A obsessão antivacina do bolsonarismo é um problema mental? O que dizem os psiquiatras

Cultuar absurdos, difundir mentiras toscas e achar que faz parte de uma cruzada pela humanidade seriam apenas questões ideológicas? Fórum foi ouvir especialistas, que divergem sobre o tema

Jair Bolsonaro e uma manifestação antivacina no Rio de Janeiro (Twitter/Reprodução)
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Os grupos antivacina não são uma exclusividade do Brasil, tampouco surgiram no contexto atual da pandemia da Covid-19. Muitos protestos contra o uso de imunizantes vêm sendo registrados em praticamente todos os continentes da Terra e a resistência ao uso dessa importante ferramenta de saúde pública é um fenômeno social tão antigo quanto a própria vacina, desenvolvida pela primeira vez ainda no século XVIII. No entanto, o combustível que o alimenta vai mudando com o tempo.

No Brasil contemporâneo, a mentalidade negacionista e anticiência que condena a aplicação de imunizantes na população foi turbinada pelo ambiente de insanidades que passou a vigorar no país com a eclosão do bolsonarismo, uma estética orgulhosamente obscurantista e grotesca que apela às mais escatológicas e absurdas teses para alinhar a lógica de tudo à do líder extremista que controla frações da sociedade brasileira.

As maluquices vão de inserção de chip para controle de mentes por parte do governo comunista da China até a teoria de que estão embutidos nas vacinas pequenos transmissores de internet 5G, passando por sandices que falam de “testes gênicos”, assassinatos em massa, contaminações propositais e uma incalculável gama de teses destrambelhadas e risíveis. Ainda assim, há quem acredite e não são poucos.

A reportagem da Fórum foi ouvir psiquiatras e psicanalistas para saber se essa adesão absoluta e cega a teorias estapafúrdias, claramente motivadas por alinhamento ideológico a uma liderança que ressalta seu caráter messiânico, é algo resultante de uma vontade clara e consciente ou se esses milhões de brasileiros podem estar apresentando algum tipo de comportamento de fundo patológico, induzidos por uma desordem ou disfuncionalidade mental, o que popularmente chamamos de “paranoia”.

Seita, bolha e crenças

“A paranoia é um conceito psicopatológico e deve ser pensado caso a caso, na singularidade de cada um dos sujeitos que escutamos. Nossa cultura incorpora o termo paranoia a uma certa fixação ou ficção do sujeito em certas crenças, que tomam ares de verdades peremptórias e inabaláveis. Para os fenômenos de massa, do movimento organizado antivacinas, a desinformação generalizada corrente nos WhatsApp de nossas tias, podemos pensar na paranoia quando há um grau de certeza inabalável diante das crenças. A crença se torna vital e central para aquele sujeito e sem dúvida há limitações neste efeito "de bolha". Acredito que a maior parte das veementes críticas à vacina para o SARS-COV-2 são de uma multiplicidade de pontos. Carecemos de mais tempo para compreender este "instante de ver" diante do vírus e de suas cepas”, explicou o psiquiatra e psicanalista Fabrício Donizete da Costa, formado pela Unicamp e mestrando em Psicologia Social pela USP, que atende no Núcleo Ampliado em Saúde da Família (NASF) da Prefeitura de Campinas.

Perguntado em relação a um comportamento que se assemelha ao das seitas, Costa explica que há muita coisa em comum entre percepções que podem ser meramente individuais e o agir em grupo, das grandes massas de seguidores de alguma doutrina ou segmento, e evoca Sigmund Freud, o pai da psicanálise, para falar sobre.

“Se você der um Google descobre rapidamente que seita é um termo que deriva do latim "secta", cujo significado é seguidor. Além disso, a palavra seita compartilha da proximidade etimológica da palavra grega háiresis (heresia), que em grego significa escolha, tomar partido... Sua questão retoma esta aproximação entre seguidores e suas escolhas. Freud irá retomar esta relação entre indivíduos e massas em sua "Psicologia das Massas e Análise do Eu", um texto publicado em 1921 mas que segue atual. Em suma, não há uma separação tão contundente entre o eu e os outros... E de certa maneira colhemos os efeitos disto neste cenário pandêmico. Freud irá aproximar o eu das massas, com contribuições valiosas para compreendermos os efeitos desta articulação em nosso tempo corrente”, opinou.

