A Filha Perdida: O Terror como catalisador para o Drama – Por Filippo Pitanga

Novo ano, nova leva de filmes estreando e competindo na temporada de premiações, como um dos favoritos na categoria de melhor atriz no Oscar 2022

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É bastante curiosa a reação inflamada nas redes quando alguma produção artística mexe com os próprios brios culturais de representação social. Ainda mais quando afeta questões com disparidades prementes, como as de gênero, étnico-raciais e de classe. E a virada do ano proporcionou a estreia na Netflix da nova polêmica da vez que rachou o mundo cinéfilo em dois: “A Filha Perdida” (e olha que este racha já havia acontecido com o lançamento anterior da  Netflix, “Não Olhe Para Cima” de Adam McKay, leia crítica clicando aqui).

Ganhador do prêmio de melhor roteiro no Festival de Veneza 2021, “A Filha Perdida” foi o primeiro longa-metragem dirigido pela também atriz Maggie Gyllenhaal (que já havia dirigido episódios de sua própria série “The Deuce” e um dos capítulos do especial “Homemade” na Netflix – leia aqui). A trama foi adaptada do livro homônimo da famosa escritora Elena Ferrante – aquela que ninguém sabe exatamente a identidade, pois, apesar de assinar com este nome, alguns suspeitam até que não seja mulher, e sim um homem a escrever (o que eu, pessoalmente, duvido muito, já que existe ali uma compreensão universal de certas questões estruturais das mulheres).

Porém, talvez o mais interessante de tudo isto seja que a obra de fato não trata de temas fáceis, e muito menos alivia a tratativa ao abordá-los cinematograficamente. A atriz Olivia Colman (ganhadora do Oscar por “A Favorita”) brilha como a protagonista que muita gente está interpretando como má ou perversa, o que está longe da realidade.

E não apenas ela, como outras representações maternas no elenco também, desde a versão mais jovem da protagonista, interpretada em flashbacks pela ótima Jessie Buckley (“Estou Pensando em Acabar com Tudo”), até as outras duas personagens que serão contrapostas a Colman no presente: Dakota Johnson (“Cinqüenta Tons de Cinza”) e Dagmara Dominczyk (“Succession”).

A despeito das contraposições de vários pontos de vista maternos, a protagonista de Olivia Colman, Leda Caruso, é uma personagem emancipada que teve a coragem de se reinventar mais de uma vez em sua vida com a força de uma “Medeia” de Eurípedes – cuja simbologia é historicamente cercada por controvérsias, mas que significa o fato de que nenhuma mulher deveria ser julgada apenas pelo arquétipo social da expectativa imposta de ser mãe/esposa.

Ser mãe precisa ser uma escolha livre, e não uma imposição estrutural castrativa e excludente a outras opções, assim como também precisa ser um papel social passível de reinvenção; senão estaríamos engessando a beleza da natureza em reproduzirmos a uma chave única.

Eis que entra talvez o segundo maior diferencial do filme, a agregar às interpretações: a hipnótica tensão quase de filme de terror que a mise-en-scène cria, principalmente a partir da boneca pivô do filme (uma boneca que vai representar muitas filhas perdidas, inclusive a si mesma, apesar de a mãe da protagonista ser muito mais presente no livro do que nas sutilezas acertadas do filme em suprimi-la no não dito).

A sinopse é extremamente simples: Professora universitária tira férias na praia e começa a fazer uma transferência dos fantasmas de certas decisões de seu passado na família enorme e barulhenta que fica perto dela na areia todos os dias. No livro, tudo se passa na Itália, inclusive as nacionalidades de suas personagens, que viriam de Nápoles (uma cidade provinciana mais ao sul, o que gera a expectativa de alguns padrões comportamentais de identificação).

Porém, aqui, na adaptação em língua inglesa de Gyllenhaal, atriz e diretora norte-americana, foi solucionado de forma bastante engenhosa que a professora Leda seria britânica e os estranhos nos quais ela se projeta seriam do Queens (parte de Nova York notória por conter muitos ítalo-americanos com um padrão de comportamento que emularia as raízes napolitanas do original) filmado nas praias gregas.

