Quando o umbigo substitui o futuro

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A ideia de suspender cursos de medicina por um tempo, encampada pelo governo Temer, vem do ano de 1971. É o que alerta, em artigo, o ex-diretor de Políticas para a Educação Superior do MEC, Dilvo Ristoff. "Não tenhamos dúvida: esta decisão de proibir a abertura de novos cursos de medicina nada tem a ver com qualidade, como querem fazer crer os seus autores". Leia Por Dilvo Ristoff* O Brasil de hoje parece um túnel do tempo. A cada dia acordamos em um momento do passado. A notícia da iminente proibição de criação de novos cursos de medicina por um período de cinco anos nos transpõe ao ano de 1971. Naquele ano, o Ministério da Educação (MEC) criou uma Comissão de Ensino Médico para analisar a situação das escolas de medicina brasileiras. Essa comissão afirmou haver, na ocasião, número suficiente de médicos no país e vaticinou a existência de médicos em excesso em 1976 – denunciando, dessa forma, uma acelerada expansão na formação de novos médicos que precisava ser contida. O detalhe é que havia, na ocasião, apenas 73 cursos de medicina – e um total de 42.931 matrículas. O relatório da Comissão foi publicado como livro pelo MEC e é nele que podemos ver, ainda, a preocupação em “prevenir o aviltamento do trabalho profissional, de vez que o grande número de médicos não (encontraria) condições ... para o exercício da profissão”. O temor era tamanho que a comissão chega a declarar: “é evidente que (a se manter o ritmo da expansão), em pouco tempo, estaríamos a braços com profissionais desempregados”. Escapa-lhe, solenemente, que vários estados – toda a Região Norte e alguns estados do Nordeste – não haviam formado um único médico em toda sua história e que não havia nenhum desses profissionais em mais de 2.000 municípios brasileiros. Ou, simplesmente, que a população do Brasil pudesse crescer. Talvez como preocupação genuína, talvez apenas para legitimar interesses corporativos, a Comissão afirma que a expansão viria em detrimento da qualidade. Em suas palavras: “Tem-se configurado, dessa forma, o sacrifício da qualidade pela quantidade”. E recomenda ao então ministro da educação, Jarbas Passarinho, “que seja contido o processo de criação de escolas, pelo prazo mínimo de três anos, enquanto se procura corrigir as deficiências atuais”. A consequência dessa orientação germinal nós sabemos: o crescimento dos cursos de medicina sempre foi contido no país e nunca se equiparou ao crescimento médio da educação superior. De 1991 a 2011, por exemplo, o crescimento dos cursos de medicina foi de apenas 134% enquanto o crescimento do número de cursos de graduação foi de 520%, quatro vezes maior. Trata-se, portanto, de uma política de encolhimento bem-sucedida. Elitista, corporativista, sem visão de futuro de país, mas bem-sucedida. A vitória da ideia da medicina bonsai: pequena e bonita. O mito de que quantidade vem em detrimento da qualidade não é, no entanto, exclusividade da medicina. Ele tem se propagado em toda a educação brasileira. Na verdade, este mito faz parte do raciocínio elitista que durante décadas impediu que a educação básica se universalizasse no Brasil, com o argumento de que iria piorar a qualidade, enquanto outros países já a haviam universalizado quase um século antes. É o mesmo elitismo que ainda hoje impede que a educação média e superior se expanda. O fato de países desenvolvidos, com sistemas de acesso de massa, terem sistemas com mais qualidade educacional que o nosso, parece não convencer os arautos do elitismo. Nem o fato de a relação de matrículas por 10.000 habitantes na área da saúde ser, no Brasil, praticamente a metade da dos países da OCDE, ajuda a convencer os defensores da medicina bonsai. Temos, além disso, só 21 de cada 100 jovens de 18 a 24 anos na educação superior, quando os países desenvolvidos do mundo têm mais de 40 há várias décadas. Deveríamos, por este raciocínio, ter um dos melhores sistemas educacionais do planeta. Só insanos, no entanto, se atreveriam a fazer tal afirmação. Na prática, porém, o mito de que a quantidade é inimiga da qualidade continua a excluir as pessoas da educação superior brasileira. Sejamos claros: defender qualidade para poucos é coisa do passado; é elitismo; é privilegiar oligarquias. O país exige mais. Por fim, cabe registrar que o temor da Comissão Médica de 1971 de que a expansão das escolas médicas traria uma legião de médicos desempregados e que a profissão estaria banalizada e desprestigiada está assentado em mito. O fato é este: apesar da expansão havida nos últimos anos – política que valeu aos presidentes Lula e Dilma a oposição da categoria –, os médicos continuam devidamente empregados, com boa reputação profissional, e o prestígio dos cursos de medicina está patente na altíssima relação de candidatos por vaga a cada processo seletivo. Com tantos jovens querendo estudar medicina – sendo que um número imenso desses jovens está apto a acompanhar o curso com aproveitamento total –, é lamentável que os brasileiros continuem desesperadamente a procurar, não raro por meses a fio, por médicos que possam garantir o atendimento aos problemas mais simples de saúde. É lamentável também que o país aceite que se continue a infernizar a vida das populações de baixa renda, que não podem pagar por consultas particulares. Não tenhamos dúvida: esta decisão de proibir a abertura de novos cursos de medicina nada tem a ver com qualidade, como querem fazer crer os seus autores. Também não tem nada a ver com os interesses nacionais ou da população em geral. Trata-se de uma combinação da miopia política com o corporativismo estreito dos que ainda não aprenderam a olhar para o país e para o seu povo. Trata-se, enfim, de uma combinação perversa e criminosa que trará, nos próximos anos, impactos danosos e imperdoáveis para a saúde da população. Infelizmente, é o que se consegue quando o umbigo substitui o futuro. *Dilvo Ristoff foi diretor de Estatísticas e Avaliação da Educação Superior do INEP (2003 a 2008) e diretor de Políticas para a Educação Superior do MEC (2012 a 2015) Foto: Lula Marques