Sobre o presidente Jair Bolsonaro, líder político e quase religioso dos numerosos grupos que aderem a seu discurso ultrarreacionário e delirante, o médico afirma que naturalmente há uma impossibilidade ética em analisar alguém que não é seu paciente e tomando como ponto de partida apenas aquilo que pode ser observado pelas atitudes de uma pessoa pública, ainda que Costa perceba que há algo de muito anormal e incorreto no rumo que as coisas tomaram no país, sobretudo no que tange a pandemia da Covid-19.

“Essa é uma questão polêmica... Assim como os economistas, os psiquiatras e os psicanalistas são péssimos videntes (risos). Analisar figuras públicas trazem limitações éticas e práticas, já que falamos de questões justamente que se dão neste espaço, que fogem das explicações meramente racionais. Analisaria a figura do presidente se ele pudesse, de fato, se prestar a um instante de fala plena e não de falas vazias. Se falamos de patológico em seu sentido de páthos (paixão), sem dúvida, a paixão do ódio e da ignorância tem predominado no manejo da pandemia no contexto brasileiro, tomando-se a esfera federal como exemplo categórico”, concluiu.

“Bolsonaro tem um tipo de psicopatia”

O psiquiatra e também psicanalista Valton de Miranda Leitão, um veterano médico cearense com 56 anos de carreira e um dos profissionais especialistas há mais tempo em atividade no país, com vasta formação em inúmeras universidades, como a UFC e a UFRGS, não deixa dúvida sobre suas conclusões em relação a Jair Bolsonaro, o grande indutor e condutor do movimento negacionista antivacina brasileiro.

“Bolsonaro tem um tipo de psicopatia. Na psiquiatria dizemos que é um indivíduo perverso, que não tem empatia com as outras pessoas, no máximo desenvolve alguma empatia com os dele. Observe que perverso, para a psiquiatria e a psicanálise, é um conceito um pouco diferente daquele do senso comum. Nesse campo de estudo, alguém perverso é alguém absolutamente desprovido de um sentimento moral que leve a ter empatia pelo outro. Em vias gerais, essa é sim uma característica dos psicopatas”, disse Valton.

Falando sobre o comportamento dos indivíduos que entraram de cabeça no movimento antivacina e que com isso parecem ser conduzidos por uma visão totalmente distorcida da realidade, o psiquiatra estabelece uma conexão entre esse comportamento e uma patologia muito conhecida, a hipocondria.

“Há dois elementos aí que precisam ser considerados. Você tem a convicção pseudopolítica, porque essas pessoas acreditam que estão embasadas numa compreensão política e ideológica de mundo, de um ponto de vista objetal. Do ponto de vista subjetivo, eles funcionam dentro de uma determinada perspectiva, mais ou menos como os hipocondríacos, que desenvolvem uma paranoia. A hipocondria tem um componente psicótico, e a hipocondria e a paranoia têm uma grande aproximação. O mais famoso caso de paranoia estudado por Sigmund Freud, o chamado Caso Schreber, começa com uma hipocondria, mas o indivíduo desenvolve depois uma paranoia imensa, monumental. E o que caracteriza a paranoia? O sujeito paranoico precisa de um inimigo para odiar, para perseguir. Ele elege um inimigo, que pode ser qualquer um... Pode ser o outro que apenas não concorda com ele, pode ser um alguém diferente dele... E pode ser a vacina”, relaciona.

Para o respeitado psicanalista cearense, a identificação de alguém com uma determinada corrente ideológica pode dizer muito sobre aspectos de sua mente. Na explicação ele usa o caso recente do tenista sérvio Novak Djokovic, que se nega a receber a vacina e faz campanha por onde vai contra os imunizantes, e que não quer receber nenhum tipo de sanção por conta disso.

