Hoje é dia de São Jorge e Ogum. Dia de proteção e resistência

O encontro dos dois mitos é um dos mais importantes e significativos fatos oriundos da miscigenação, da constituição de um novo povo, que se traduz em sua fé e capacidade de existir e resistir

Jorge Benjor e Zeca Pagodinho. Foto: Miguel Sá/Divulgação
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Hoje é dia de São Jorge. No estado do Rio de Janeiro é feriado. O santo cada vez mais querido em todo o Brasil é Ogum no candomblé. Os dois são protetores, guerreiros. A oração de São Jorge é linda e estampa camisetas e cartazes por todas as partes. Virou canção de Jorge Ben Jor, “Jorge de Capadócia”, regravada por Caetano e pelos Racionais MC’s. O santo, por sua vez, encontra cada vez mais adeptos: Jorge sentou na praça na cavalaria eu estou feliz porque eu também sou da sua companhia Eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge para que meu inimigos tenham pés e não me alcancem para que meus inimigos tenham mãos e não me toquem para que meus inimigos tenham olhos e não me vejam e nem mesmo pensamento eles possam ter para me fazerem mal A lenda da proteção fica mais explícita, explode em comoção na segunda parte e se espraia pela cidade maravilhosa, combalida pela violência: armas de fogo meu corpo não alcançarão facas e espadas se quebrem sem o meu corpo tocar cordas e correntes se arrebentem sem o meu corpo amarrar pois eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge Jorge é de Capadócia salve Jorge, salve Jorge salve Jorge, salve Jorge A história do sincretismo e da proibição das religiões afro-brasileiras é velha conhecida. Os santos católicos não significavam nada para o povo negro, mas os orixás eram proibidos. A cantilena simplista da substituição de um pelo outro se alastrou de fato e, pelo menos no Rio de Janeiro, não há quem hoje não confunda o santo guerreiro com Ogum, o senhor do ferro, da guerra, da agricultura e da tecnologia. A junção dos dois mitos se deu de maneira comovente na canção “Ogum”, de Claudemir e Marquinhos Pqd e reinventada de maneira magistral por Zeca Pagodinho em seu álbum de 2008, “Uma prova de amor”. Nela, o próprio Ben Jor declama a Oração de São Jorge, logo após a canção em homenagem ao orixá. Nela um é o outro e vice-versa, como se, ao menos na cidade de São Sebastião (um outro santo que ainda não havia entrado na história) do Rio de Janeiro, os arquétipos se confundem e a parte mais fragilizada da população se protege e se mistura em um mesmo e forte laço: Eu sou descendente Zulu Sou um soldado de Ogum Devoto nessa imensa legião de Jorge Eu sincretizado na fé Sou carregado de axé E protegido por um cavaleiro nobre Se vou na igreja festejar meu protetor E agradecer por eu ser mais um vencedor Nas lutas, nas batalhas Se vou no terreiro pra bater o meu tambor Bato cabeça, firmo ponto, sim, sinhô Eu canto pra Ogum Ogum… Ogum, um guerreiro valente Que cuida da gente, que sofre demais Ogum, ele vem de Aruanda Ele vence demanda de gente que faz Ogum, cavaleiro do céu Escudeiro fiel, mensageiro da paz, Ogum Ogum, ele nunca balança Ele pega na lança, ele mata o dragão Ogum, é quem dá confiança Pra uma criança virar um leão Ogum, é um mar de esperança Que traz a bonança pro meu coração, Ogum Note que a letra do belo samba não faz distinção entre santo e orixá. Não se sabe nem percebe onde acaba um e começa o outro. A lança forjada pelo orixá criador do metal é feita do mesmo aço que mata o dragão na lenda de São Jorge. Ogum é considerado o principal orixá a descer do Orun, o céu do Candomblé, para o Aiye, a Terra, após a criação, constituindo com isso a futura vida humana. É o guerreiro e protetor, com trajetória intimamente ligada à sobrevivência. São Jorge é o santo militar. Nascido na Capadócia, região de Anatólia que hoje faz parte da Turquia, cedo se mudou para a Palestina, onde se forjou guerreiro. Acabou degolado por se voltar à fé cristã e a sua lenda se espalhou mundo afora. O encontro dos dois mitos, na cidade do Rio de Janeiro, é um dos mais importantes e significativos fatos oriundos da miscigenação, da constituição de um novo povo, que se traduz em sua fé e capacidade de existir e resistir.