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'Vida em Marte': Tracy Smith e a poesia como resistência ao governo Trump

Em entrevista à Fórum, a poetisa e educadora vencedora do Pulitzer falou sobre livro dedicado ao pai, Floyd Smith, que trabalhou no Telescópio Hubble, onde entrelaça ficção científica, luto e política norte-americana

Tracy K Smith, vencedora do Pulitzer de poesia.Créditos: Reprodução de vídeo / Youtube
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Vida em Marte parece um livro que ainda fala sobre o presente, mas foi escrito em um momento já marcado pelo início das tensões globais, da desinformação, dos extremismos e da intolerância nos Estados Unidos, período esse que segue se arrastando de forma ainda mais acentuada no segundo governo Trump. Foi na primeira gestão do republicano que a poetisa e educadora norte-americana Tracy Smith se tornou a 22ª Poeta Laureada dos EUA.

O título, concedido pela Biblioteca do Congresso estadunidense, transformava a escritora e educadora em uma embaixadora oficial da poesia norte-americana. Era um gesto simbólico: uma mulher negra, filha de um engenheiro da NASA que acabara de ganhar o Prêmio Pulitzer em 2012 por Life on Mars (Vida em Marte, recém-publicado no Brasil pela Editora Relicário Edições), seria agora uma voz lírica de uma nação profundamente dividida. Ela ocupou o cargo entre 2017 e 2019.

À Fórum, a escritora conta que viu a poesia como antídoto ao clima de intolerância e ódio que marcava os noticiários. Em Vida em Marte, livro dedicado ao pai, Floyd Smith, engenheiro da Força Aérea americana que trabalhou no projeto do Telescópio Espacial Hubble, ela entrelaça referências à ficção científica de David Bowie ao luto e à política norte-americana. Naquele momento seu pai tinha acabado de falecer e, pouco depois, Tracy engravidou da primeira filha. O espaço sideral, assim, virou metáfora para a memória, o luto e o nascimento. A resposta veio por meio de poemas que cruzam o cósmico e o íntimo.

"Nenhum poeta me arrepia como Tracy K. Smith, e seu livro Vida em Marte me faz chorar. É uma elegia selvagem e caleidoscópica para seu pai, Floyd William Smith, um homem negro que cresceu no Alabama antes dos direitos civis e que depois trabalhou no Telescópio Hubble como engenheiro. Ele nasceu em 1935 e morreu em 2008. Smith transformou sua dor em transcendência; a obra é íntima e infinita", descreveu a jornalista do jornal New Yorker, Jia Tolentino.

Outro jornalista, Joel Brouwer, também descreveu a obra como emocionante à época. “Em Vida em Marte, Smith se revela uma poeta de alcance e ambição extraordinários. Não é fácil ser tão convincente tanto no gesto grandioso quanto na contemplação reverente de um humilde prato. Como toda a melhor poesia faz, Vida em Marte primeiro nos remete ao magnífico frio da imaginação e depois nos devolve a nós mesmos, transformados e consolados", escreveu.

Amor e resistência

"Comecei a escrever o livro num momento em que estava profundamente preocupada com a preponderância do ódio e da intolerância e da guerra. Como muitos outros escritores com dúvidas sobre os acontecimentos atuais, decidi usar alguns dos tropos da ficção científica para explorar minhas ansiedades, essencialmente perguntando: Considerando o que estamos fazendo no presente, qual é o futuro que estamos criando? O livro se baseia em certas crises globais, mas no fundo era um espaço no qual eu estava lutando com minha própria compreensão dos Estados Unidos. É daí que vêm poemas como “Life on Mars”, “They May Love all that He Has Chosen and Hate All that He Has Rejected” e “Sci-Fi”", explica à Fórum.

"A partir desse momento, comecei a abrir espaço para pensar não apenas na vida na Terra, com suas políticas e conflitos humanos, mas também nos mistérios da vida e da morte, na vida após a morte e no próprio universo"

Bibliotecária do Congresso Carla Hayden, a Poetisa Laureada Tracy K. Smith e a Jovem Poetisa Laureada Nacional Amanda Gorman, que recitou durante posse de Joe Biden em 2021. Foto: Creative Commons
Tracy K. Smith. Foto: Divulgação

“Passei a imaginar o universo como um lugar onde minha filha que ainda não tinha nascido, meu pai falecido e toda minha vida mundana estavam acontecendo lado a lado. Os poemas se tornaram um lugar onde comecei a processar minha dor e amor por ele. A 'Vida em Marte' trouxe o plano espiritual para o meu vocabulário, onde permanece central em minha imaginação”

Durante o governo Trump, essa imaginação se tornou ainda mais crucial. Na contramão de uma política que promovia muros e negacionismo científico, Smith construiu pontes com palavras e usou a arte para acolher o mistério do mundo, em vez de tentar reduzí-lo a certezas absolutas. "Como um poema pode me ensinar a ver o mundo e a mim mesmo pelos olhos dos meus filhos, dos meus vizinhos ou das pessoas do mundo com as quais não me dou bem?", disse.

