Organizados na capital paulista em torno do grupo Entregadores Unidos pela Base (EUB) e de outros coletivos semelhantes, os entregadores - trabalhadores que sobre duas rodas cruzam as grandes cidades brasileiras diariamente - convocam uma paralisação para o próximo final de semana contra as condições do trabalho por aplicativo. Já estão confirmadas as mobilizações do Breque dos Apps nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Piauí, Goiás e Rio Grande do Sul.
O movimento dá sequência a última paralisação, ocorrida em 9 de junho durante o feriado de Corpus Christi. Em paralelo, um Grupo de Trabalho do governo federal tem até o fim de setembro para apresentar uma proposta de legislação que regule o trabalho mediado por aplicativos no país. A ordem para tal elaboração partiu de um decreto presidencial assinado em primeiro de maio, no Dia do Trabalhador, e é justamente dos trabalhadores que partem as pistas para a melhor composição da legislação em questão.
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A próxima reunião do GT está marcada para 4 de julho, dois dias depois da paralisação deste final de semana cuja principal reivindicação é a criação do Projeto de Lei que obrigue os aplicativos a garantir uma taxa mínima de R$ 10 por entrega, um piso mínimo de remuneração para a categoria, o fim dos bloqueios de perfil que são frequentemente feitos sem justificativa, redução da idade de aposentadoria e limite de jornada de trabalho, com pagamento de horas extras. Agregam os entregadores que tais parâmetros de remuneração precisam contemplar acidentes, seguro e manutenção das motos.
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Além disso, também pedem o fim do ‘score’, que, no iFood, atrapalha a vida dos trabalhadores, uma vez que podem ser mal avaliados por situações em que não têm controle, como acidentes ou atrasos no próprio restaurante, sem que possam se justificar. As entregadoras, ou seja, o movimento que envolve as mulheres da categoria, está de acordo com todas as demandas e acrescenta a criação de banheiros exclusivos para elas como uma importante reinvindicação a ser colocada na mesa.
Em São Paulo, onde surgiu o chamado do EUB, a mobilização já começou na última segunda-feira (26), quando entregadores organizados fizeram ações de panfletagem nos pontos utilizados pela categoria em shoppings da capital. “E aí, mano, posso colar o cartaz da greve na sua bag?” E dessas ações os entregadores saíam para as entregas com o cartaz e informados a respeito das pautas reivindicatórias. Mas mais do que isso, vão fortalecendo laços de solidariedade.
A capital paulista terá, no próximo sábado, um ato dos entregadores cuja concentração foi marcada para as 9h na Praça Charles Miller, diante do estádio do Pacaembu. Além disso, devem haver travamentos em pontos de coleta de mercadoria, especialmente em shoppings.
Em Porto Alegre, o entregador Ângel Rosseti afirmou para o Brasil de Fato que a categoria irá fechar os principais hubs e pontos de coleta da cidade. No Rio de Janeiro os entregadores também prometem mobilizações contra o que consideram o “sucateamento e desvalorização da categoria”.
Ponta de lança da Uberização
Altemício do Nascimento tem 54 anos já era motoboy antes dos aplicativos tomarem de assalto as relações de trabalho da categoria. Motoboy “das antigas”, Altemício está há 30 anos nas ruas e tem os seus clientes fixos, que lhe pagam um pouco melhor do que os aplicativos. No entanto, não é todo dia que tem trabalho da parte deles e, para conseguir chegar ao fim do mês, liga três dos principais aplicativos de entrega nos dias que não marcou nada com os clientes.
