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Jeferson Tenório: “se houver alguma revolução, ela tem que vir pela poesia”

Em entrevista à Fórum, escritor comenta poder da Literatura em mobilizar debate público e analisa avanço da censura literária nos Estados Unidos sob governo Trump

Créditos: Carlos Macedo/Divulgação
Escrito en CULTURA el

Finalista do Prêmio Jabuti este ano com o livro 'De Onde Eles Vêm', o escritor, professor e pesquisador Jeferson Tenório conversou com a Fórum sobre o papel da literatura no Brasil, a censura promovida pelas big techs a perfis vinculados a causas progressistas nas redes e os efeitos da ofensiva de Donald Trump contra obras literárias nos Estados Unidos.

Segundo ele, o recente debate em torno da definição do que é literatura só reforça que a tentativa de delimitar o conceito muitas vezes serve para manter interesses elitistas: "A literatura é um movimento muito generoso, abriga vários tipos de narrativas. É muito difícil e complexo dizer o que é e o que não é literatura. Para ser literatura, você precisa desqualificar outra", comentou.

"A popularização da literatura incomoda, geralmente os teóricos mais conservadores, porque acham que literatura tem que ser de fato poucos. Então, acho que é uma uma postura equivocada, mas que mostra que a literatura daqui a 100 anos ainda vai continuar trazendo esse tipo de discussão, porque a gente não consegue definir o que é. Pressentimos, mas dizer o que é o que não é literatura é muito difícil", afirma.

Tenório também falou sobre a representação da população negra na literatura e na mídia, ressaltando a importância de criar novos tipos de personagens que ultrapassem o estereótipo da vítima: "Quanto mais pessoas negras estiverem escrevendo, mais possibilidades de representação a gente vai tendo. A literatura é a mesma coisa. Isso ajuda a sair daquele lugar de sempre vinculado à escravidão, ao racismo, à violência policial. Você começa a propor outros tipos de de personagens, como é na vida", destaca o escritor.

"Já temos alguns avanços, em termos de representação mesmo das pessoas negras em novelas. Digo de grande alcance. Hoje, a gente pode ter em novelas um elenco majoritariamente negro, por exemplo, já não causa espanto nas pessoas. Você pode ter um núcleo de uma família rica negra, né? Então, também ter vilãs e vilões negros, porque a grande preocupação, quando você tem pouca representatividade, toda vez que ele que o sujeito negro aparece, é ele aparecendo  de modo negativo", diz.

O amor na luta pela representatividade

O autor gaúcho aponta que é preciso conciliar a abordagem de questões sociais e raciais com outras formas de narrativa. "Claro que sem esquecer que o racismo estrutural continua, a violência policial continua, pessoas negras continuam morrendo, a desigualdade ainda é terrível, mas acho que em concomitância a gente pode criar também outros tipos de personagens, o que eu quero dizer é que uma coisa não anula a outra".

Tenório destaca obras que resgatam a história da diáspora negra, como Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves, e também a necessidade de livros que explorem outros temas, como o amor, presentes em obras de Conceição Evaristo, como Canção de Ninar e Canção de Ninar Menino Grande:

"Uma coisa não invalida a outra, ou seja, o modo de lutar não precisa ser só de um modo", reforça. De acordo com o professor, a literatura vai além de uma justiça simbólica, sendo capaz de provocar reflexão e estimular a consciência do leitor.

'Escrita é uma forma de intervir no mundo'

"Se a leitura é uma forma de organizar o mundo interior, a escrita é uma forma de intervir no mundo. A literatura faz essa interferência de maneira mais profunda, mais subjetiva, toca as pessoas de outro modo, faz reflexão e, mais do que isso, provoca no leitor uma vontade de fazer essa intervenção no que ele julga desigual", afirma.

Tenório teve a conta do Instagram bloqueada em agosto deste ano sem nenhuma justificativa por parte da empresa de tecnologia. A página segue fora ar. Ele comenta o caso e destaca que a narrativa da neutralidade dos algoritmos esconde interesses humanos e mercadológicos dessas empresas:

"É essa ideia que vende, quando se faz a censura, ou seja, não é a culpa da empresa, mas é a culpa sim do algoritmo ou da inteligência artificial. Eu vejo isso com muita preocupação, e a gente está às vésperas de uma eleição do Brasil, que promete ser bastante difícil e acirrada", observa o autor.

