalizão frente a catástrofe vivida atualmente pelo Iêmen é fechar os olhos a um mercado que movimenta aproximadamente 80 bilhões de dólares anualmente: o mercado das armas. Segundo a Control Arms, em 2015, quando o conflito no Iêmen tornou-se altamente violento, 11 países comercializavam produtos bélicos com a Arábia Saudita, como drones, mísseis e bombas. Dentre eles figuram o Reino Unido, a França e os Estados Unidos, país que recentemente fechou um acordo milionário de comercialização de armas como governo saudita. É nesse momento que o Brasil, o quarto maior exportador de armas pequenas do mundo, entra na história. De acordo com as organizações Anistia Internacional e Human Rights Watch, foguetes de produção brasileira estão sendo usado pelos sauditas para disparar munições. Segundo as mesmas organizações, foram encontradas, no norte do Iêmen, munições utilizadas pela Coalizão que muito se assemelhavam a uma variante brasileira das munições cluster. As clusters são proibidas pela Convenção sobre Munições Cluster, não assinada pelo Brasil. Segundo Gabriel Valladares, elas foram proibidas em razão de seus efeitos indiscriminados. As clusters são projéteis formados por múltiplas submunições explosivas que se dispersam no momento em que são disparados. “Sua área de abrangência pode chegar a sete Maracanãs juntos. Além disso, 20% das submunições chegam ao chão sem explodir. São resíduos de guerra”, explica Valladares. Dessa forma, as regiões por onde os projéteis explodem se transformam em verdadeiros campos minados. Os resíduos deixados pelo lançamento de uma cluster, quando pisados por moradores da região ou até mesmo confundidos com brinquedos por crianças, explodem no momento em que são tocados, matando e mutilando civis. Segundo o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, de 2015 a 2016, estima-se que 6 mil iemenitas passaram a ter deficiências físicas, a maioria decorrente de explosões e minas. Os resíduos explosivos são males supérfluos e que causam sofrimentos desnecessários, aspectos proibidos pelo Princípio da Precaução do Direito Internacional Humanitário. Dois tratados, para além da Convenção sobre Munições Cluster, mostram que seu uso vai em direção oposta às diretrizes do Direito Internacional Humanitário. Em 1980, foi assinado o tratado sobre proibições e restrições do emprego de certas armas que causam danos excessivos, dentre elas figuram as que produzem resíduos explosivos de guerra, estas incorporadas em 2003. Em 1997, também foi assinada a convenção sobre a proibição do emprego, armazenamento, produção e transferência de minas anti-pessoais, conhecido como Tratado de Ottawa. A assinatura desses tratados ressaltam o quão preocupantes são as consequências das minas e dos resíduos explosivos sobre a população civil. Além disso, a limpeza dos resíduos não é uma opção simples e rápida. O próprio Iêmen é um exemplo disso. Foi apenas em 2004 que a cidade de Aden e outras regiões do sul do país tornaram-se completamente livres de minas que foram implantadas na região durante guerra civil de 1994. Dez anos se passaram para que a região tornasse a ser segura aos civis novamente. Isso mostra o quão duradouros podem ser os reflexos da guerra. A responsabilidade brasileira No início de 2013, foi assinado o primeiro documento que visa regulamentar o comércio de armas em escala global. O Tratado Internacional sobre o Comércio de Armas (TCA), que regula a venda desde armas leves até tanques de guerra, pretende erradicar e prevenir o comércio ilícito entre países, evitando que os armamentos cheguem em ‘mãos erradas’, como governos responsáveis por genocídios , crimes de guerra ou graves violações dos direitos humanos. O Brasil foi um dos primeiros países a assinar o Tratado, ainda em 2013. Porém, segundo Gabriel Valladares, assinar e ratificar um tratado são estágios diferentes de compromisso e que não devem ser confundidos. “Um tratado só passa a valer juridicamente se ele foi ratificado pelo país”, explica. A assinatura é uma demonstração de interesse no tratado, mas sem a ratificação, o país não é obrigado a cumprir suas regras e não pode punir quem o descumpra. Como forma de combater a venda de armas para países que possam estar cometendo atos que infrinjam as normas dos Direitos Humanos e do Direito Internacional Humanitário ou que possam repassar a terceiros que o façam, atos proibidos pelo Tratado, a ratificação do mesmo se mostra urgente. É o que afirmam organizações como o Instituto Sou da Paz, a Conectas Direitos Humanos, a Dhesarme, a Anistia Internacional e o Instituto Igarapé, que juntos lançaram no ano passado uma petição popular para pressionar o