Após ser acusado de espalhar desinformação, Mark Zuckerberg anunciou, em 2016, a implementação de um programa de verificação de fatos no Facebook e no Instagram. Agora, nove anos depois, ele reverteu sua decisão, encerrando o programa de checagem e classificando-o como um tipo de “censura” em uma distorção conceitual absurda em torno do termo "liberdade de expressão". A política de “notas da comunidade” será nos moldes do X, sem qualquer transparência.
Embora pareça uma mudança radical, não é a primeira vez que o CEO da Meta ajusta sua postura conforme a direção política do momento. Em janeiro de 2021, Zuckerberg bloqueou Donald Trump de fazer postagens nos aplicativos da Meta, dois dias após o ataque ao Capitólio dos EUA. Na ocasião, Zuckerberg afirmou que os “riscos” de permitir que Trump - que havia incentivado seus seguidores a agir após perder para Joe Biden nas eleições presidenciais - continuasse ativo no Facebook e no Instagram eram “simplesmente grandes demais”.
Quase quatro anos depois, a Meta desfez as restrições anteriores e permitiu que Trump retornasse, argumentando que era essencial que os cidadãos americanos tivessem acesso tanto às falas de Biden quanto de Trump durante a corrida presidencial de 2024. A própria Meta disse que as restrições a Trump em 2016 ocorreram por causa de "circunstâncias extraordinárias", dando a impressão de que a decisão tomada à época foi equivocada.
Durante o governo Biden, Zuckerberg foi mais aberto à remoção de determinados conteúdos, especialmente os relacionados à Covid-19, uma decisão que ele posteriormente disse lamentar, repetindo a mesma contradição.
“O que o Zuckerberg diz ao falar que defende a liberdade de expressão, na verdade, é defender o poder de quem é capaz de monetizar, impulsionar os seus conteúdos e basicamente colocar o discurso necessário à luta pelo poder. Então, esse discurso não tem nada a ver com a realidade, mas com os interesses políticos”, afirma em entrevista à Fórum o sociólogo Sérgio Amadeu, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) e um dos maiores especialistas em redes digitais do país.
Big techs saíram dos bastidores e subiram ao palco político global
Na mesma linha de Elon Musk, que declarou apoio explícito antes e durante a campanha de Donald Trump em 2024 e que agora é parte do seu governo, Mark Zuckerberg, com o anúncio, abre a possibilidade de uma “combinação de poder político e tecnológico que pode minar instituições democráticas”, diz o analista de dados Edgard Piccino. As plataformas se tornaram bases geopolíticas.
“É um alinhamento direto com o Musk e com o Trump, colocando-o na trincheira política da extrema direita. A medida facilitará a disseminação de desinformação e discursos de ódio, fortalecendo narrativas políticas favoráveis a Trump e ao neofascismo”, destaca o analista. Com o controle da informação e a manipulação de narrativas na mão de poucas corporações e líderes de extrema-direita, Musk e Zuckerberg “têm ferramentas para influenciar a opinião pública e silenciar vozes dissidentes”.
OpenAI, Meta, X, Amazon e Perplexity já somam contribuições milionárias ao fundo destinado à posse do futuro presidente dos EUA, Donald Trump. Cada uma dessas empresas, ou melhor, seus diretores-executivos, doou U$ 1 milhão (cerca de R$ 6 milhões), em um movimento que explicitou a aproximação das grandes empresas de tecnologia com o governo republicano, cuja posse está marcada para 20 de janeiro.
“Essa combinação de poder político e tecnológico pode minar instituições democráticas e consolidar um regime autoritário sob o pretexto de ‘liberdade de expressão’. A necessidade de regulação das redes sociais se tornou mais urgente do que nunca”
"Ditadura do capital"
Para Sérgio Amadeu, o que estamos vivendo é uma situação bastante clara de um avanço da extrema direita, liderado pelo trumpismo, “que passa a ser a figura dirigente do Estado capitalista mais importante, que vai aplicar a doutrina neoliberal de maneira irrestrita, totalitária”, comenta o sociólogo. “Se o fascismo histórico foi corporativo nos anos 30, 40 do século XX, o fascismo hoje é neoliberal, ele tem uma faceta completamente voltada à destruição de direitos e a colocar o Estado a serviço integral das grandes corporações”.
“Podemos falar que é uma ditadura do capital financeiro, que quer se reproduzir a qualquer custo, usando todos os recursos tirados da sociedade para essa reprodução capitalista. Então, nesse sentido, você pode dizer que é uma grande ação que está sendo operada e que não é escondida. Eles falam isso abertamente”
De acordo com Piccino, o posicionamento do Zuckerberg contra as regulamentações internacionais, em especial as da Europa e da América Latina, “é uma clara afronta aos estados nacionais e uma tentativa de subjugar os países através do poder das plataformas digitais, com apoio do governo Trump. Em médio prazo, a Meta pode enfrentar pressões regulatórias, o que pode descontentar acionistas e impactar suas receitas. Entretanto, no curto prazo, a medida pode aumentar o engajamento e as receitas publicitárias”, completa.
O deputado federal Alencar Santana (PT-SP) afirmou nesta terça-feira (7), por meio de suas redes sociais, que a Câmara dos Deputados vai convidar o representante da Meta (Facebook, Instagram e WhatsApp) para explicar as mudanças nos filtros de segurança na plataforma.
"Estamos diante de um retrocesso gigantesco em matéria de direitos humanos. O anúncio feito pelo dono da Meta acende um sinal de alerta porque essa nova orientação das plataformas tem potencial de mandar boa parte da humanidade de volta ao obscurantismo da Idade Média. E não poderemos aceitar isso passivamente”, escreveu o parlamentar no X.
