CINEMA NACIONAL

“Medida Provisória” divide opiniões: entre aplausos e problematizações – Por Filippo Pitanga

Primeiro longa-metragem de ficção dirigido pelo astro Lázaro Ramos, e adaptado de peça premiada de Aldri Anunciação, filme vem lotando sessões ovacionadas, mas que também atraíram polarizações da militância engajada

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Vale começar esse texto a declarar que todo sucesso do cinema brasileiro é muito bem-vindo no circuito, já que poucos filmes em língua nativa conseguem a façanha de arrastar multidões, com raras exceções esporádicas a cada ano, como os recentes “Que Horas Ela Volta?”, “Bacurau” e “Marighella” – ou mesmo, outrora, os divisores de água “Central do Brasil”, “Cidade de Deus” e “Tropa de Elite”.

Todas estas referências acima citadas abriram o mercado como Moisés diante do Mar Vermelho, apesar de ainda assim não podermos dizer que exista de fato um mercado consolidado brasileiro, mesmo com franquias mais comerciais e afetivas junto à audiência, vide as trilogias “De Pernas Pro Ar” com Ingrid Guimarães e “Minha Mãe é uma Peça” com o saudoso Paulo Gustavo (cujo nome está sendo sancionado como nova Lei de incentivo público à sétima arte no país).

Agora chega ao circuito comercial a proposta criativa do filme “Medida Provisória”, numa acolhida instantaneamente calorosa e acalorada. Dirigido pelo ator consagrado Lázaro Ramos, o filme não apenas se destaca acertadamente com adesão à luta antirracista na atual disputa de narrativas que vivemos, como traz elenco de peso, além de contar até com nome internacional e querido de público, Alfred Enoch, ator anglo-brasileiro conhecido por ter sido o bruxinho Dino Thomas na saga “Harry Potter” e o estudante de Direito Wes Gibbins na série “How To Get Away with Murder” com a estrela internacional Viola Davis.

Sem falar que a trama do filme, adaptada da peça teatral premiada “Namíbia, não!” do dramaturgo e ator Aldri Anunciação (do Cult “Ilha” de Ary Rosa e Glenda Nicácio), aposta em linguagem de gênero pouco usual em nosso circuito, que é a distopia. Num futuro não muito distante, o governo brasileiro emite uma Medida Provisória (título do filme) substitutiva de um direito histórico, pela qual, ao invés de se pagar uma indenização a pessoas negras que sofreram o racismo estrutural desde os tempos da escravização, chegaria a oferecer a extradição para o continente Africano, com a intenção nada velada de embranquecer o país e perseguir todas as pessoas denominadas nesta ficção de “melanina acentuada”.

No meio de toda a polêmica, inúmeros personagens se subdividem, especialmente um trio formado pelos primos André (Seu Jorge) e Antônio Rodrigues (Enoch), respectivamente um jornalista e advogado, além da namorada deste último, a médica Capitu (Taís Araújo). Alguns mais e outros menos conscientes da racialização das camadas sociais e de sua própria ancestralidade, todos irão ser submetidos a perseguições e perdas sucessivas dos direitos mais básicos, numa metáfora bastante fundamentada e comprovada do que já acontece no dia a dia de um país arraigado pelo racismo estrutural que é o nosso.

Talvez um dos grandes trunfos que se pode falar de plano desta adaptação cinematográfica, para além da peça que lhe originou, seja justamente o aquilombamento da produção. Ou seja, um espírito agregador evocado desde os tempos da Companhia de palco de Lázaro, o Bando de Teatro Olodum na Bahia.

O grupo já pensava em termos coletivos desde priscas eras, como no filme “Ó Pai, Ó”, cujo texto era encenado por eles e foi transposto para a telona pelos mesmos artistas. E o próprio Lázaro chegou a registrar essa história dos colegas de ofício desde o início de carreira no documentário “Bando, Um Filme de”, não à toa, seu primeiro longa-metragem na direção, compartilhada com Thiago Gomes e lançado em 2018.

Mas atentem que não estamos falando, com isso, que a peça deixasse de ser completíssima em sua proposta, porque a trilogia do confinamento escrita por Aldri, e composta por “Namíbia, não!”, “Embarque Imediato” e “Campo de Batalha”, já se fazia extremamente coesa em sua linguagem mais sóbria e intimista, sempre girando em torno do absurdo de dois personagens centrais confinados – dois primos entrincheirados no seu apartamento pra evitar uma extradição injusta; dois cidadãos retidos numa sala de espera no aeroporto sem motivo aparente e dois soldados sem munição na guerra.

A diferença é na quantidade de histórias passíveis de serem multiplicadas no palco da vida quando os quadros de cinema podem acontecer simultaneamente no tempo e espaço, de modo que a montagem possa nos levar da pedra fundamental na personagem de Elenita (Dona Diva), que seria a primeira pessoa a ganhar a indenização pelos tempos de escravização, até lhe ser negado este direito; ao rosto expressivo de André (Seu Jorge), com seus grandes olhos que lhe servem como janela da alma não apenas para testemunhar, mas fazer história com o que vê.