Ele ainda destaca que essa censura nas plataformas digitais cria um ambiente de maior vulnerabilidade. "Acho que é o momento para a gente ficar bastante atento com essas censuras, não só nas redes, mas também nas censuras de livros, que a gente tem percebido. Esses movimentos sempre aconteceram, mas com as redes sociais, entramos em um campo muito mais perigoso", afirma Tenório.

"A tentativa de censura é muito vinculada a uma ideia de algo que é alheio à ideologia da empresa. Como se os algoritmos não tivessem qualquer tipo de direcionamento, intenção humana, como se os algoritmos fossem autônomos"

Foto: Filmart/Divulgação

'EUA não sabem lidar com a gravidade de censura a um livro'

O escritor comentou o aumento da censura de livros em escolas públicas em um retrocesso democrático sem precedentes na história dos Estados Unidos. “Já são milhares de obras censuradas, muitas delas abordando temas como racismo, feminismo e diversidade. É um movimento que grita liberdade de expressão, mas promove proibições indiscriminadas”, afirmou ele sobre a contradição da ultradireita.

A experiência do Brasil e Estados Unidos em relação à censura, segundo o autor, expressa diferenças, já que os EUA nunca vivenciaram uma ditadura interna. “Eles tiveram experiências de ajudar a construir ditaduras em outros países, mas ter uma ditadura no seu espaço, eles não tiveram. Parece que lá não sabem lidar muito bem com a gravidade de censurar um livro”, afirma sober a mínima mobilização em defesa das bibliotecas e escolas públicas americanas, que já conta com 6,8 mil obras banidas, inclundo livros latino-americanos.

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No Brasil, por outro lado, o histórico de autoritarismo ajudou a criar movimentos de resistência, segundo ele: “Você começa censurando livros, daqui a pouco você queima livros, daqui a pouco você está queimando pessoas”.

"É um pouco esse o caminho, que por mais que haja essa tentativa de censura no Brasil, os movimentos de resistência tem sido muito fortes e contundentes, estão de prontidão. Foi que aconteceu com o meu livro 'O Avesso da Pele', em que rapidamente muitas pessoas passaram a defender o livro e defendem até hoje".

"O legado que nos deixa é justamente de um aprendizado que a gente não pode abrir mão da democracia e do direito ao conhecimento, do direito ao livro. Se houver alguma revolução, ela tem que vir pela poesia"

Também entrevistada pela Fórum, a escritora carioca Ana Maria Machado, vencedora do prêmio Hans Chrstian Andersen, personalidade literária do prêmio Jabuti e sexta ocupante da Cadeira nº 1 da Academia Brasileira de Letras, falou sobre a cidadania e a resistência na literatura info-juvenil.

Aos 83 anos, a autora refletiu sobre seu processo criativo. Ela afirma que toda vida toda influi sempre sobre a literatura. "O que me marca são as experiências vividas nos diversos âmbitos, em todos os momentos: individuais, coletivas, imaginárias, inconscientes, sensoriais, afetivas, racionais... tudo vem alimentar o que escrevo", diz.

Crédito: Fernando Rabelo/Divulgação

Literatura não é 'algo a ser ensinado'

Machado falou também sobre a forma de se aproximar do público infantil sem transformar a literatura em um conteúdo a ser apenas “ensinado”. "Para nenhuma idade. Em qualquer era, digital ou não. Afinal, todas são desafiadoras. Creio que o único jeito de um autor ‘levar reflexão social’ a um leitor é se esse autor estiver sempre refletindo sobre o social em sua vida. Aí passa inevitavelmente para o que escreve. Uns leitores vão perceber mais, outros menos".

"Cada um vai pegando aqui e ali aquilo que o sensibiliza mais, que o intriga e deixa curioso, completa suas lacunas, apazigua suas inquietudes e/ou desperta novas, sempre tão necessárias para driblar certezas e intolerância”

'Intolerância tem sido a marca do nosso tempo'

Assim como Tenório, a escritora expressou preocupação com as censuras promovidas por Donald Trump. “Infelizmente, estamos vendo esse horroroso cenário de retrocesso e de horror à literatura com suas ambiguidades, de censura, proibições e cancelamentos. E mais infelizmente ainda, não é apenas fora de nossas fronteiras que isso ocorre". 

Ela também traçou paralelos com as feiras literárias censuradas em diferentes cidades do Brasil, que ganharam mobilização de diferentes agentes culturais. "A todo momento lemos por aqui notícias de livros, autores ou assuntos proibidos e retirados de bibliotecas e colégios, de cortes em adoções de leitura que professores querem fazer em escolas, de vetos a palestras ou participações em debates. A intolerância tem sido uma marca de nosso tempo", observa Machado.

