TELEVISÃO

Pantanal: Desbunde visual e realismo mágico descentralizando os Brasis – Por Filippo Pitanga

Remake traz inovações estéticas deslumbrantes, contudo mantém algumas questões de representação do audiovisual contemporâneo

Créditos: Divulgação
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Com mais de trinta anos de diferença desde sua versão original, quem diria que veríamos o remake da novela “Pantanal” mudar de emissora (da Manchete para a Globo), trazer de volta parte do elenco original ainda na ativa em várias homenagens, além de usar todos os avanços tecnológicos para encantar e hipnotizar os espectadores – literalmente! E com todos os episódios da primeira semana disponíveis online e gratuitamente na plataforma de streaming da Globoplay. Tamanha é a sanha para amplificar o escopo de exibição deste espetáculo em potencial.

Isso tudo porque a linguagem da nova versão possui inúmeros profissionais de cinema importados para a TV, e explora outros tempos e ritmos que permitem a reflexão mais interiorizada e próxima da vida no campo, o que gerou voluntariamente certo estranhamento no público habitual das telenovelas fast food.

Mas será que isso é o suficiente para valer uma revisão? Afinal, alguns problemas originários na adaptação do texto assinado por Benedito Ruy Barbosa, e que gerou igualmente a versão dos anos 90, continuam presentes, como a falta de representatividade ou diversidade étnico-racial em personagens de outras territorialidades e imaginários do Brasil.

Se em novelas que se passam no Nordeste já tínhamos muita dificuldade de ver artistas que de fato fossem da região, ou mesmo olhares mais plurais, como a Bahia extremamente embranquecida de ”Segundo Sol”, ou a falta de personagens orientais em “Sol Nascente”, agora até conseguimos um elenco e equipe de produção com mais representantes, porém ainda ancorando de alguma forma o centro criativo em núcleo sudestino. Há sim muitos estados ali representados, desde Mato Grosso do Sul a Goiás e Paraná, cada um deles com cores, paisagens e ritmos próprios. Porém, por outro lado, a parte carioca da mise-en-scène trouxe plasticidades bem mais esperadas de quem acompanha as produções do horário das nove.

Eis que nomes mais maturados e de origem descentralizada em produções da Globo, como o grande Walter Carvalho, cineasta paraibano e o maior diretor de fotografia do Brasil atualmente, trazem uma estética cinematográfica emprestada de uma vasta escola de sucessos em sua filmografia. Walter é um dos nomes a dirigir o núcleo geral, e, com isso, temos vários códigos e assinaturas de sua linguagem como o aproveitamento da luz natural de modo impressionista, pintando as panorâmicas da natureza como num quadro, e sempre em fases transitórias do sol, seja no alvorecer ou crepúsculo.

A mistura tênue de sombras e cores diáfanas pinceladas pelos campos na contraluz são ainda mais potentes pra realçar o ser humano e o indivíduo no meio da vastidão, da vida selvagem e do rio que corta tudo. Cada personagem possui sua própria analogia cromática e animalesca, como se fundindo com a fauna e flora. E isto em parceria reiterada com parte do elenco em seus filmes, vide a parceria de longa data com Irandhir Santos e Dira Paes em longas-metragens de Cláudio Assis, nos quais Walter fez a fotografia multipremiada, desde “Amarelo Manga” e “Baixio das Bestas” a “Febre do Rato”.

A cena hipnótica do touro e Joventino Leôncio (interpretado por Irandhir Santos) já entra pro panteão de momentos inesquecíveis mais líricos da história das telenovelas. Como, sozinho, seu personagem sustentou nas costas o peso do clímax do episódio inteirinho de mais de 1h de duração só no duelo com a besta indomável. O ator prova (mais uma vez) a extrema segurança que possui no domínio de cena e dos contraplanos sem sequer precisar que o touro contracenasse com ele dentro do mesmo quadro. Seu olhar, suas reações, seus silêncios, a gesticulação de suas mãos e cada passo dado em dança com o parceiro bovino de cena fazem todo o drama de um tango empalidecer na frente da química desta dupla. Só agrega ainda mais ao seu desaparecimento mágico que se funde ao restante místico da novela.

