A escritora Ana Maria Machado, vencedora do Hans Christian Andersen, personalidade literária do Prêmio Jabuti e sexta ocupante da Cadeira nº 1 da Academia Brasileira de Letras, conversou com a Fórum durante o 5º Festival Literário Internacional de Itabira (Flitabira) sobre a presença da cidadania e da resistência na literatura, além de comentar a importância da literatura infanto-juvenil. Aos 83 anos, a autora refletiu sobre seu processo criativo e as censuras a livros em tempos de retrocesso político.
Ela diz que sua escrita é moldada pela experiência humana em todas as dimensões: “O que me marca são as experiências vividas nos diversos âmbitos, em todos os momentos: individuais, coletivas, imaginárias, inconscientes, sensoriais, afetivas, racionais... tudo vem alimentar o que escrevo”.
Para ela, a literatura não é um conteúdo a ser apenas “ensinado”, mas vivido. “Ensinado para nenhuma idade. Em qualquer era, digital ou não. Afinal, todas são desafiadoras. Creio que o único jeito de um autor ‘levar reflexão social’ a um leitor é se esse autor estiver sempre refletindo sobre o social em sua vida. Aí passa inevitavelmente para o que escreve. Uns leitores vão perceber mais, outros menos.”
A escritora também destacou o papel da literatura infantil como campo de aprendizagem contínua e humanização. “Cada um vai pegando aqui e ali aquilo que o sensibiliza mais, que o intriga e deixa curioso, completa suas lacunas, apazigua suas inquietudes e/ou desperta novas, sempre tão necessárias para driblar certezas e intolerância”, afirmou.
Assim como o escritor Jeferson Tenório, curador do evento, Ana Maria Machado criticou o avanço da censura literária no Brasil e nos Estados Unidos, destacando que o cerceamento atinge tanto feiras locais quanto a países estrangeiros. “Infelizmente, estamos vendo esse horroroso cenário de retrocesso e de horror à literatura com suas ambiguidades, de censura, proibições e cancelamentos. E mais infelizmente ainda, não é apenas fora de nossas fronteiras que isso ocorre. A todo momento lemos por aqui notícias de livros, autores ou assuntos proibidos e retirados de bibliotecas e colégios, de cortes em adoções de leitura que professores querem fazer em escolas, de vetos a palestras ou participações em debates. A intolerância tem sido uma marca de nosso tempo”, disse.
Como mostrou a Fórum, diversas feiras literárias municipais e nacionais sofreram censura de governos locais no país, como por exemplo, a Festa Literária Pirata das Editoras Independentes em São Paulo, a Flipei, a feira literária em São José dos Campos e a feira literária de Alfenas, em Minas Gerais.
Para Machado, o Brasil carrega um aprendizado histórico em relação aos perigos da censura, mas vive hoje o desafio de uma intolerância que se manifesta também nas redes. “A rapidez com que se condena a opinião divergente nas redes sociais está consagrando a dificuldade em conversar com quem tem pontos de vista diversos, em aceitar experiências alheias como fundamento de diferenças. E a censura, que nos regimes ditatoriais costuma vir de forma vertical, agora se espalha horizontalmente, rápida e convergente. É uma desgraça para a democracia e para o humanismo."
A dimensão atemporal da literatura e sua capacidade de dar sentido à existência é um dos pontos destacados por ela. “A literatura atravessa o tempo exatamente por isso, porque é a arte das palavras, que vem completar a vida, pois esta não basta sozinha, como nos lembra o poeta Ferreira Gullar. É o pensamento simbólico, e sua expressão pelo meio da arte, que nos permite tentar fazer as grandes perguntas diante da perplexidade de existir. Sabendo que houve um dia em que não existimos e haverá um dia em que vamos morrer. A que será que se destina?, como canta Caetano Veloso", brincou.
Durante o Flitabira, que ocorre entre 29 de outubro e 2 de novembro, Ana Maria Machado e Jeferson Tenório homenageiam os 80 anos do livro A Rosa do Povo, de Carlos Drummond de Andrade. Para ela, Drummond segue sendo uma voz fundamental para compreender o Brasil. “Drummond tem sido meu poeta do coração, meu guia constante pela vida afora, aquele que leio e releio, sei de cor e me acode nos momentos mais inesperados. [...] A poesia continua dizendo muito e sempre. E, sobretudo, levantando perguntas do tipo ‘Trouxeste a chave?’ e passando a bola para o leitor.”
Com o tema “Literatura, Encruzilhada e a Rosa do Povo”, o festival reúne nomes como Conceição Evaristo, Ignácio de Loyola Brandão, Milton Hatoum, Luiz Ruffato, Paulo Scott, Itamar Vieira Junior, Sérgio Rodrigues e Letícia Wierzchowski. A programação gratuita é realizada pela Fundação Cultural Carlos Drummond de Andrade, com recursos da Lei Rouanet e apoio da Prefeitura de Itabira.