Num curto espaço de tempo, podemos ser apresentados a uma miríade plural de representações e vozes, como no quilombo que existe não apenas atrás das câmeras como na frente, uma vez que a história materializa uma atualização imagética do termo – cunhado historicamente na defesa da ancestralidade e autonomia do povo negro – ora chamado de afrobunker.

Não por coincidência, é desta plasticidade que o filme foge do tom um pouco novelesco inicial, cacoete inevitável para alguns nomes prolíficos da televisão. As cenas externas e mais luminosas, apresentando o elenco em plano conjunto e linha horizontal, e fofocando uns na cara dos outros como nas chanchadas televisivas, vai passando a priorizar mais planos-detalhes e iluminação maturada com chiaroscuro, na intimidade das cenas internas, em confinamento – como no apartamento dos primos protagonistas ou na base da resistência, em que as individualidades se tornam uma comunidade de signos.

Sua estética advém de várias referências culturais de resgate do passado, como a região portuária no Centro do Rio, da Praça Mauá até a dita Cidade Nova, também denominada de Pequena África; bem como dos galpões de Carnaval, revalorizados na luta antirracista verídica, principalmente diante do interregno sem o evento durante a pandemia, e que, no filme, é aludido como uma proibição às festas e perseguição às periferias responsáveis por elas neste futuro distópico.

Boa parte da história é contada a começar pela própria escalação do elenco, cada um trazendo bagagem fora de quadro que amplia as personagens e a trama, de Flávio Bauraqui à estreia do cantor Emicida como ator; ou das referências na militância, desde Jessica Ellen à Lua Xavier e Maíra Azevedo, vulgo Tia Má. Bem como narra estas diferentes perspectivas na própria escrevivência (vivência na escrita) e oralidade ao redor... Das paredes das ruas às filmagens em cenários internos, tudo possuindo significados múltiplos, como cartazes, lambe-lambe, restos de carros alegóricos, adereços e decorações, jamais a esmo.

Igualmente, podemos apontar a trilha sonora de Elza Soares e Liniker (como na seleção musical da personagem de Taís Araújo em LPs ao headphone no pé do ouvido) e até mesmo as cores e figurinos, entre o contemporâneo e alguns toques retrô e afrofuturistas. Afinal, como visto em todo universo de ficção-científica ou distopia, há muita elaboração no imaginário popular para tornar plausível a visão romanceada de uma realidade tão próxima a nós que poderia irromper sem nem vermos de onde nos atingiu.  

Em meio a tudo isso, alguns pontos críticos também trouxeram fricções entre diversos públicos, como toda obra que cai nas graças das massas o faz. E isso pode ser muito positivo tanto quanto construtivo, de forma alguma significando um demérito, mas sim problematizações necessárias.

Já que estamos falando sobre a racialização do país, de fato o filme não desenvolve melhor a questão étnico-racial da população indígena, apenas levemente mencionada numa rápida cena um pouco estereotipada no contexto dos vilões do filme, e coloca um personagem descendente de orientais querendo ser negro, mesmo no lugar de aliado. Não que estas situações sejam completamente irreais, pois podem acontecer no dia a dia, mas com a falta de tridimensionalidade de alguns fatores mais complexos, talvez tivesse sido melhor deixar de fora algumas abordagens superficiais. Contudo, estas circunstâncias jamais diminuiriam a importância do filme.

Existe, sim, um impacto muito forte de se filmar na arte, com sensibilidade, certa violência, já reproduzida nos telejornais e demais mídias de imprensa de forma freqüentemente irresponsável, que às vezes mais reforça estigmas do que ajuda a denunciar abusos de poder, como o uso excessivo de força policial e encarceramento injustificado contra a população negra. Mas boa parte da projeção evita cair na armadilha de tratar de forma sensacionalista ou mesmo caricata a perseguição que irá se suceder quando a Medida Provisória do título passa a ser instituída, ainda que consiga tirar planos inventivos e até com humor em algumas ocasiões, sem jamais cair na paródia.

A questão talvez seja a montagem, que às vezes reúne cenas a aproximar uma potência de valores que poderia vir com destaques próprios. Há de exemplo um clímax a que chega o personagem de Seu Jorge, cujo carisma costuma roubar todas as cenas, sendo o coração do filme, e cujo desenrolar acaba conjugado ao de outro personagem em situação similar (Pablo Sanábio), só que invertendo o lugar de escuta. Em determinada seqüência, o personagem em foco é negro, e na outra é branco, como se a edição quisesse aproximar que em situações opostas o ser humano poderia ser capaz de extremos similares – quando isso jamais poderia ser justificado por argumentos equiparados, pois são circunstâncias completamente distintas, a despeito de qualquer semelhança.