Congresso Nacional a ratificar o Tratado sobre o Comércio de Armas, que está em lento trâmite. O processo envolve análises que passam pelos poderes Executivo e Legislativo e atualmente se encontra estagnado na Câmara dos Deputados. Para Jefferson Nascimento, assessor de Política Externa da Conectas Direitos Humanos, a tramitação tem sido prejudicada por vários fatores, entre eles a falta de engajamento do Executivo e de senso de urgência por parte da Câmara e do Senado. “O papel da sociedade civil é mostrar aos parlamentares que a morosidade na análise do acordo torna-os cúmplices por omissão de crimes de guerra, genocídio e atos de terrorismo cometidos com armas brasileiras exportadas de forma irresponsável e pouco transparente.” Com o Tratado ainda não ratificado no país, é possível que a Avibrás Indústria Aeroespacial SA, empresa brasileira, com sede no Vale do Paraíba, que exporta produtos de artilharia à Arábia Saudita, não seja, obrigatoriamente, investigada pelo governo brasileiro e não precisa, necessariamente, emitir relatórios públicos sobre suas vendas e seus clientes. Mesmo que relatórios da Anistia Internacional sustentem a acusação de que as bombas encontradas no norte do Iêmen, país bombardeado pela Coalizão Saudita, sejam uma variante brasileira da munição cluster, “de alta semelhança” ao modelo fabricado pela Avibrás. Em nota, a Avibrás informou que não pôde identificar as origens das munições encontradas no Iêmen, por não ter acesso ao local do conflito. E acrescentou que os artefatos produzidos pela empresa possuem “dispositivos confiáveis de detonação em conjunto com dispositivos de autodestruição em seus produtos desde 2001, para evitar material ativo remanescente no solo”. A empresa também afirmou que todas as suas exportações são autorizadas pelos órgãos públicos brasileiros. Não foi a primeira vez que indústrias de armamentos brasileiras comercializam com a Arábia Saudita. Jefferson pontua que, no mesmo período em que as munições foram encontradas no Iêmen, empresas brasileiras de armamentos venderam mais de 100 milhões de dólares ao governo saudita. Para o jornal Folha de São Paulo, o Itamaraty emitiu uma nota, em abril deste ano, informando que o controle realizado pelos órgãos públicos é “rigoroso” e que “não são autorizadas exportações de material brasileiro de defesa para países em conflito, bem como para países objeto de sanções internacionais”. Por enquanto, a não ratificação do TCA coloca o Brasil em uma posição de coadjuvante na discussão mundial sobre o comércio de armas e no rumo à garantia de dignidade e direitos aos civis de países nos quais vigoram conflitos armados, como o Iêmen. Para Jefferson, a ratificação do Tratado serviria como exemplo positivo a países que ainda não aderiram ao Acordo e faria com que o país passasse a se pautar na transparência e na análise de risco que leva em conta elementos humanitários. Falta de transparência Atualmente, a política brasileira de exportação de materiais de uso militar, como armas e munições, é regulada por um decreto que entrou em vigor em 1974, durante o período de ditadura militar. Ele é conhecido como PNEMEM, ou Política Nacional de Exportação de Material de Emprego Militar e por ser mantido em sigilo, seu teor é desconhecido. Isso contraria as premissas do que classifica um Estado como democrático e faz com que o Brasil seja um dos países menos transparentes em suas políticas de vendas de armas. Isso porque, segundo Jefferson, nega-se à população o conhecimento em relação ao volume de material bélico exportado, os países compradores e os critérios escolhido pelo Estado brasileiro que precedem a decisão de vender ou transferir armas para outros países. “A consequência é recebermos pela imprensa internacional ou organizações da sociedade civil de outros países informações sobre armas fabricadas no Brasil sendo utilizadas para cometimento de crimes de guerra e contra a humanidade, para violações do Direito Internacional Humanitário e como instrumento para repressão ao direito de associação e de livre expressão”, reitera Jefferson. Para além do Iêmen, ele cita os casos em que armas brasileiras foram encontradas na Costa do Marfim, apesar do embargo colocado pelo Conselho de Segurança ONU sobre o país desde 2004, e no Bahrein, país que “tem sido alvo de condenação internacional por desrespeitar o direito à associação e livre expressão”. Para Jefferson, um país como o Brasil, que segundo sua Constituição, tem como um dos princípios de sua atuação internacional a defesa dos Direitos Humanos, não deveria faltar com transparência em suas transferências de armas e outros materiais bélicos. Foto: Diogo Moreira