Em 1665, o pintor holandês Johannes Vermeer produziu aquela que se tornaria sua obra mais célebre: Meisje met de parel — em tradução literal, Menina com brinco de pérola.
Desde então, passaram-se séculos de admiração pela composição, inclusive o mistério que a envolvia, e inúmeros especialistas desenvolveram teorias sobre a identidade da enigmática figura retratada — se é que ela era, de fato, uma pessoa real.
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A pintura, frequentemente chamada de “a Mona Lisa holandesa”, não é um retrato no sentido tradicional, mas pertence ao gênero tronie. Esse termo holandês designava, no século XVII, um tipo de pintura tornada comum nos Países Baixos, que era caracterizada pela representação de expressões faciais, tipos humanos e figurinos exóticos, mas sem o compromisso de retratar um indivíduo específico.
As tronies serviam para o estudo de diferentes fisionomias, luzes ou cores, e permitiam aos artistas experimentar técnicas e temas de maneira mais livre do que nos retratos encomendados.
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Por isso, a figura jovem representada por Vermeer pode não ter sido necessariamente “retratada” — isto é, não há evidências de que fosse uma pessoa real ou mesmo uma conhecida do artista. Na pintura, o fundo escuro e neutro do retrato reforça o isolamento da menina, que se volta levemente para trás, com delicadeza. Ela tem o olhar suave e a boca entreaberta, traços que contribuem para o encantamento de quem observa. A luz, um elemento essencial na obra de Vermeer, incide sobre o quadro lateralmente, destacando parte do rosto da menina e refletindo sobre seu grande brinco de pérola.
Créditos: Domínio Público
A composição segue o estilo característico do pintor, famoso por suas cenas domésticas e silenciosas do cotidiano da burguesia holandesa do século XVII. Vermeer, nascido em Delft em 1632, teve uma carreira relativamente curta e produziu apenas cerca de 35 pinturas conhecidas. Durante sua vida, sua obra teve reconhecimento modesto, e ele enfrentou dificuldades financeiras, sobretudo após o colapso do mercado de arte durante a guerra franco-holandesa. Foi apenas no século XIX que seu nome foi redescoberto pela pintura.
Em 2003, a mais famosa pintura de Vermeer (e talvez de toda a Holanda) inspirou um longa-metragem homônimo (Girl with a Pearl Earring), dirigido por Peter Webber. O filme recebeu aclamação da crítica e diversas indicações a prêmios, incluindo uma indicação ao prêmio BAFTA de Melhor Atriz pela atuação de Scarlett Johansson no papel da criada Griet, que o filme supõe ser a menina da pintura.
Baseado no romance de 1999, da escritora Tracy Chevalier, a narrativa do filme constrói uma história ficcional em torno da criação da obra, explorando a relação íntima entre Vermeer e sua jovem empregada. Na trama, Griet é filha de um pintor que ficou cego e, por necessidade, é enviada para trabalhar na casa do artista. Ali, ela chama a atenção não apenas por sua beleza, mas por sua sensibilidade ao uso da luz e da cor, características que cativam Vermeer e o inspiram a pintá-la.
Historicamente, no entanto, a identidade da jovem com brinco de pérola permanece envolta em mistério. Seria ela uma das filhas do pintor? Uma amante secreta? Uma criada real? Ou só uma criação artística, idealizada a partir de modelos do seu ateliê? Não há registros documentais que confirmem sua existência, e a própria pérola usada por ela levanta dúvidas: estudiosos acreditam que o adorno é grande demais para ser uma joia real, o que sugere que poderia ter sido confeccionado em vidro ou outro material, com o objetivo de simular o luxo e conferir um aspecto quase fantasioso à figura retratada.
Além das hipóteses biográficas, há também as interpretações iconográficas. Alguns estudiosos sugerem que a figura poderia representar uma sibila — mulheres da Antiguidade grega que se criam dotadas do dom da profecia —, ou talvez uma figura bíblica, algo comum na pintura barroca.
O turbante azul e amarelo usado pela jovem, invocado como um traço da pintura da época que se fascinava com elementos das culturas árabe e oriental, reforça a possibilidade de a pintura não passar de uma representação "fantasiosa" de alguém que na verdade não existiu.
A fama do quadro de Vermeer aumentou ainda mais no século XX, especialmente após ter sido adquirido pelo Mauritshuis, o museu de Haia, em 1902. Lá, ele se consolidou como um ícone da arte ocidental, alvo de reproduções, paródias, estudos científicos e inspiração para a cultura popular. Em 2018, cientistas e restauradores realizaram uma análise detalhada da obra, utilizando técnicas de imagem avançadas, como tomografia e microscopia de varredura, a fim de compreender melhor os pigmentos e a técnica de Vermeer. Descobriu-se, por exemplo, que o fundo original provavelmente não era totalmente escuro, mas de um verde escuro translúcido, hoje quase invisível devido à degradação dos materiais.
Hoje, a Menina com brinco de pérola permanece como um dos retratos mais enigmáticos da história da arte.