“E quando você junta um componente ideológico, que tem uma dimensão muito centrada num indivíduo? De um modo geral, uma doutrina socialista, por exemplo, tem uma ética voltada em linhas gerais à comunidade, ao coletivo, enquanto os fascistas têm uma ética totalmente voltada ao individual, ou seja, o indivíduo em si. Tome como exemplo este tenista sérvio, o Novak Djokovic. O que esse sujeito faz? Ele pensa assim "eu sou o maior do mundo", o que aliás é muito característico do paranoico, que se vê como um único no mundo, e os outros são apenas os outros, são os degradados, degenerados, gente com quem eu não devo me importar... E ele age como um ser superior e sua vontade deve ser a única a ser respeitada. Indivíduos com essa característica costumam ter pensamentos unívocos. Nós, de um modo geral, temos um pensamento multicêntrico, ou seja, pensamos em várias coisas ao mesmo tempo. Eles não. O pensamento unívoco é assim, peremptório: a vacina não presta e ponto final”, compara Valton.

O tipo de liderança exercida por Jair Bolsonaro em relação a esses grupos antivacina também, para Valton, facilita a propagação de suas atitudes, já que a admiração dos radicais que o seguem é baseada num princípio de identificação.

“Os grupos humanos precisam de um líder, seja ele raso, tosco, como for. O grupo irá projetar nesse líder o seu inconsciente. Seus processos de inconsciência, suas fantasias de grandeza... As pessoas que se identificam com um determinado líder são pessoas que estão automaticamente identificadas entre si. No caso de Jair Messias Bolsonaro, e observe que esse nome (Messias) é muito emblemático e sugestivo, ele faz um apelo muito forte a processos inconscientes profundos, ou seja, ele apela para o que o homem comum não faz. É um homem tosco, que diz coisas absurdas o tempo todo, mas essas pessoas que o seguem tem um profundo senso de identificação com ele”, completou o médico.

Para ele, tudo está ligado a uma forte paranoia, que é inclusive um traço muito característico de grupos ideológicos ultrarreacionários, como os fascistas e os nazistas, em que pesem, segundo o experiente psicanalista, algumas diferenças em termos de sofisticação entre os dois grupos.

“O paranoico absolutiza aquela ideia e aquilo passa a ser algo único. Estamos vendo isso em relação à vacina e se observarmos é exatamente o mesmo que ocorre quando esses indivíduos encontram alguém que não compartilha de sua ideologia extremista. Imediatamente, nesse caso que vivemos, ele aponta e diz: "comunista!". E isso se propaga com a disseminação desses rótulos genéricos como "esquerdista", "esquerdopata", enfim. O que se nota é que o pensamento de indivíduos assim é um pensamento extremamente pobre. Eles não têm uma pluralidade de pensamentos, ainda que haja diferenças entre essas correntes radicais e reacionárias. Grosso modo, essa coisa arraigada em cima de bordões, de rótulos e muito rasa é mais característica dos fascistas, enquanto um pretenso pensamento mais sofisticado, com certa veia intelectual ou artística, seja um atributo de quem se coloca como nazista, por exemplo, que sempre gostaram de se portar com uma suposta superioridade mais filosófica, mais complexa. Ainda assim, toda essa suposta formação cultural, ideológica, antropológica, enfim, coincide com a visão de mundo e com o modelo do funcionamento do pensamento paranoico. É aquela história: "todo o resto do mundo é corrupta, todo resto do mundo é degenerado e precisamos eliminá-los. Temos que prevalecer". Há uma pobreza muito forte intelectual. A coisa é muito mais centrada nos costumes do que propriamente em alguma filosofia. "Ah, as pessoas estão degeneradas porque aceitam a 'ideologia de gênero', isso é uma decrepitude. Não é uma “weltanschauung", uma visão de mundo, como diziam os nazistas alemães, não é uma filosofia, são bordões, é algo sem razão e nada multicêntrico”, finalizou Valton.

“Alguns adotam o negacionismo para ter um ganho”

Para a psiquiatra Elisa Brietzke, que é professora e pesquisadora da Queen’s University, do Canadá, não é correto relacionar todos os casos de negacionismo em relação à vacina, ou comportamentos violentos que sejam resultado dessa intolerância, a questões de desordem mental, embora possa existir indivíduos nessas condições. Para ela, há muita gente que procura algum tipo de ganho ou vantagem ao adotar essa postura.