“Os aplicativos chegaram e acabaram com nossos trampos. Antes era melhor, tinha bastante cliente, sempre tinha trabalho. Se pagava melhor e os clientes não reclamavam tanto. Hoje fui fazer um serviço de pegar um lustre na Consolação e levar para o Morumbi. Cobrei R$ 75 e a mulher não gostou do preço e quis chamar o aplicativo. Eu falei: ‘tudo bem senhora, se a senhora quer economizar 30 reais e correr o risco do seu lustre cair, quebrar, danificar, o azar é seu. Comigo, no particular, você pode confiar que são 30 anos na rua, que vou embalar direitinho e se ocorrer algum problema vou te ressarcir. Agora com o aplicativo, a senhora não tem essa garantia’. Vi a nota fiscal e o lustre era caríssimo. Ela entendeu que seria melhor fazer comigo e depois do serviço viu que podia confiar e virou minha cliente”, relata Altemício para ilustrar a concorrência desleal que os aplicativos estabelecem com o trabalho autônomo. Ele conta que no seu caso, após a chegada da chamada uberização, perdeu cerca de 70% dos clientes.
Altemício observa que os aplicativos dominaram o mercado e, mais do que ganhar dinheiro, trabalham indiretamente na desvalorização da categoria. Ele identifica tal processo na mentalidade e na conduta de muitos colegas mais jovens, que já começaram a vida tutelados pelas Big Techs. Por isso acha importante se mobilizar com os Breques dos Apps, como faz desde o início, em 2020, durante a pandemia.
“Tínhamos que nos valorizar mais e as vezes acho que os jovens não se valorizam. Levamos esse país nas costas, e principalmente São Paulo, durante a pandemia. Todo mundo trancado dentro de casa e nós nos ferrando para levar comida. Eu mesmo peguei essa doença e quase morri. Então, a gente precisa se valorizar. E a sociedade precisa entender que receber sua comida quentinha em casa, ou alguma compra, é um luxo, não um item básico, e valorizar isso também”, afirma.
Ele aponta uma série de dificuldades no cotidiano, desde o preço pífio de R$ 6 pago por corrida, além da frequente ocorrência de corridas duplas, os famigerados bloqueios sem justificativa, acidentes e manutenção. Sobre a principal reivindicação do Breque dos Apps deste final de semana, comenta que a legislação deve prever que os preços das entregam sejam tabelados, para evitar a precarização mediante concorrência de preços entre as big techs. O trabalhador enfatiza que os aplicativos não gastam nada com o serviço, por isso conseguem “competir” nos preços entre si, transferindo as perdas para a categoria.
Altemício aponta que as Big Techs da entrega têm condições de pagar melhor os trabalhadores, como fazem, por exemplo, em semanas chuvosas. Também aponta os bloqueios inexplicados e o sistema de score como principais obstáculos para uma condição de trabalho minimamente digna para uma profissão extremamente arriscada.
“Fiquei dois anos bloqueado pelo iFood e até hoje não sei a razão. Pela forma como tinha sido, parecia que alguém tinha me acusado de roubo. Precisei entrar com um processo para ser desbloqueado e mesmo assim eles não explicaram a razão do bloqueio. Me desbloquearam porque não tinham provas, me pagaram uma indenização, mas se eu não entro com uma ação, continuaria bloqueado até agora. Eles mesmos não souberam explicar o bloqueio”, relata.
Já o score é o sistema implantado pelo Ifood no fim do ano passado que dá notas semanais de 1 a 3 para os trabalhadores. Quanto menor a pontuação, menos pedidos ele pode ter. Altemício explica que se por qualquer razão, seja culpa do entregador ou não, o trabalhador for mal avaliado, o celular não vai tocar. Também aponta que o algorítimo tenta interferir na agenda dos profissionais.
“Se você não trabalha num sábado e domingo qualquer, no meio da semana pode ir fazer outra coisa, porque não toca o aplicativo. O cara fica 12h na rua e faz uma ou duas entregas. Como um pai de família vai sustentar uma casa assim?”, explica Altemício.
À jornalista Gabriela Moncau, o entregador Renato Assad, do EUB, tem acordo com Altemício na maioria dos pontos e explica que a atual paralisação é uma continuidade das mobilizações que foram vistas de forma inédita no Brasil em 2020. “Naquele momento ficou evidente para toda a população o grau de precarização que não se limita só aos entregadores”, avaliou Assad, que aponta que a categoria é uma espécie de laboratório da precarização do trabalho mediado por aplicativos.