Em entrevista exclusiva à Fórum, Alencar disse que a regulação das plataformas, discutidas no projeto de lei 2630/2020, a chamada PL das Fake News e que ainda enfrenta obstáculos para avanço na tramitação, se torna ainda mais necessária. “É preciso avançar bastante na regulação das plataformas para que não haja qualquer zona cinzenta que deixe margem para abusos. O Brasil não é terra sem lei e as redes sociais não são um ringue de vale tudo”, reforça o deputado.
Um dos maiores obstáculos hoje é o Congresso Nacional, segundo o sociólogo Sérgio Amadeu. “O Brasil tem parlamentares de extrema direita numerosos e tem também gente que é capaz de compor com as big techs por interesses menores, como é o caso do Centrão”, analisa ele sobre as fake news serem o principal instrumento ideológico da direita.
Uma outra reportagem da Fórum revelou que os maiores anunciantes políticos do Brasil são ultraconservadores, de acordo com um levantamento da organização especializada em pesquisa de comunicação digital, Projeto Brief, iniciativa vinculada à Quid. O estudo apontou que, entre 2020 e 2024, os 20 maiores anunciantes conservadores gastaram 3,3 vezes mais do que os progressistas com anúncios políticos.
“Se tivermos uma explosão de conteúdos que violam direitos humanos e a nossa legislação e, diante disso, a empresa se mantiver omissa, teremos que tomar sérias medidas”, adiantou Alencar, que relembrou os ataques de Musk ao Brasil no ano passado. “Temos o exemplo muito recente do X/Twitter, cujo dono é um militante ativo da extrema direita que não tem qualquer pudor de interferir na política interna dos países, como fez com o Brasil e como tem tentado fazer com a Alemanha”.
O político observa que o anúncio de Zuckerberg, nessa medida, afeta a soberania dos países. "O Brasil tem uma legislação muito forte na proteção aos direitos humanos, sobretudo de segmentos e grupos vulnerabilizados ou que sejam alvo frequente de práticas que violem os seus direitos, como as mulheres, a população negra, a comunidade LGBT, as crianças e adolescentes, entre outros. Na medida em que as redes da Meta poderão se tornar vetores de promoção de discursos de ódio, desinformação e incitação a crimes, que é o que esse afrouxamento dos mecanismos internos de monitoramento poderá causar, temos aí uma empresa estrangeira que estaria sendo um instrumento muito nocivo e deletério para a nossa sociedade e para a democracia", diz.
“Sem dúvida esse anúncio vem em função do retorno de Donald Trump à Casa Branca, que agora será o QG central da “causa branca” da extrema direita no mundo”
Importante destacar que o termo "fake news" ganhou notoriedade durante a campanha presidencial dos EUA em 2016, quando centenas de sites passaram a divulgar histórias falsas ou fortemente tendenciosas que favoreciam Donald Trump, muitas vezes com o objetivo de lucrar com receitas de publicidade nas redes sociais e para que ele ganhasse voto.
Popularizado pelo próprio, o termo fake news tornou-se comum com o passar dos anos. Com o aumento da disseminação de notícias falsas, também ocorreu o crescimento do uso do termo "pós-verdade". Em 2016, o Oxford Dictionaries escolheu "pós-verdade" como a palavra internacional do ano. Esse conceito refere-se a "circunstâncias em que fatos objetivos têm menos influência na formação da opinião pública do que apelos à emoção e às crenças pessoais".
Fake news sem fim: jogo é pela atenção
Juntas, as plataformas da Meta somam em torno de 3,3 bilhões de usuários ativos por dia. No Brasil, são mais de 100 milhões de brasileiros em contato e interação pelo Facebook e Instagram todos os dias e afetados pelos algoritmos e atualizações da empresa americana. O país é o quarto maior em usuários de Facebook no mundo (atrás da Índia, EUA e Indonésia) e o terceiro no Instagram (Índia e EUA são os primeiros). As fake news na plataforma já eram incontroláveis e, sem os programas de checagem, é como tirar uma pequena barreira para liberar de forma total a essa desinformação já disseminada.
A reportagem da Fórum perguntou ao especialista em redes sociais como as grandes empresas de tecnologias lucram com ódio e desinformação. Sérgio Amadeu destaca que as plataformas atuam numa certa “economia da atenção”, um conceito do economista Herbert A. Simon em 1970, e que hoje descreve a política econômica das big techs. “Elas querem que na rede proliferem conteúdos que são mais chamativos, ou seja, mais espetaculares. E o que tem ocorrido é que os algoritmos são organizados para poder privilegiar os discursos espetaculares. Não necessariamente o discurso verdadeiro e muito menos o discurso que traz características mais completas da realidade”.
Ainda segundo o sociólogo, as corporações que controlam as redes sociais online retiram o perfil das pessoas, “coletam dados das ações que as pessoas têm na rede para decodificar ou para conhecer o comportamento, os gostos, os interesses dessas pessoas. E com base nisso, elas oferecem conteúdos que são mais propensos a chamar a atenção dessas pessoas”, completa.
“Privilegia os discursos simplistas, os discursos que são, na verdade, exagerados. E, obviamente, são componentes da desinformação que interessam a extrema direita. É por isso que as big techs querem manter as pessoas num nível de engajamento e de presença na plataforma grande, porque, num nível grande, além de conhecer melhor também o que interessa às pessoas, as pessoas podem estar mais tempo disponíveis para receber anúncios e conteúdos”
Ele explica que, seja um comercial ou publicação de políticos, a viralização nas redes sociais é feita não com posts orgânicos ou com disseminação voluntária de conteúdos, mas através de impulsionamento pago. “As redes estão preocupadas em monetizar aquilo que é a sua ação, trazer dinheiro para os acionistas dessas plataformas que são os grandes grupos de investimento do capital financeiro”, detalha Sérgio Amadeu.