É pau, é pedra, é o fim do caminho; é um resto de toco, é um pouco sozinho; é um caco de vidro, é a vida, é o sol; é a noite, é a morte, é um laço, é o anzol...
Escrita por Tom Jobim em 1972 e apresentada pela primeira vez no seu Disco de Bolso, Águas de Março se tornou um clássico da bossa brasileira. Em 2001, foi nomeada a melhor canção brasileira de todos os tempos em uma pesquisa realizada com 214 jornalistas, músicos e artistas, conduzida pela Folha de S.Paulo.
Já em 2009, em outra pesquisa, desta vez promovida pela revista Rolling Stone, Águas de Março ficou em segundo lugar, atrás de Construção, de Chico Buarque.
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O que muita gente não sabe, no entanto, é sobre o que trata a música, em que uma sequência de objetos naturais e construções frasais aparentemente "sem sentido" se encadeiam numa composição melódica descrita como obra-prima. Em alguns momentos, as palavras "concretas" desembocam em fragmentos de seus fonemas: im, inho; esto, oco; uco, inho; aco, idro; ida, ol; oite, orte; aço, zol.
Afinal, como toda obra de arte subjetiva, Águas de Março não possui uma interpretação única. No entanto, entender o contexto de sua composição e apresentação ajuda a perceber a profundidade da arte musical de Jobim.
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Durante os anos derradeiros da censura promovida pelo governo ditatorial instalado no Brasil em 1964 — e um ano antes de compor sua obra-prima —, Tom Jobim havia sofrido perseguição política e passado por horas de interrogatório policial junto a outros artistas com quem havia assinado, de maneira conjunta, um manifesto em oposição à censura.
Após a assinatura do manifesto, os artistas, num gesto simbólico perigoso, se retiraram do Festival Internacional da Canção, exibido pela Rede Globo, e foram detidos pela polícia brasileira.
Isso "instigou" a repressão da ditadura e fez com que o governo brasileiro enquadrasse os artistas — entre eles Jobim — na Lei de Segurança Nacional, que definia possíveis ameaças à ordem social e ao território brasileiro, então sob o comando dos oficiais militares.
Apesar do susto, Jobim não foi detido por muito tempo e foi liberado de maneira bastante informal, após assinar uma declaração afirmando não ter tido a intenção de se posicionar contra o regime.
À época da composição de Águas de Março, além disso, ele enfrentava graves problemas de saúde, e chegou até a acreditar que morreria de cirrose. Em entrevistas da época, ele afirmou que a música surgiu durante um período difícil, em que "estava muito na fossa", "bebia muito" e "parecia que tudo havia acabado".
Daí a literalidade simples e, ironicamente, metafórica da música, em que elementos objetivos constroem uma narrativa visual e estética sobre o passar da vida: o cotidiano, as chuvas de março — que fecham o verão —, a lama, as dificuldades do caminho enlameado, entre outras imagens inspiradas no cotidiano.
Em uma de suas entrevistas mais reveladoras, concedida à TVE Brasil em 1986, Jobim explicou que a música oferece "águas de março diferentes" a depender de quem a ouve. Ele contou que a composição nasceu enquanto estava alojado em um sítio, em meio às chuvas do final de março, que dificultavam o deslocamento e as obras de infraestrutura.
Uma das inspirações para a estrutura de Águas de Março foi o poema O Caçador de Esmeraldas, do poeta parnasiano Olavo Bilac, que narra o perecimento do bandeirante Fernão Dias Paes Leme em meio às tempestades de um "imenso deserto líquido" nas suas campanhas de exploração do interior do Brasil.
Já o "é pau, é pedra" foi inspirado em Pisa Baiana, um maracatu (samba de inspiração afro-brasileira que combina música, dança e rituais):
"É pau, é pedra, é seixo miúdo" — diz um trecho da canção tradicional, incorporado por Jobim em sua composição.
No refrão de Águas de Março, porém, surge uma esperança: a tal "promessa de vida no teu coração" — que remete à passagem das chuvas como símbolo de renascimento e renovação das circunstâncias.
A versão mais famosa de Águas de Março foi gravada por Jobim em dueto com Elis Regina, para o disco Elis & Tom, de 1974.
A produção desafiadora do disco, que unia o "ego" triunfante de Jobim, à época já considerado um gênio da música brasileira, à impaciência e rebeldia de Elis Regina, foi retratada no documentário "Elis & Tom — Só Tinha de Ser com Você", dirigido por Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay e lançado em 2022, com cenas reais dos bastidores da gravação.