MASCULINIDADE EM CRISE

“Adolescência”: levantamento mostra como TikTok alimenta misoginia entre brasileiros jovens

Pelo menos 50% dos meninos com idades entre 9 e 17 anos acessam rede social diariamente; plataforma tem recorde de denúncias de perfis por discriminação contra mulheres, segundo a SaferNet

Meninos jovens são os maiores alvo dos redpills.Créditos: Pexels
Escrito en TECNOLOGIA el

Segundo dados da SaferNet, organização dedicada à defesa dos direitos humanos na internet, o TikTok é uma das principais plataformas associadas a conteúdos misóginos no mundo. Desde 2020, a rede social figura entre os dez domínios mais denunciados por violência ou discriminação contra mulheres, liderando o ranking em 2021 e 2022. Foram 3,3 mil denúncias do aplicativo em 2022.

A internet está presente na vida de 9 em cada 10 brasileiros com idades entre 9 e 17 anos. O TikTok é acessado diariamente por 50% deles, segundo um levantamento da TIC Kids Online Brasil 2024. No grupo de 11 a 17 anos, 22% dos jovens relataram que o uso excessivo da rede interfere negativamente na convivência familiar, nas amizades e no desempenho escolar. Especialistas defendem que a exposição prolongada às redes sociais representa um risco para o desenvolvimento saudável da identidade na adolescência.

Como mostrou a série ‘Adolescência’ - que não pergunta quem cometeu o crime, mas sim, por quê - os movimentos incels nas redes sociais são a ponta do iceberg no fortalecimento da cultura do ódio contra as meninas e mulheres e consequentemente a violência, tendo como principais alvos meninos e homens brancos. Diante da falta de atenção parental e da pressão social para se enquadrar no ideal de “masculinidade”, da insegurança em relação à própria aparência e do desejo de ser reconhecido pelas mulheres, Jamie acaba se radicalizando por essa ideologia incel, que prega o homem como "vítima" das mulheres.

Levantamento faz caminho de meninos jovens pelo TikTok

Durante dois meses, foi realizado um monitoramento pelo Núcleo Jornalismo e pela Revista AzMina com recorte para a rede TikTok, para entender a influência da rede em adolescentes no que diz respeito à formação de valores e posicionamentos políticos, através de dois perfis fictícios que simulavam meninos de 10 e 14 anos. Leia mais na Revista Azmina.

O levantamento constatou que conteúdos misóginos são comuns na plataforma — mas começam de forma sutil, bem diferente das falas agressivas de influenciadores como Andrew Tate, conhecido por defender ideias red pill e acusado de tráfico humano. O algoritmo começou entregando vídeos que enalteciam a sonegação fiscal, com referências a Neymar e valorização de igrejas evangélicas. Depois, vieram conteúdos de incentivo pessoal e autoajuda, seguidos por vídeos sobre violência policial.

Gradualmente, o feed evoluiu para conteúdos abertamente misóginos, que falam sobre o “valor do homem”, defendem a submissão das mulheres e promovem ideias de desprezo e ódio. Além disso, canais no Youtube acumulam bilhões de visualizações e transformam discursos tóxicos em uma indústria altamente rentável com conteúdos que desumanizam mulheres, como mostra essa reportagem da Fórum.

‘Machosfera’ e a masculinidade em crise

Canais da chamada machosfera, que promovem ataques à igualdade de gênero e desumanizam mulheres, acumulam bilhões de visualizações enquanto geram receitas entre R$ 69 mil e R$ 71 mil por meio de e-books, cursos, consultorias e doações via Super Chat.

Além de lucrar com a toxicidade, esses criadores utilizam estratégias sofisticadas de monetização, ampliando sua influência e reforçando estereótipos em um ecossistema digital pouco regulado. É o que mostrou o relatório "Aprenda a evitar ‘este tipo’ de mulher: estratégias discursivas e monetização da misoginia no YouTube”, do Observatório da Indústria da Desinformação e Violência de Gênero nas Plataformas Digitais, produzido pelo NetLab da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

O levantamento revelou a amplitude e a lucratividade de conteúdos misóginos no YouTube brasileiro a partir da análise de mais de 76 mil vídeos publicados em 7.812 canais entre 2018 e 2024.

