Vítimas do Kit Covid devem pleitear indenização por danos morais, diz advogado

Normando Rodrigues traça um paralelo entre o Holocausto nazista e o genocídio brasileiro durante a pandemia e aponta a necessidade de responsabilização do governo Bolsonaro

Foto: Reprodução
Escrito en CORONAVÍRUS el

A pandemia do coronavírus, considerada a maior tragédia sanitária brasileira, foi responsável pela morte de 613.066 pessoas no país, até esta terça-feira (23). Embora a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) não tenha usado, em seu relatório final, a palavra por alegar implicações jurídicas, Jair Bolsonaro se comportou como um autêntico genocida.

Justificativas para qualificar o presidente desta forma não faltam. Afinal, ele subestimou a pandemia de forma proposital; atacou as estratégias para conter o coronavírus; sabotou o auxílio emergencial; atrasou a vacinação; investiu em remédios que não têm eficácia contra a doença, como cloroquina, ivermectina, proxalutamida, entre outros. O chamado Kit Covid.

As vítimas desses medicamentos ineficientes e até prejudiciais, ou suas famílias, em caso de óbito, teriam possibilidade de pleitear na Justiça indenizações por danos morais?

Para o advogado Normando Rodrigues, isso é possível e necessário, “para que no futuro atitudes criminosamente irresponsáveis, como essa, não se repitam”.

Normando, bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e assessor da Federação Única dos Petroleiros (FUP), traça um paralelo entre o genocídio brasileiro e o Holocausto nazista, durante a Segunda Guerra Mundial.

Normando alerta para a necessidade de responsabilização de Bolsonaro em relação às mais de 600 mil mortes e cita os julgamentos de Nuremberg, uma série de tribunais militares, organizados pelos aliados, após a Segunda Guerra Mundial, referentes aos processos contra 24 líderes nazistas.

Os julgamentos, a cargo de um Tribunal Militar Internacional, ocorreram na cidade de Nuremberg, na Alemanha, entre 20 de novembro de 1945 e 1 de outubro de 1946. Após 219 sessões, dos 24 julgados, 12 foram condenados à morte, três pegaram prisão perpétua, dois tiveram de passar 20 anos na prisão, um pegou 15 anos e outro 10 anos.

Nuremberg serviu como base para a criação do Tribunal Penal Internacional (TPI), com sede na cidade de Haia, na Holanda. A propósito, a juíza Sylvia Steiner, única brasileira que fez parte do TPI, entre 2003 e 2016, declarou que “há prova abundante” contra Bolsonaro no caso da condução criminosa dada à pandemia da Covid-19 no país.

Fórum: Qual a importância histórica dos julgamentos de Nuremberg, que tiveram início em 20 de novembro de 1945?
Normando Rodrigues:
Nuremberg se tornou um marco tanto por conta da racionalização do Direito, quanto por legitimar a natureza político-jurídica dos julgamentos de crimes de guerra, contra a paz e contra a humanidade. Até então, a responsabilização por tais crimes ficava contida pela dimensão da vingança, da “justiça dos vencedores”. Foi com esse espírito que o Paraguai foi condenado a pagar “dívidas de guerra” ao Brasil, de 1870 a 1943, quando Vargas perdoou o débito. Do mesmo modo, as perdas territoriais e as reparações de guerra impostas à Alemanha pelo Tratado de Versalhes, em 1919, eram sementes vingativas das quais brotaria uma nova e ainda mais terrível guerra, como na época alertou Keynes. Nuremberg rompe com esse padrão e fixa o importante precedente das implicações individuais por crimes de guerra e contra a paz, mas, sobretudo, por crimes contra a humanidade. Não se trata de “revanchismo”, como gritam aqueles nossos bravos militares, que se borram de medo das consequências de seus atos, mas da afirmação dos mais sagrados direitos de um povo.

Fórum: É possível traçar um paralelo entre o Holocausto da Segunda Guerra Mundial e o genocídio brasileiro durante a pandemia do coronavírus, causado pela irresponsável atuação do governo Bolsonaro?
Normando Rodrigues:
Gostaria que não existisse nenhum dos três paralelos mais importantes. O primeiro dos quais consiste no próprio crime contra a humanidade, que se materializou na constante desumanização da população, praticada por Bolsonaro, e nos experimentos medicamentosos em humanos, realizados em Manaus, clínicas da Prevent Senior, hospitais da Brigada Militar (RS) e em muitos outros locais. O segundo ponto em comum é o crime de genocídio, também praticado por Bolsonaro. O Holocausto foi a dantesca razão de ser da criação internacional deste tipo penal, na Convenção de Londres, de 1948, e na lei brasileira, oito anos depois. E, finalmente, o terceiro traço identitário diz respeito à ideologia, à visão social de mundo, do criminoso: Bolsonaro não é “neo” nem “oide”, mas um fascista clássico, como qualificou Vladimir Safatle.

Fórum: O que achou das conclusões do relatório da CPI da Pandemia em relação a essa questão?
Normando Rodrigues:
Embora bastante amplo, o relatório foi até os limites dos compromissos políticos que o determinaram, e por esta razão deixou de fora o crime de genocídio, apesar de a tipificação estar muito evidente: “Negação do direito à vida de grupos humanos“, sejam estes “raciais, religiosos, políticos ou outros”, que tenham sido destruídos “no todo ou em parte”. Infelizmente, a hesitação dos parlamentares quanto à explicitação do genocídio tem por consequência o atual processo de “normalização” de Bolsonaro e de seus crimes, conforme a conveniência dos que ainda apoiam o monstro.

Fórum: Diante do cenário trágico e da irresponsabilidade de Bolsonaro na condução da pandemia, é possível que pacientes e parentes de medicados com o Kit Covid, estimulado pelo governo e que oferecia remédios sem eficácia contra a doença, tenham direito a pleitear indenizações por danos morais?
Normando Rodrigues:
Não só é possível, como necessário, para que no futuro atitudes criminosamente irresponsáveis, como essa, não se repitam. As falas de um chefe de Estado não revelam apenas sua individualidade - no caso tosca, semicivilizada e, segundo muitos, psicótica. O chefe de Estado encarna o próprio Estado. Assim, as recomendações de Bolsonaro a favor de tratamentos contra a Covid-19 não somente inócuos, como até hepatotóxicos, e suas contraindicações à vacinação (sobretudo hipócritas, porque ele se vacinou), podem ser lidas como falas do Estado brasileiro. O Ministério Público Federal já ajuizou ações civis públicas contra a União, por fundamentos semelhantes. No entanto, é muito importante que os diretamente lesados por Bolsonaro, ou os familiares das vítimas de suas recomendações, o façam.

Fórum: Como devem agir as pessoas que se enquadram nessa situação?
Normando Rodrigues:
É fundamental que se tenham as provas das medicações consumidas (receitas médicas, notas fiscais etc.) e dos danos causados. Laudos médicos que associem a causa (ivermectina ou proxalutamida, por exemplo) aos efeitos (hepatite medicamentosa, ou outros efeitos) serão essenciais. Feito isso, deve-se procurar um advogado comprometido com o combate a essas monstruosidades.