Coronavírus e o colapso da sociedade 24/7

A atenção agora é redobrada aos comportamentos dos Estados e dos mercados, abalando de forma talvez paradigmática a hegemonia discursiva do neoliberalismo autoritário que nos últimos anos estava se consolidando

Foto: Agência Brasil/Tyrone Siu
Escrito en OPINIÃO el

Por Luciana Ballestrin, professora associada de Ciência Política do Programa de Pós-graduação em Ciência Política & Curso de Relações InternacionaisInstituto de Filosofia, Sociologia e Política
Universidade Federal de Pelotas

Existe uma grande probabilidade de a pandemia do coronavírus ser futuramente enquadrada como um acontecimento traumático do século XXI. Conceito utilizado da História à Psicanálise, a noção de trauma pode auxiliar no entendimento sobre o impacto que as medidas de contenção do Covid-19 possuirão nas esferas social, econômica e política, considerando inclusive dimensões históricas e subjetivas. É prematuro e imprudente proferir sentenças eivadas de futurismo apocalíptico, mas o observador atento às dinâmicas interpessoais contemporâneas é tentado a pensar as consequências deste momento particular das vidas globais como um importante divisor de águas de algumas histórias – e aqui podemos pensar a história da globalização neoliberal em particular.

Faz poucos dias que a transmissão do coronavírus foi decretada como pandemia global, atingindo quase a totalidade dos países que atualmente compõem o sistema internacional. A ideia de totalidade não deve ser reservada aos Estados nacionais atingidos, mas também às múltiplas dimensões da vida neste momento reduzidas à preocupação da sobrevivência e integridade mais fundamental. Também quase a totalidade dos media se ocupam em transmitir notícias de uma realidade pandêmica, não inédita em termos de ocorrência histórica, mas inédita em termos da modernidade reflexiva. Em termos sociológicos, isto significa que parcela importante da população mundial está neste exato momento consciente da possibilidade da abreviação de sua morte individual ocasionada pela contração e manifestação impiedosa desta nova modalidade gripal – tão corriqueira e rotineira das vidas humanas na Terra.

A percepção totalizante da realidade que o coronavírus nos impõe, considerando o estímulo de diferentes atores nesta conformação, inaugura diferentes possibilidades de perspectivas, enquadramentos e sentimentos dantes desconhecidos. Em um nível subjetivo, relatos sobre estranheza, ansiedade, medo e paranoia são relatados, demandando a prestação de consultas psicológicas virtuais para não pacientes. O confinamento e o isolamento social através da quarentena, compulsória ou não, eleva à potência máxima a virtualidade das relações interpessoais e intersubjetivas, impondo como penalidade máxima a possibilidade de contaminação, eventualmente letal, em caso da quebra do protocolo – a não aproximação e contato físicos, inclusive entre familiares.

Expondo todos os tipos de desigualdades entre países e pessoas, uma característica tipicamente biológica adquire e improvisa um sentido de humanidade comum, cada vez mais perdido em tempos do império do indivíduo: a fragilidade e vulnerabilidade das pessoas, independentemente de nacionalidade, gênero, etnia, classe social e faixa etária.

Obviamente, isso não significa que todas elas terão as mesmas condições de autoproteção, mediante à velocidade do contágio, aos grupos de riscos e à indiferença estatística. Haverá profunda diferença nas chances de sobrevivência nos países democráticos e com estados de bem-estar social minimamente operantes, considerando-se a importância da situação econômica das nações atingidas, mas não só. A transformação de um vírus em um inimigo comum tem apelado frequentemente às lembranças da guerra, frequentemente a Segunda Guerra Mundial, como forma de preparar mentes e corações para os sacrifícios e as catástrofes que estão a caminho.

Há muitas metáforas possíveis de serem pensadas acerca do perigo mortal proporcionado por sem número de inimigos invisíveis a olho nu, cuja profilaxia da limpeza e desinfecção atinge os lugares mais impensáveis e improváveis. É como se a vida de milhões de pessoas, a economia de centenas de países, a marca histórica de uma geração, o estado psíquico e as relações afetivas fossem agora condicionadas pela onipresença de um agente microscópico que determina os parâmetros da ação individual e coletiva em um nível global.

A suspensão da realidade, o colapso temporal, a perspectiva totalizante e o deslocamento do que é vital são sensações mais ou menos compartilhadas e racionalizadas. A atenção agora é redobrada aos comportamentos dos Estados e dos mercados, abalando de forma talvez paradigmática a hegemonia discursiva do neoliberalismo autoritário que nos últimos anos estava se consolidando. O momento histórico não poderia ser o pior para a pandemia: o declínio das democracias em nível global se relaciona com a ascensão de governantes autoritários, sedentos de pretextos e justificativas para o fechamento dos seus regimes políticos particulares – é o Estado de calamidade, de emergência, de exceção. A proteção estatal da saúde pública, no contexto aberto do viver ou morrer, pode cobrar um sacrifício hierárquico da liberdade individual em detrimento da coletiva.

O coronavírus representa o colapso da sociedade 24/7, da temporalidade acelerada, da produção não comedida, da ausência do prazer autêntico e do impulso artificial da serotonina. Na lógica 24/7 impera o ápice da sofisticação produtiva e do individualismo, em uma monotonia semanal sequestradora de outras formas de viver o mísero tempo livre afora as horas de trabalho, crescentemente precário e exaustivo. A desaceleração agora foi autorizada pelo próprio sistema. Estamos “livres” para refletir, dormir e sentir saudade daquilo que dificilmente voltará a ser como antes – sem culpa e com medo.

Permanecem circulando nas megalópoles globais, ineditamente requisitados como pontinhos de luz, os trabalhadores e trabalhadoras dos aplicativos ao estilo Uber Eats. Generosidade, solidariedade, fraternidade: é hora de recuperar a humanidade perdida.