É compreensível que Lázaro tenha almejado criar tensionamentos proporcionais de ambos os lados, sem recair no maniqueísmo, só que poderia ter atingido este propósito de outra forma que não dividindo em duas cenas distintas e emparelhadas a catarse dos respectivos momentos, e que levam a reflexões diversas – não estamos falando mais sobre ela para evitar spoiler, porém basta dizer que o porte e credibilidade em cena de Seu Jorge dispensavam dividir o plano com qualquer um.

Aliás, o ator e cantor que ano passado pôde ser visto personificando grandes figuras históricas, como Marighella e Pixinguinha, Seu Jorge coroa a ótima fase com mais um poderoso papel, colecionando cenas inesquecíveis para sua carreira, há de exemplo a ‘live’ em que ele se comunica com o público e o dolorosamente poético momento em que ele pinta seu rosto de branco (só não é spoiler porque está no trailer, e referencia uma performance que havia sido vista faz poucos anos no curta “KBela” de  Yasmin Thayná).

Não obstante a forma com que Lázaro tentou dar mais camadas aos dois lados do confronto, alertando aos que possam estar em situação de opressão para jamais reproduzir os gestos do opressor, há um desequilíbrio de forças premente advindo da própria realidade que dispensaria maiores ficcionalizações. Os políticos atuais andam atuando de forma tão explicitamente excludente ou intolerante no crescente conservadorismo e fascismo brasileiro que até as personagens mais vilanescas do filme não conseguem ser nem metade do absurdo vivenciado fora da tela.

Ainda assim, as antagonistas decerto caricatas, encarnadas por Adriana Esteves e Renata Sorrah, trazem preconceitos diários à tona com interpretação pungente, desde uma agente burocrática que se escuda na alegação de que estaria apenas seguindo ordens, mas que tem regozijos ao se investir nos pequenos podres poderes que lhe dão privilégios em detrimento de terceiros, bem como a vizinha fofoqueira a anular o próprio passado pra se dizer diferente de seus próximos. Ambas, aliás, ampliadas na química de suas rivalidades com o personagem de quem? De Seu Jorge, evidente!

Várias coisas a mais poderiam ser levantadas ou problematizadas, como a quase ausência de diálogo com o cenário internacional, sendo poucas as citações ao que países ao redor do globo estariam pensando do acontecido nesta ficção que se situa no Brasil, ou mesmo quais seriam os posicionamentos dos países Africanos referenciados na trama, que quase não demonstram agência ou expressão (há somente duas cenas coerentes perante esta ausência, uma com Seu Jorge dizendo que cabe a ele escolher quando e onde visitar suas origens como bem entender; e outra num telejornal, que fala das implicações diplomáticas com a Angola, e nada mais sendo falado para além destes exemplos). Ou mesmo quase nada é dito sobre represálias a aliados ou familiares interraciais, como cônjuges ou amizades, apesar de que não seria este o lugar de fala em voga aqui de fato, nem precisaria ser.

Vale ressaltar que algumas cenas de ação trazem um caos nas ruas passíveis de despertar alguns gatilhos na plateia, independente de transformar, de maneira inteligente, a objetificação inicial na perseguição policial às mulheres negras em subjetividade de legítima defesa por parte delas – respeitando uma valorização do empoderamento no extracampo, ora aplicado na tela de forma crível e bem filmada. Isso porque o filme facilmente poderia incorrer na mania de antigamente do cinema clássico em confundir perseguição às personagens femininas com a própria construção de linguagem no thriller, como o fez Hitchcock e os slashers oitentistas, em tantas produções em que as vítimas femininas geravam o suspense até o final, enquanto que, aqui, temos uma reviravolta logo na metade da história, colocando-as em posições de liderança da resistência.

No geral, a produção consegue dialogar muito bem com as massas, seja pelo humor, pelos nomes envolvidos ou tema urgente, exatamente como as sessões lotadas vem evidenciando. E sendo ainda mais lindo de ver a representatividade de público que está se vendo contemplada pela obra – com repercussões reais até na carreira de Lázaro Ramos, que deixou seu contrato com a Globo após 19 anos para assinar exclusividade com a Amazon Prime Video, justamente para buscar mais liberdade e representatividade em suas escolhas futuras. A própria emissora originária do artista resistiu muito às suas propostas de equipes mais plurais, bem como argumentos que refletissem mais a sua ancestralidade, e ver seu novo longa-metragem finalmente aterrissar no circuito é uma vitória inquestionável.

No entanto, há muito lugar para evoluir dramaturgicamente ainda, como na representação espelhada com outras questões étnico-raciais, sem deixar, com isso, de acertar na fabulação de novos imaginários com identificação de público.

PS: vale ficar até o final dos créditos, pois além de participações especiais no desfecho, há cenas extras rolando após as luzes do cinema se acenderem! – e que prazer inenarrável é poder dizer que essa experiência deve ser sentida no circuito presencial de novo! Vão aos cinemas da forma que se sentirem seguros, usem máscaras, mas não deixem de ir e salvar nossas salas e mercado brasileiro (principalmente na primeira semana, que é crucial pra manutenção dos filmes em cartaz).    

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.