"Por Dentro do Irã", da estadunidense Medea Benjamin, que a editora Autonomia Literária lança neste sábado, 11, em São Paulo, é um guia indispensável para os brasileiros que querem conhecer melhor as nuances da Revolução Islâmica de 1979, que transformou o Oriente Médio.
Benjamin, uma das fundadoras do Codepink, Mulheres pela Paz, visitou o Irã várias vezes antes de publicar o livro, que ajuda o leitor brasileiro a superar o obstáculo do idioma para se informar sobre um país que a mídia ocidental demonizou desde a ascensão do regime liderado pelo aiatolá Khomeini.
Xiita, no Brasil, se tornou um adjetivo de forte conotação pejorativa, descolado da realidade dos fatos. As baterias se voltaram contra o Irã por conta da propaganda dos Estados Unidos contra um regime que abraçou a autonomia nacional, contrária ao modus vivendi imposto por Washington na região: ajuda econômica e guarda-chuva militar em troca de servilismo.
Para o leitor de primeira viagem, Medea Benjamin oferece um amplo panorama da sociedade iraniana e do equilíbrio interno de poder que torna o Irã, com todos os seus supostos defeitos -- aos olhos do Ocidente --, um dos paises relativamente mais democráticos da região.
É perdoável que Medea dê credibilidade ao think tank Freedom House como "avaliador" do estado das democracias no mundo. O instituto, baseado em Washington, não faz menção em sua página ao sequestro de imigrantes por homens mascarados do serviço de imigração dos EUA, o ICE.
Em compensação, ela faz várias comparações sobre o Irã e a Arábia Saudita que desmascaram seguidos governos estadunidenses: não houve um iraniano sequer envolvido até hoje em ataque nos EUA, mas o Irã foi colocado por Washington no "eixo do mal" e os sauditas, mesmo matando o jornalista dissidente Jamal Ahmad Khashoggi, colunista do diário Washington Post, jamais passaram perto da lista de países acusados de "promover o terrorismo", que também inclui Cuba.
Cabe lembrar que um dos primeiros ataques a um avião civil na História foi promovido por agentes ligados aos EUA: em 6 de outubro de 1976, um avião da Cubana de Aviación foi derrubado depois de decolar de Barbados, causando a morte de 73 pessoas. Os planejadores do ataque, Orlando Bosch Ávila e Luis Posada Carriles, receberam financiamento, apoio e proteção da CIA e do FBI.
Sanções ao Irã
O Irã está sob severas sanções dos Estados Unidos desde a revolução de 1979. Nos últimos 50 anos, as relações entre o Brasil e o Irã, que Medea Benjamin menciona brevemente no livro, passaram por uma transformação radical.
Nos anos 70 do século passado, mas principalmente a partir de 1980, milhares de empregos foram criados no Brasil, especificamente na região de São José dos Campos, por conta do fornecimento de armas ao regime de Saddam Hussein. A Avibras forneceu lançadores de foguetes Astros e a Engesa, hoje falida, vendeu blindados.
Numa visita deste repórter ao Iraque pouco antes da invasão estadunidense de 2003, viajamos por uma longa estrada construída pela Odebrecht no deserto, de quase 900 quilômetros, que liga Amã, na Jordânia, a Bagdá. Uma vez na capital iraquiana, ainda era comum ver nas ruas os veículos Passat fabricados no Brasil e exportados para o Iraque.
O Brasil foi um dos fornecedores militares do Iraque que, com endosso do Ocidente, invadiu o Irã em 1980, buscando aumentar sua influência no Golfo Pérsico ao assumir o controle da bacia do Shatt Al Arab, tributário dos rios Tigre e Eufrates que desagua no golfo.
A guerra foi uma das mais cruéis que já se viu e pode ser considerada a primeira tentativa estadunidense de derrubar o regime dos aiatolás por procuração.
Em Bagdá, ainda hoje, o subsolo está repleto de abrigos anti-aéreos. Este repórter, ao visitar um deles, notou que os elevadores eram da empresa alemã Siemens. A França, assim como o Brasil, faturou alto com os petrodólares reciclados de Saddam, vendendo a ele os mísseis Scud com os quais Teerã foi aterrorizada. O Ocidente forneceu a Saddam os precursores das armas químicas com as quais o Iraque bombardeou imensas formações de infantaria despachadas pelo Irã ao campo de batalha, que incluíam adolescentes.
Os EUA intervieram diretamente no final do conflito, quando o Irã tinha a iniciativa: forneceram informações detalhadas de inteligência, a partir de seus satélites, que provocaram um "empate". A guerra terminou em cessar-fogo, depois de 1 milhão de mortos e feridos.
A invasão do Iraque foi um elemento definidor do futuro da República Islâmica de uma forma que talvez nem a autora Medea Benjamin tenha se dado conta. Levou os dois países à exaustão econômica, mas deu sentido às ideias fundadoras do aiatolá Khomeini, que via a civilização islâmica como uma alternativa ao Ocidente e à União Soviética e apostou tudo na autonomia nacional iraniana.
O seminal The Longest War, the Iran-Iraq Military Conflict [A guerra mais longa, o conflito militar Irã-Iraque], de Dilip Hiro, até hoje não foi traduzido, privando os leitores brasileiros de um registro sem o qual é impossível entender o Irã de hoje. The Mantle of the Prophet: Religion and Politics in Iran [O Manto do Profeta: Religião e Política no Irã], de Roy Mottahedeh, é outro clássico ainda não traduzido.
Isso aumenta o valor do livro de Medea Benjamin que Amauri Gonzo traduziu para a Autonomia Literária.
Reviravolta
Visto com desconfiança pelos governantes em Teerã pelas profundas relações econômicas que desenvolveu com o Iraque durante a guerra mais longa do século, o Brasil recuperou seu protagonismo no segundo governo Lula, quando se juntou à Turquia para fechar um acordo nuclear com o Irã, anunciado em 17 de maio de 2010.
O acordo foi bombardeado pela mídia brasileira e ocidental como "interferência indevida" do Brasil em assuntos que não lhe diziam respeito. Porém, quando Barack Obama fechou um acordo nuclear com o Irã, em 14 de julho de 2015 (batizado de P5 + 1 por envolver os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, mais a Alemanha), havia traços da iniciativa turco-brasileira por toda parte.
Guiado por Israel, Donald Trump enterrou o acordo em seu primeiro mandato.
Desde então, o Irã se associou aos BRICS e à Organização de Cooperação de Xangai, reatou relações diplomáticas com a Arábia Saudita com mediação da China (destino de 90% do petróleo exportado pelo Irã) e voltou-se à integração regional sob seu presidente mais reformista, Masoud Pezeshkian, um cirurgião cardíaco que foi reitor de universidade e enfrenta forte oposição da linha dura -- que junta facções religiosas com alas da poderosa Guarda Revolucionária.
Este completo giro do Irã em suas relações externas não está contemplado no livro de Medea Benjamin, publicado em inglês em 2018. Mesmo assim, Por Dentro do Irã é um guia essencial para quem pretende entender uma civilização que contribuiu (sem spoilers) com a Declaração Universal dos Direitos Humanos endossada pelas Nações Unidas.
Sócio do Brasil nos BRICS e com 90 milhões de habitantes, o Irã é peça chave na pretendida ligação terrestre entre a China e a Europa, um projeto essencial para concretizar o mundo multipolar que também é prioridade do Itamaraty e dos brasileiros.