MÚSICA

Transa, de Caetano Veloso: a história por trás do melhor disco do compositor baiano

Produzido no exílio, 'Transa' reúne influências do afoxé, do reggae e da música brasileira, e é um dos discos mais ricos em 'antropofagia'

Caetano Veloso.Créditos: Fotografia / Johnny Clamp
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Entre 1969 e 1971, no auge da Ditadura Militar, o baiano Caetano Veloso — uma das vozes que trouxeram o movimento da Tropicália ao Brasil, cujo primeiro disco foi lançado pouco tempo antes, em 1967 (Domingo, em parceria com Gal Costa) — exilou-se em Londres para fugir da repressão ditatorial. Nesse período de criação intensa, dividiu uma casa em Chelsea, no centro londrino, com Gilberto Gil.

Caetano já era uma das vozes emergentes no cenário musical brasileiro e, enquanto esteve exilado, produziu um dos mais icônicos e ricos álbuns da música nacional.

Em 1968, com o endurecimento do regime militar, ele já havia composto seu 'É proibido proibir' — "eu digo não ao não: eu digo 'é proibido proibir'" —, que se tornou um dos hinos da música de resistência ao ser apresentado (vaiado e desclassificado) no III Festival Internacional da Canção. Isso ocorreu antes mesmo de Chico Buarque lançar Cálice, outro símbolo sagrado daquele período sombrio (mas muito profícuo) da música brasileira.

Transa

O disco Transa, gravado por Caetano e seus amigos Jards Macalé, Tutty Moreno, Moacyr Albuquerque e Áureo de Sousa em 1971, após uma breve “pausa” no período em que esteve em exílio, é um desses trabalhos que demonstram a potência de estar “vivo, muito vivo”, e de gozar um Brasil que é, acima de tudo, uma experimentação conjunta de tudo o que o forma: a água com areia que brinca na beira do mar, a mucama com o feitor, as Ave-Marias e o povo brasileiro (do norte, do centro e do sul inteiro).

Como conta um artigo de Mateus Baldi, “Caetano estava numa melancolia profunda no purgatório londrino, amortizada pelo retorno ao Brasil em janeiro de 1971 para o aniversário de casamento dos pais [...]. E, em 1968, havia lido e ficado ‘surpreso e maravilhado’ com Tristes trópicos, de Claude Lévi-Strauss, [que] emendou com a leitura de O pensamento selvagem. Quando o antropólogo francês morreu, ele declarou que a leitura o levou a ‘pensar muitas coisas sobre nosso país de um modo que não seria possível antes’”.

Naquele ano, Caetano conseguiu permissão da ditadura para permanecer no Brasil por um mês, quando assistiria à missa de comemoração dos 40 anos de casamento de seus pais. Durante sua estadia no Rio de Janeiro, passou por um interrogatório dos militares, e o regime solicitou que ele compusesse uma música para “elogiar a nova Transamazônica” — a rodovia construída pelo governo Médici (que nunca chegou a ser concluída). Ele, é claro, recusou a proposta, mas, ao retornar a Londres, inspirado pelo que viu durante sua curta visita ao país, começou a compor o LP Transa, que foi gravado em um estúdio improvisado em Londres e lançado no Brasil no ano seguinte, em 1972, já em meio ao seu retorno definitivo ao país.

Desse disco faz parte o que ele chamou, em entrevista ao Jornal do Brasil em 1991, de sua “melhor música em inglês”: Nine Out of Ten, que mistura influências tão diversas quanto a própria Tropicália, com traços do reggae da Portobello Road e grande influência de Bob Marley e dos Beatles (além de vários elementos tomados de sua terra natal).

Capa do disco Transa (1972). Créditos: Reprodução

As músicas do disco, especialmente as cantadas em inglês, remetem a uma cultura que não é a sua — e que, no entanto, interage com a sua por vezes em forma de desafio: “Bet you'll never get to know me” (aposto que você nunca vai me conhecer), “there's nothing you can show me from behind the wall” (não existe nada que você possa me mostrar atrás da parede).

Outras, como Triste Bahia — musicalização de um poema de Gregório de Matos e Guerra —, trazem um ritmo enérgico que mistura instrumentos nativos, exultações linguísticas, símbolos visuais e significados.

Ê, camará”: a planta nativa brasileira, de flores amarelas, vermelhas ou laranjas, e o “companheiro” da capoeira, com quem se compartilha a vida dentro e fora da roda; “bandeira branca enfiada em pau forte”, um fragmento do Ponto do Guerreiro Branco, que evoca a tradição das religiões afro-brasileiras na Bahia; “Afoxé, leî, leî, leô”: um cântico iorubá associado ao cortejo de rua Afoxé, com raízes no Candomblé e na Umbanda; “O vapor de cachoeira não navega mais no mar”, um verso de Palavra Cantada.

Em It’s a Long Way, que mistura inglês e português, Caetano compõe um saudosismo e evoca as resistências do sofrimento e do amor, com referência ao Berimbau-Consolação de Vinícius de Moraes e Toquinho ("E se não tivesse o amor? E se não tivesse essa dor? E se não tivesse o sofrer? E se não tivesse o chorar?"). As metáforas se unem à referência aos Beatles, passam pelas dificuldades do caminho (“We're not that strong, my Lord”), e, no fim, acabam de volta ao Brasil, numa referência a Dorival Caymmi e sua Lenda do Abaeté: “No Abaeté tem uma lagoa escura, arrodeada de areia branca”.

Em Neolithic Man, outra das composições em inglês do álbum, a abstração poética de ser "o silêncio que se ouve de repente após a passagem de um carro" faz jus à fala de Caetano em Verdade Tropical: "os brasileiros não têm o direito de usar o inglês como se fosse possível", apesar de serem bombardeados pela cultura e pela língua americana.

A antropofagia da Tropicália — e de Caetano —, esse "modo de radicalizar a exigência de identidade", passa também pela apropriação simbólica daquilo que não é seu, mas atravessa sua vivência de maneira irretocável.

A música, em que batidas se intercalam aos acordes pesados, e que é ela mesma marcada pelos intervalos do silêncio invocado no início, é uma representação antropofágica: “Espaços crescem ao meu redor”, “Você não vai me ver; você só vai ver aquilo que não pode ver de muito longe”.

Deus falou comigo de dentro de uma pedra: ‘Você é meu filho’, e meus olhos varreram o horizonte para longe.”

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