E o confronto entre Maria Marruá de Juliana Paes e a onça foi mais uma boa cena pra acrescentar a este panteão folclórico da fronteira entre realidade e fantasia. Primeiro encontro da personagem com seu destino, já que ambas as representações irão se fundir em futuro próximo. O sol a pino sobre o pântano e a personagem andando de quatro como se com patas de onça pra enfrentar a fera felina que só queria proteger suas crias... -- crias que a própria Maria Marruá não possui mais nas perdas recentes. O suor e os olhos marejados combinaram perfeitamente entre mulher e onça, terra e água, céu e fogo.

Ainda que a relação conjugal entre a respectiva personagem citada acima e seu marido (Enrique Díaz) pudesse ter sido mais trabalhada... Isso porque, mesmo sendo necessário reaquecer a paixão entre eles após perderem todos os filhos, a metamorfose com os animais ao redor já ampliaria melhor qualquer identificação com o público do que a cena de sexo com uma espingarda que os roteiristas inventaram sem preparação nenhuma (deus ex machina), só para gerar a futura filha Juma, tão importante para a trama (no original imortalizada por Christiana Oliveira e agora na pele da Alanis Guillen, e que fará par romântico com o Jove do já consagrado ator Jesuíta Barbosa, de “Tatuagem”).

Alguns desbundes visuais dos mais poéticos possíveis, pelo menos no núcleo dramatúrgico da região do Pantanal... Já no núcleo do Rio, aí é outra história. Se o ritmo mais lento e introspectivo do campo e das grandes boiadas pode ter incomodado um pouco alguns espectadores que não estão acostumados a experimentar algo diferenciado do cardápio de sempre, quão logo foi oferecido um diálogo mais digerido com este público a partir de famílias ricas em seus casarões a decidir o destino do mundo como na maioria das novelas da emissora.

De fato, não é um contrassenso adotar ritmo mais agilizado e cores mais acinzentadas para a selva urbana de notórias metrópoles, bem como valorizar a vida noturna e a fluidez das relações. Porém, se de um lado há coerência narrativa, em termos de avanço estético os quadros e cenas deixaram de impressionar muito rapidamente quando o atual protagonista desse período da história (Zé Leôncio na pele de Renato Góes) passa a se encantar por uma mulher da cidade grande (Madeleine interpretada por Bruna Linzmeyer).

Tais personagens serão representados por outros intérpretes em sua fase um pouco mais madura, respectivamente por Marcos Palmeira e Karine Teles, já numa grande diferença do original, uma vez que a pretendente carioca no triângulo amoroso do protagonista teria morrido no original porque sua intérprete precisou sair da novela de 1990 (Itala Nandi), mas que agora irá sobreviver para gerar ainda mais tensão.

Uma novela sempre será uma novela. Faz parte do significado da palavra e do formato literário que já se escrevia desde os séculos anteriores, muito antes da TV, alongando e distendendo o tempo de suas personagens às vezes um pouco além da riqueza possível de ser desdobrada de seus argumentos originais. Afinal, nenhum personagem se sustenta apenas em carisma de artista, necessitando de estofo circunstancial da representatividade de seu entorno para individualizá-lo no mundo e manter seu diferencial com evoluções e superações suficientes para ter fôlego até o final.

Mas o público moderno faminto por novidades pode esperar algumas surpresas em termos de linguagem tanto quanto em produto de consumo, pois se o cinema está potencializando possibilidades na ficção da telinha de casa, sabemos que certos avanços ainda necessitam de tempo para se desenvolver e alcançar maior identificação social. E que este seja só o começo de um desafio maior para o povo ver outras histórias, folclores e representações nas mídias de massas a inspirar ainda mais novos clássicos sendo feitos e desbravados para nos surpreender cada vez mais.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.