LEIA AQUI: Misoginia lucrativa: como a ‘machosfera’ monetiza o ódio no YouTube

Conteúdos disfarçados de autoajuda e "pertencimento"

O levantamento do Núcleo e Azmina revela que grande parte dos criadores de conteúdo no TikTok que apareceu no feed de um dos perfis fictícios apresentava comparações entre homens e mulheres disfarçadas de mensagens motivacionais ou de autoajuda. Em vídeos com tom religioso, era comum ouvir que os meninos deveriam “cultivar virtudes” e “ser homens de valor” para conquistar uma “mulher de valor”, moldando a mente de meninos para o uso da força e da submissão contra meninas e mulheres para assim, "reforçar" a própria masculinidade.

Já nas escolas, as trends (tendências) mais populares entre os adolescentes incluem vídeos de dança e discursos enviesados sobre política e economia com conteúdos machistas por trás. De acordo com a professora de história do Ensino Fundamental e Médio, Keilla Vila Flor, entrevistada pelo levantamento, a misoginia aparece com mais força entre meninos de 11 a 15 anos, faixa etária marcada pela puberdade e entrada na adolescência. Nesse contexto, meninas passam a ser alvo de piadas, bullying e comentários depreciativos, principalmente sobre mudanças no corpo como o desenvolvimento dos seios.

Ainda de acordo com o estudo, em nenhum momento o TikTok bloqueou ou restringiu o acesso a esses conteúdos, que continuaram sendo exibidos na aba For You mesmo para perfis de menores de 18 anos. Mesmo com as diretrizes que prometem proteger menores de idade, como a privacidade automática para perfis de adolescentes com menos de 16 anos, a investigação revelou que essas barreiras são frágeis. A troca para perfil público foi feita sem obstáculos.

Desde novembro de 2024, o TikTok está sendo investigado pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) por conta do recurso que permite assistir a vídeos sem criar uma conta. O órgão avalia que essa funcionalidade pode comprometer a segurança digital de usuários com menos de 18 anos.

Mesmo sem evidências de que o algoritmo favoreça esse tipo de conteúdo, o simples fato de recomendá-lo já contraria as próprias diretrizes do TikTok voltadas à proteção de crianças e adolescentes. Segundo dados da própria plataforma, entre julho e setembro de 2024, mais de 5,3 milhões de vídeos foram removidos no Brasil — sendo 98,8% por ação proativa e 89,7% dentro de 24 horas após denúncia.

O TikTok também afirma adotar medidas voltadas à proteção digital de adolescentes. Entre elas, estão uma cartilha informativa elaborada em parceria com a SaferNet — voltada a pais e responsáveis — e a funcionalidade de Sincronização Familiar, que possibilita o controle parental das contas.

Após assistirem à série Adolescência, pais, mães e internautas ficaram chocados com as consequências devastadoras da masculinidade tóxica sobre meninos ainda tão jovens — especialmente quando ninguém sabe o que eles consomem sozinhos, atrás de portas fechadas. A reação imediata foi culpar a “criação”, uma responsabilidade que, quase sempre, recai sobre as mulheres, especialmente no cuidado com as emoções.

Enquanto isso, os homens adultos, que deveriam estar presentes nessa construção, muitas vezes não conseguem lidar com suas próprias dores. Se "calam" e explodem por não poder falar o que sentem e passam isso para os filhos. A ausência de conversas sobre masculinidades no cotidiano — seja em casa, na escola ou nos vínculos afetivos — abre espaço para que discursos virtuais reforcem estereótipos e distorções.

Educação midiática e de gênero precisa alcançar jovens

Especialistas afirmam que a educação midiática em casa e nas escolas é crucial para que jovens naveguem de forma crítica pela internet. No Brasil, a maioria dos adolescentes com 15 anos ou menos não consegue separar fatos de opiniões, segundo a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)

"Na medida que o cidadão, o jovem, passa a saber reconhecer a informação, saber o propósito daquela informação que chega até ele, saber reconhecer a fonte,  o porquê que aquela informação chegou até ele, saber fazer uma busca, saber verificar de onde veio aquela informação, adquirindo as competências para saber produzir conteúdo - de modo que ele se aproprie da tecnologia para melhorar sua autoinstrução, melhorar o seu protagonismo -, ele vai participar melhor da sociedade", destacou a presidente do Instituto Palavra Aberta, Patricia Blanco, à Agência Brasil.

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