“A rapidez com que se condena a opinião divergente nas redes sociais (mas não só nelas) está consagrando a dificuldade em conversar com quem tem pontos de vista diversos, em aceitar experiências alheias como fundamento de diferenças, em relativizar histórias distintas ou heranças culturais díspares. E a censura, que nos regimes ditatoriais costuma vir de forma vertical, de cima para baixo, agora se espalha em sociedades democráticas que se arriscam a deixar de sê-lo, pois passa a vir de todos os lados, horizontalmente, rápida e convergente"

Em seguida, a escritora abordou a necessidade da dimensão atemporal e existencial da literatura na história humana:

“Ela atravessa o tempo exatamente por isso, porque é a arte das palavras, que vem completar a vida, pois esta não basta sozinha, como nos lembra o poeta Ferreira Gullar. É o pensamento simbólico (e sua expressão pelo meio da arte) que nos permite tentar fazer as grandes perguntas diante da perplexidade de existir. Sabendo que houve um dia em que não existimos e haverá um dia em que vamos morrer. A que será que se destina?, como canta Caetano Veloso”

Os dois autores participam do 5º Festival Literário Internacional de Itabira, o Flitabira, que acontece entre os dias 29 de outubro e 2 de novembro, com o tema “Literatura, Encruzilhada e a Rosa do Povo”, na Teatro da FCCDA. O evento adquiriu recursos por meio da Lei Rouanet do Ministério da Cultura, com o apoio da Prefeitura de Itabira, e todas as atividades da programação são gratuitas.

A celebração conta com outros autores homenageados na edição, além de Ana Maria Machado: Conceição Evaristo, Ignácio de Loyola Brandão e Milton Hatoum. Cada um deles, à sua maneira, reflete o vigor estético e a densidade ética que o festival propõe como eixo de reflexão. Jeferson Tenório será o curador do evento, que também tem como tema os 80 anos do livro “A Rosa do Povo”, de Carlos Drummond de Andrade.

"Acho que a escolha do do Drummond é no sentido de que a cidade respira o próprio Drummond. Esses dias eu tava comentando que o Drummond é um dos primeiros a a fazer críticas políticas assim nas poesias que ele fez e a Rosa Povo é, digamos, o livro em que a gente consegue encontrar mais esse teor político e ao mesmo tempo lírico e estético"

Na Flitabira, a poesia será uma forma de de luta política e de resistência, assim como em Rosa do Povo. "Em mundos autoritários, justamente a poesia e a arte de modo geral é vista como algo perigoso. Então acho que a escolha desse livro é significativo nesse sentido de mostrar que a poesia, a literatura, a cultura tem uma força muito grande e nada melhor do que ter o Drummond, uma espécie de padrinho para poder nos ajudar nessa nessa luta de resistência", conta.

Publicado em 1945, ao final da Segunda Guerra Mundial, a obra é marco da lírica social drummondiana. Nele, o poeta, vindo de Itabira, desloca-se do intimismo para assumir o lugar coletivo, a voz do “povo” em meio às dores e às esperanças de um tempo dilacerado. A Rosa do Povo é a flor que nasce da ruína, gesto de solidariedade e de esperança diante do absurdo. É o que também conta Ana Maria Machado.

"Drummond tem sido meu poeta do coração, meu guia constante pela vida afora, aquele que leio e releio, sei de cor e me acode nos momentos mais inesperados. Mas não consigo dividi-lo por livros datados. Para mim, o Drummond de um livro anterior como “Sentimento do Mundo” me diz tanto sobre o Brasil e o mundo de hoje quanto o poeta  de “A Rosa do Povo”. Por exemplo: “Não nos afastemos muito/ vamos de mãos dadas”. E também o poeta dos livros posteriores me acompanha sempre. Nunca esqueço que pouco depois de “A Rosa do Povo”,  ele se sentiu diante de um impasse que definiu como “Entre Lobo e Cão”, com o qual abre o livro “Claro Enigma”. Ou seja, a poesia continua dizendo muito e sempre. E, sobretudo, levantando perguntas do tipo “Trouxeste a chave?” E passando a bola para o leitor", afirma a escritora à Fórum.

Entre os convidados também estão os escritores Luiz Ruffato, Paulo Scott, Itamar Vieira Junior, Sérgio Rodrigues, Eloar Guazzelli, Letícia Wierzchowski, Thiago Lacerda, Márcia de Lima e Silva e Fernanda Verissimo, além de um conjunto plural de convidados que ampliam o diálogo entre literatura, jornalismo, memória e resistência.

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