Quem são aqueles que desobedecem à quarentena e como dialogar com eles, por Rafael Moreira

A quarentena é uma realidade que veio para ficar ainda por algum tempo, e quanto menos as pessoas aderirem a ela, por mais tempo ela será prolongada, levando em última instância ao completo lockdown

Foto: José Cruz/Agência Brasil
Escrito en CORONAVÍRUS el

Por Rafael Moreira*

Observando a quantidade de pessoas que não tem adotado as medidas de distanciamento social em muitas cidades como medida de combate à COVID-19, comecei a me questionar qual seria o perfil dessas pessoas que têm ido às ruas. Excluídos os profissionais das categorias consideradas essenciais, que têm cumprido um papel fundamental no momento atual e devem ter garantido o seu direito de circulação, decidi fazer um exercício teórico-mental sobre o assunto, colocando-me no lugar dessas pessoas e criando diferentes categorias pros diferentes perfis daqueles que têm se rebelado contra a quarentena.

A partir desse exercício, com a definição das características de cada categoria, o objetivo secundário deste artigo seria também permitir às pessoas uma reflexão sobre a importância de se criarem redes de solidariedade no momento atual, assim como estabelecer canais de diálogo com aqueles “rebeldes” sempre que isso for possível, para que entendam o que está em jogo com o distanciamento social. Nesse sentido, creio que aqueles que têm desrespeitado as medidas de distanciamento social podem ser agrupados em quatro grandes categorias: os “alienados”, os “necessitados”, os “individualistas”, e os “adoradores”.

O primeiro grupo com o passar do tempo passou a ser o minoritário. Com o permanente bombardeamento de informações que recebemos dos veículos de comunicação (a “infodemia”, torna-se praticamente impossível estar alheio a tudo que tem acontecido em nosso país e no mundo quanto à pandemia. Além disso, as mudanças de hábitos por parte da população, sejam elas impostas ou voluntárias, contribuem também para isso. Afinal, seria impossível não notar que tem aumentado a quantidade de pessoas que circulam pelas cidades usando máscaras nos últimos meses.

A segunda categoria, a dos necessitados, parece ser aquela que mais cresce. O cenário social que tínhamos em nosso país antes da chegada da pandemia já era catastrófico, e incluía: uma desigualdade social crescente; crescimento da quantidade de pessoas em condição de extrema pobreza; um índice de desemprego extremamente elevado; altos índices de informalidade dentre aquelas pessoas que estavam empregadas; e aumento da população em situação de rua. Assim, era de se esperar que, com o passar do tempo, as pessoas nessas condições ou não teriam como adotar o distanciamento social ou se veriam forçadas a sair de suas casas para tentar obter alguma fonte de renda, ainda que ela seja extremamente incerta (devido a menor quantidade de pessoas circulando) e colocando suas próprias vidas em risco. A quantidade de pessoas nessas condições vem crescendo, sobretudo nos bairros mais periféricos, conforme o governo vem retardando o pagamento do auxílio emergencial a elas, um auxílio que, vale lembrar, pela proposta inicial seria de apenas 200 reais e que aceleraria ainda mais o crescimento no número de necessitados. Assim, pouco a pouco tem sido muito mais a classe social do que a idade o fator preponderante pra definir quem se salva de uma contaminação com a COVID-19, afinal, quem tem fome não pode esperar.

O terceiro grupo como o próprio nome deixa claro é composto por aquelas pessoas que colocam suas vontades individuais acima do interesse coletivo, por isso o termo individualistas. Suas necessidades são muito mais “imaginadas” do que reais, e cumprem o papel, pra elas próprias, de amenizar o fato de estarem agindo de maneira individualista. Estas pessoas não negam a realidade, reconhecem a gravidade da pandemia, e sabem das dificuldades que caem sobre a parcela dos chamados necessitados. Porém procuram se misturar em meio a eles durante o cotidiano, tentando dar um ar de normalidade às suas vidas, numa conjuntura que é completamente anormal e que ainda vai perdurar por um bom tempo. Nessa mesma categoria incluem-se também aqueles que não notam que estão desrespeitando a quarentena ao saírem de suas casas para tarefas ou encontros sociais que estão longe de serem “de extrema necessidade” (como o recente “Dia das Mães”), ou minimizam essas ações sem levar em conta que com isso podem estar se tornando vetores da doença, tanto para aqueles que coabitam quanto para aqueles necessitados.

O último grupo é formado por aqueles que adotam o comportamento de seguidores de uma “seita” e por isso o nome de “adoradores”. Eles se dividem em três outros subgrupos, ainda que eles pareçam ser contraditórios entre si: os “negacionistas”, os “conspiracionistas” e os “sacrificionistas”. Os negacionistas são aqueles que negam a realidade que está diante de seus próprios olhos. Não acreditam que haja de fato uma pandemia ou a minimizam, tratando-a como uma “gripezinha”, ou comparando dados que são incomparáveis para chegar as suas conclusões. Os conspiracionistas acreditam na existência da pandemia, mas creem que ela é fabricada por alguma entidade, seja ela abstrata ou não (como “a imprensa”, ou “a oposição”), e costumam associá-la a algum tipo de preconceito que já possuíam (os asiáticos obviamente são seu alvo principal). Os “sacrificionistas”, por sua vez, reconhecem que de fato há uma pandemia e que ela irá vitimar uma parcela considerável da população brasileira, que inclui provavelmente, segundo as projeções estatísticas, alguma pessoa conhecida por ela própria. Mas trata-se de um sacrifício que ela está disposta a pagar em nome de seu líder supremo, ou então que está disposta a fazer as outras pessoas pagarem, sobretudo aqueles que se enquadram nos grupos de risco para a COVID-19.

Levando-se em consideração as características de cada um desses perfis cada leitor pode agora se colocar no lugar dessas pessoas e, nesse sentido, tanto auxiliar no sustento daqueles que se incluem na categoria dos necessitados quanto tentar estabelecer canais de diálogo com aquelas pessoas em que isso seja possível. A quarentena é uma realidade que veio para ficar ainda por algum tempo, e quanto menos as pessoas aderirem a ela, por mais tempo ela será prolongada, levando em última instância ao completo lockdown. Por isso não custa sempre repetir: se você pode, fique em casa.

*Doutor e Mestre em Ciência Política pela USP. Contato: Facebook.com/rafaelpolitica