Até mesmo Leda é confrontada em relação às suas origens, pois, apesar de morar hoje na prestigiosa Cambridge, em Boston, adveio do interior britânico de Shipley. E essas comparações sociais de classe e de certa soberba da elitização de se achar intelectualmente superior versus uma força coletiva de massas vão se tornando um campo de batalha constante no roteiro.

Como o livro se passa quase todo na cabeça da protagonista com suas memórias e julgamentos a percepções alheias, nada mais justo que a diretora adaptar tal cabo de força mental em flashbacks e jogos dramáticos entre os tempos de representação, com uma câmera bastante focada em olhares. E não só os olhares de Olivia, mas de todo o elenco afiado em sinergia, que julga de volta.

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Neste sentido, parabéns à fotografia minimalista e microscópica de Hélène Louvart (diretora de fotografia também do nosso brasileiro “A Vida Invisível” de Karim Aïnouz), que compartimenta fragmentos de corpos, rostos e memórias e cola depois num quebra-cabeça que vai além do espaço-tempo com ajuda do montador Affonso Gonçalves (dos cults “Carol” e “Paterson”), pois não é nada fácil editar planos picotados em sentidos complementares e lugares diversos no quadro-geral – creiam!

Por outro lado, enquanto a câmera bastante aproximada significa o lado mais psicológico da trama, a metafísica está na montagem, especialmente guiada pela boneca, pois quando a protagonista interage com ela, o filme abraça o delírio e o devaneio, esquecendo a noção de tempo ou raccord (continuidade lógica). Uma tarde pode se tornar noite num piscar de olhos, e vice versa. O ato de fechar as pálpebras pode lhe fazer mergulhar nas sombras. E voltar ao mundo desperto pode realçar essas sombras nas outras personagens também, tornando o desenvolvimento da trama bem mais corajoso e menos linear; mais rizomático.

A narrativa vai e volta no tempo, assim como no livro, já que Leda cria um paralelo em devaneio entre seu próprio passado e a família de sua obsessão. Aliás, Dakota Johnson aqui se revela uma excelente atriz, especialmente após a chuva de críticas negativas pela franquia “Cinqüenta Tons de Cinza”, e que você passa a acreditar de fato na possibilidade de fazer parte daquela família ítalo-americana altamente absorvente, até o ponto de ela quase perder sua própria identidade como mulher, como mãe, como esposa e como indivíduo. – mérito também da cineasta por sua direção de atores (a própria Gyllenhaal uma excelente atriz), e pelo olhar apurado para frações e momentos de olhares misteriosos e gestos ambíguos na atuação de seu elenco (o olhar de Dakota diz muito sem revelar nada, já que sua personagem possui menos diálogos que as outras, por ser pivô da identificação e questionamentos alheios).

Do lado oposto do paralelo materno, temos o universo de Leda mais jovem, interpretada pela revelação ascendente Jessie Buckley (do filme ainda mais delirante em termos oníricos “Estou Pensando em Acabar com Tudo”), que aqui dá um show à parte – Não só em continuidade à atuação no presente de Colman (longe de mimetizá-la), porém também de forma original contracenando com pesos pesados, como a italiana multipremiada Alba Rohrwacher em participação especial catalisadora entre mulheres; e o intenso Peter Sarsgaard (marido de Gyllenhaal na vida real), como um escritor acadêmico famoso que reconhece o talento de Leda quando ela estaria mais sufocada pela própria família, sem identidade de si.

Vale citar um ingrediente a mais: Como a personagem de Colman, além de professora universitária, vai se tornando igualmente uma tradutora renomada dentro de sua linha nos flashbacks, esta é uma camada extra de metalinguagem para o filme que agrega vários sentidos. Seja no próprio fato de a adaptação de Maggie ser um tipo de tradução do livro, transpondo da Itália para as praias gregas, e de napolitanos para norte-americanos com origens europeias, que se acham no topo do mundo por lhe servir a seu bel prazer.

