Os herdeiros de Pilatos: do Cristo torturado ao cristão torturador

Podemos pensar na possibilidade do cristão estar do lado do torturador e não do torturado. Muitos deles, são mais seguidores de Pilatos que de Cristo, pois preferem estar do lado daquele tortura, jamais do que sofre

Reprodução
Escrito en COLUNISTAS el
Embora seja uma questão complicada para muitos, ou até mesmo contraditória, não é tão difícil de entender porque é que um cristão seria a favor da tortura, ou mesmo da morte de outros. Primeiro que o sacrifício, a morte cerimonial, é a base das primeiras religiões do mundo. De acordo com Barbara Ehrenreich, a morte ritualizada foi “provavelmente a forma que os seres humanos tinham de se aproximar do transcendental”.[1] Por outro lado, a morte na cultura judaica nunca foi um problema, já que toda vez que o mundo ordenado por Yahweh entrava em caos, este não pensava duas vezes em aniquilar a humanidade (ou parte dela). E, ainda assim, os seres humanos que sobreviviam continuavam a ter fé Nele, isto porque, cabe lembrar, Yahweh foi o primeiro deus que não era abandonado em caso de derrota militar ou catástrofe. Outros povos do crisol Sírio-palestino não titubeavam em abandonar o seu deus tutelar.[2] Em Romanos 1:32, Paulo lembra que os homossexuais são dignos de morte de acordo com o juízo de Deus. Mas essa ainda não é a questão que trago para a reflexão. O cristianismo, os mandamentos de Cristo, são abertos para inúmeras interpretações, inclusive é possível defender as minorias já que a seita de Jesus era composta por elas. Contudo, uma interpretação sobre a dor durou por muito tempo na mentalidade do mundo Ocidental. A Idade Média banalizou a dor. O sacrifício de Cristo, todo o seu sofrimento para salvar a humanidade, fez da dor um caminho para a verdade. Para os torturadores da Inquisição, a tortura não era um ato de violência, ou uma maldade. Acreditava-se que se uma pessoa sofresse como Jesus sofreu seria impossível dela mentir. A dor de Cristo revelou a verdade. Foi sofrendo que ele morreu e três dias depois deu-se o milagre que fundamenta o cristianismo: a Ressurreição. Torturar um infiel era uma maneira de levá-lo a redenção, de confessar que pecou e que jamais irá pecar. Torturar-se a si mesmo era uma forma de se aproximar de Cristo. O que explica o autoflagelo. Mentir sob tortura, sofrendo como Cristo seria impossível. Sabemos a tortura foi usada durante o período militar para extrair a “verdade” que os militares queriam, inclusive torturavam crianças na frente dos pais para isso (uma espécie de dor mais sofisticada). E o mesmo fazem os soldados americanos no Oriente Médio, o que não é novidade para ninguém. A questão é que por longos anos a Igreja interpretou a dor da seguinte forma, coloca Roselyne Rey: “aprender a suportar a dor como um dom de Deus e um sacrifício que aproxima o fiel do Cristo, como um meio de redenção”.[3] Era uma maneira de “oferecer seu sofrimento a Deus e de lhe provar seu amor”. É muito curiosa essa ideia do “machão” que não sente dor. Na verdade a origem do não sentir dor não tem a ver com a virilidade, mas em ser um bom fiel. A história do duque de Guise, Henri le Balafré, é ilustrativa. Ele deixou que lhe retirassem uma lança que lhe atravessara o rosto de um lado ao outro, reagindo com um único “Ah!” de sofrimento. Enfim, um cristão defender a tortura não é algo incompatível, pelo contrário, faz um enorme sentido. Por mais dessacralizado que o mundo ocidental seja hoje, essa questão é uma das heranças deixada pela fé, que ainda habita a mentalidade de muitos que se dizem temente à Deus. Existe até mesmo uma concepção teológica que afirma que Jesus deveria sofrer, ser torturado, pois foi uma determinação de Deus. Ou seja, sua tortura foi a mando de seu pai. É como escreveu de forma radical Mikhail Bakhtin: “...um Deus de amor, após ter atormentado a existência de alguns bilhões de pobres seres humanos e tê-los condenado a um eterno inferno, sentiu piedade e para salvá-los, para reconciliar seu amor eterno e divino com sua cólera eterna e divina, sempre ávida de vítimas e de sangue, ele enviou ao mundo, como uma vítima expiatória, seu filho único, a fim de que ele fosse morto pelos homens”. Deste modo, podemos pensar na possibilidade do cristão estar do lado do torturador e não do torturado. Muitos deles, são mais seguidores de Pilatos que de Cristo, pois preferem estar do lado daquele tortura, jamais do que sofre.   [1] EHRENREICH, Barbara. Ritos de sangue: um estudo sobre as origens da guerra. Rio de Janeiro: Record, 2000. p. 32 [2] COHN, N. Cosmos, caos e o mundo que virá. São Paulo: Cia das Letras, 1996. p. 191. [3] ROSELYNE, R. A história da dor. São Paulo: Escuta, 2012. P. 72.