“Não acreditar na eficácia das vacinas ou temer seus possíveis efeitos colaterais de forma geral não é devido a um transtorno mental. Posturas negacionistas e fanáticas são um comportamento disfuncional e potencialmente problemático que precisa ser enfrentado por uma política pública de educação em saúde. Um subgrupo desses indivíduos adota esse comportamento para a obtenção de algum ganho secundário, como ganho material, seguidores nas redes sociais ou relevância política. Um menor grupo ainda pode se referir a indivíduos com problemas psiquiátricos em que exista uma distorção acentuada dos pensamentos chamada de psicose. Usualmente esse tipo de situação envolvera também distorções de pensamentos de outras temáticas e não apenas das relacionadas à Covid. Quanto a risco de violência, embora ataques e violência sejam comumente atribuídos a presença de um transtorno mental, a imensa maioria desses atos de violência e cometida por indivíduos sem doença psiquiátrica”, argumentou Elisa.

A psiquiatra que leciona no Canadá explica que há aspectos distintos nesse grupo de pessoas que por várias razões abraçam de forma agressiva ideias como as do movimento antivacina, mas ela esclarece que nem sempre será necessária a intervenção de ordem médica, já que na maioria das vezes as soluções para esse problema devem vir de outros setores da sociedade e do poder público.

“Comportamentos extremos podem se tornar gradualmente mais graves, seguindo um curso em que passam a ser progressivamente mais desconectados da realidade, menos permeável à refutação, mais intolerante a ideias contrarias e ocupando um grande espaço na vida do indivíduo. Esses comportamentos diferem daqueles apresentados por pessoas que apenas pensam diferente da maioria dos que as cercam em três aspectos: intensidade (ideias defendidas de forma obsessiva e apaixonada), intolerância (sem espaço para admitir a possibilidade de validade de ideias contrarias) e incoerência (as ideais defendidas vão ficando cada vez mais distantes da realidade). A organização em grupos ou a presença de grupos com ideias conspiratórias na internet tende a acentuar esses padrões de comportamento em alguns indivíduos, um processo que é conhecido como radicalização, que pode sim, estar por trás de ações agressivas ou violentas. Estudos realizados em outros países mostram que a radicalização e a violência política devem ser combatidas pelo sistema jurídico e legal, bem com a monitorização e remoção de contas que promovam esse tipo de ação em redes sociais”, explicou detalhadamente a professora de psiquiatria.

Por fim, Elisa admite que a situação não é de fácil enfrentamento e diz que, para casos em que um comportamento não é de fundo mental (que seriam uma minoria) é preciso apelar para um pacto que envolva várias instâncias da vida em sociedade, sem abrir mão, claro, das medidas científicas preconizadas e comprovadamente eficazes para controle da pandemia, que são justamente o alvo de ataques desses grupos.

“Esse tipo de situação é complexo e o seu enfrentamento precisa se dar no âmbito das políticas públicas de educação em saúde, do sistema judiciário, das mídias tradicionais e das redes sociais e dos órgãos geradores de informação, especialmente as instituições acadêmicas. Independente das ideias defendidas por familiares, amigos ou colegas de trabalho, o mais importante e que estejamos todos seguros nos ambientes com circulação de pessoas, o que envolve vacinação, uso apropriado de máscara e higienização das mãos, distanciamento social e limitação de atividades presenciais. Ou seja, mais importante do que o pensamento das pessoas do nosso convívio e o seu comportamento quando compartilham um espaço comum. Algumas pessoas precisam de mais informação e podemos fazer isso explicando e compartilhando conteúdo confiável nas nossas redes. Também e muito importante que a gente não contribua para agravar o problema, reagindo e compartilhando conteúdos negacionistas nas nossas redes sociais, mesmo que seja para criticar ou condenar, pois os algoritmos entendem que aquele conteúdo gera engajamento”, concluiu a médica.