"Explorei meus próprios pontos de vista e desejos - moldados pela força do amor - sobre como seria esse vasto sistema ao qual pertencemos"

'A arte ensina a conviver com o mistério'

Ela vai mais longe e afirma que a arte - a escrita literária - se difere da ciência e da religião ao propor a interrogação como resposta ao mistério do universo e das coisas. Um conforto em meio à solidão. “A a arte não busca resolver o mistério, mas sim nos ajudar a conviver com ele”, destaca à Fórum. Citando Robert Frost, lembra que a poesia é “uma permanência momentânea contra a confusão”. Em tempos de discursos autoritários e verdades simplificadas, essa resistência se torna essencial.

Foto: Divulgação

"Talvez a diferença entre a arte e a ciência ou a religião (pelo menos como elas existem na imaginação popular) seja o fato de que a arte não se propõe a resolver o mistério ou a afirmar a noção de uma única resposta ou de uma única teoria que deve falar a todos e resistir ao teste do tempo. Em vez disso, a arte introduz um conforto na incerteza e na maleabilidade"

Ainda segundo ela, é possível que esses cosmos sejam mais interligados. "Também é verdade que, ultimamente, nossos vocabulários de ciência, religião e arte parecem estar se aproximando uns dos outros de maneiras muito interessantes."

Na época, Tracy K. Smith percorreu o interior das Américas e levou poesia a quem jamais a tinha ouvido ao vivo, e cumpriu uma missão: lembrar que a literatura é, também, uma forma de resistência — e de reencantamento do mundo. Em vez de se restringir aos grandes centros urbanos e universidades de prestígio, a autora decidiu percorrer bibliotecas em pequenas cidades, centros comunitários, escolas rurais para democratizar o acesso à poesia e, com ela, à escuta, ao afeto, à pluralidade. “Muita gente trazia os filhos para ver pela primeira vez uma mulher negra falar em público”, lembrou a autora.

"Todas as muitas formas, disciplinas e doutrinas para decifrar e teorizar nossa existência, e todos os vocabulários de sentimentos com os quais convivemos, convergem na imaginação do artista", destacou.

Confira um poema do livro de Tracy:

“Talvez o grande erro seja acreditar que estamos sós,
Que outros vieram e se foram – um sinal momentâneo –
Quando o tempo todo o espaço pode estar cheio de trânsitos,
Estourando as costuras com energias que não sentimos
Nem vemos, fluindo contra nós, vivendo, morrendo, decidindo
Fincar pé firme em planetas por todos os cantos,
Se curvando às grandes estrelas que comandam, lançando pedras
Nas suas luas, seja lá qual forem. Eles vivem se perguntando
Se seriam os únicos, conhecendo só o desejo de conhecer,
E a grande distância escura na qual eles – nós – lampejamos.” (p. 18)

Eventos no Brasil

Nesta sexta-feira (16), a Tracy Smith participa do Festival Poesia no Centro, em São Paulo (Cultura Artística - Palco 3 : Rua Nestor Pestana, 196 e conversa com as jornalistas Adriana Ferreira Silva e Nanni Rios, às 21h.

Na segunda-feira (19), a conversa de Tracy K. Smith é com a também jornalista, tradutora e poeta Stephanie Borges num lançamento com sessão de autógrafos no Rio de Janeiro, na Livraria Janela (Rua Maria Angélica, 171B, no Jardim Botânico), às 19h.

E, na terça-feira, dia (20), ela se reúne com Eduardo Coelho no Auditório PACC da Faculdade de Letras da UFRJ (Av. Horácio Macedo, 2151 - Cidade Universitária, Ilha do Fundão. Vida em Marte é o primeiro livro da autora publicado no Brasil e, segundo o New York Times Book Review, um dos livros de poesia mais notáveis de 2011 e premiado em 2012 com o prestigioso Prêmio Pulitzer de Poesia.

Foto: Divulgação
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