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Em determinado ponto do filme, duas frases são muito marcantes, já que falam que, para se traduzir com respeito ao original, é necessário se ouvir a intenção com genuíno interesse: “a hospitalidade (lingüística) ocorre quando se capta a atenção, mesmo na crise” e “Como Simone Weil diz: A atenção é a forma mais rara e pura de generosidade”.

Vide a metáfora do simples ato de descascar a laranja de uma vez só, como uma cobrinha, como se, mesmo dando voltas ao redor da fruta, como numa espiral, ainda assim podemos ver um vislumbre do todo que aquela casca cobria em ângulos e meridianos diferentes. Como o símbolo do infinito. Como se escutássemos a razão (matemática ou não) da laranja.

E a intenção crítica de Gyllenhaal é transpor um retrato intimista da maternidade através de espalhamentos de mulheres completamente diferentes, em épocas diversas, mas que convergem em angústias palpáveis da estrutura social injusta e sem paridade de gênero nas expectativas que deveriam ser comuns a todos – como a espiral da casca da laranja, tangenciando as diferenças através dos vértices de encontros.

Não é o peso de ser mãe que é pesado por si só, mas o fato de que ninguém mais acredita ter a obrigação de se dispor a ajudar, como o pai e outros colaterais, pois sobrecarregam toda a responsabilidade como naturalmente de uma só pessoa, tornando quase impossível ser outras pessoas além desta única função monopolizante.

Por isso aquela boneca, aquela versão factóide de um bebê, é tão aterrorizante, regurgitante, infectada, contaminada como em “A Filha Perdida”. E, mesmo sendo assustadora, ainda assim é cuidada tardiamente com o mesmo carinho de um ser vivo por Leda. Como se fosse remendar a boneca de sua infância dada por sua mãe. Como se fosse consertar as lacunas com suas próprias filhas. Como se fosse livrar a outra família da história de todos os males... Como se tirasse a boneca “Anabelle”, receptáculo da possessão, do ceio do lar dos outros para poder se redimir de algo que se cobra a si mesma até hoje: ter vivido para além das expectativas alheias – mesmo que de forma tão drástica para poder se desgarrar das impossibilidades naturais.

Eis de onde vem o terror social que se coloca às mulheres. E que se colocou desde priscas eras, desde “Medeia”, para se ver há quanto tempo esta balança é desequilibrada. Uma vez traída e abandonada por seu amor, o ato de Medeia de matar seus filhos na tragédia grega é metáfora para a possibilidade de reinvenção para além das expectativas sociais. Não é literal.

De forma alguma seria Eurípedes dizendo que “não há fúria maior do que a da mulher traída” (ditado bastante popular e vulgar), porque, na verdade, ela já foi traída antes pela própria vida, quando ao homem há uma prerrogativa de privilégio de evadir uma família sem desgraça e humilhação, e à mulher não. Nem a escolha nem a possibilidade de dizer sim ou não.

Ninguém é nem tão inocente nem tão culpado que não possa ser vulnerável e perigoso ao mesmo tempo neste jogo pela emancipação feminina e pelo direito de ser dona das várias versões de si mesma. Um excelente filme para começar um grande ano cinematográfico e que garante um lugar de destaque interiorizado e assombroso para Olivia Colman na corrida pelo Oscar 2022 de melhor atriz, rivalizado apenas por Kristen Stewart como Princesa Diana em “Spencer” de Pablo Larraín – outro filme a usar o terror como catalisador do drama das mulheres, até parafraseando de certa forma “A Maldição da Residência Windsor”, como se a família real fosse algo que Diana precisasse exorcizar; com direito à casa mal assombrada e tudo! (mas este será um filme com texto próprio em breve aqui nesta coluna, mais perto de sua estreia entre janeiro e fevereiro).

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.