LITERATURA

Fiódor Dostoievski: cinco livros para entender a filosofia de um dos maiores escritores da história

O escritor russo, nascido em Moscou em 1821, é um dos nomes clássicos da literatura russa e influenciou autores igualmente geniais que vieram depois

Dostoiévski em pintura de Vasily Perov.Créditos: Wikipedia
Escrito en CULTURA el

Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski é um dos nomes clássicos da literatura russa e um dos que mais influenciaram autores igualmente geniais que vieram depois. As narrativas psicológicas de Clarice Lispector, o existencialismo sartreano, o nitianismo de Nietzsche, o fantástico Gabriel García Márquez e até Dickens e Murakami entram na lista dos que usaram Dostoiévski como fonte de inspiração para escrever de maneira existencial, com apreço por uma visão interior e agonizante do mundo e das filosofias todas.

O escritor russo, nascido em Moscou em 1821, num momento fervilhante da história de seu país (ele já chegou a ser preso por tramar contra o Czar, num contexto em que a monarquia russa passava por uma crise de legitimidade popular), é conhecido por suas narrativas altamente filosóficas, centradas em personagens com perturbações intelectuais e amorosas, que tentam discernir no que acreditar e como lidar com a potência do amor romântico.

Sua primeira obra, Gente Pobre, foi bem recebida pela sociedade literária e pelos críticos (afinal, ele já era escritor, jornalista e ensaísta de veículos da mídia russa da época).

Sua contribuição literária é tão simbólica que influenciou até correntes da teologia (em Irmãos Karamázov, discutivelmente sua obra-prima, e a última escrita por ele, a religião é um grande foco de questionamentos e desespero interno). 

Outros livros famosos de Dostoiévski tocam em ainda outras áreas sensíveis da intelectualidade ocidental, como a psicologia (Crime e Castigo é um caso de estudo clínico e psicanalítico excelente) e a filosofia existencialista (Memórias do subsolo é uma representação clara).

Aqui vão as principais obras para (se desafiar a) entender a filosofia e o estilo de um dos maiores escritores da história.

1. Crime e Castigo (1866)

Crime e Castigo - Editora 34. 
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Crime e Castigo é uma narrativa altamente psicológica, baseada num ato brutal: Raskólnikov, um estudante pobre em São Petersburgo, decide, conscientemente, assassinar uma velha agiota usando um machado. 

Mas não se trata de um assassinato comum, motivado por discórdia, vingança ou a pura necessidade material. Quando comete o crime, atormentado por um monólogo interno típico de um obsessivo, Raskólnikov está “testando uma tese”: a de que certos homens extraordinários (como Napoleão) têm o “direito moral” de cometer crimes em nome de um bem maior, de um futuro mais justo ou racional. 

A mulher que ele decide assassinar, uma senhora conhecida por agiotagem, mesquinha e má, pode gerar um bem maior para sua família pobre, especialmente a irmã, forçada a se casar com um homem ruim por falta de recursos.

Mas a grande contradição que Dostoiévski explora na obra é psicológica mais do que religiosa ou material: profunda e negativamente afetado pelo crime, ele passa a ser consumido pela angústia do que fez, pela degradação que causou em si mesmo, e acaba por se isolar no seu quarto sujo, sem vontade de sair à rua e com medo.

Aprisionado por uma espiral de culpa e paranoia, ele, que queria provar uma tese metafísica superior, se torna cada vez mais frágil. Uma relação dialética da obra é estabelecida com Sônia, a personagem que se prostitui para sustentar a família, mas, ao contrário de Raskólnikov, vive em fé, compaixão e humildade. Lentamente, o orgulho de Raskólnikov começa a ser consumido, e o fim é trágico.

O destaque da genialidade de Dostoiévski é sua falta de pretensão em relação a qualquer moralismo ou moralidade: existe, na obra, só uma busca desesperada por salvação em um mundo onde Deus parece ausente.

2. Memórias do Subsolo (1864)

Memórias do Subsolo - Editora 34.
Créditos: Reprodução
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Em Memórias do Subsolo, Dostoiévski não constrói uma narrativa com enredo tradicional, mas entra num monólogo filosófico que é dividido em duas partes. 

Na primeira, o narrador anônimo — o tal "homem do subsolo" — ridiculariza a lógica racionalista de sua época, num exercício filosófico de crítica, e zomba da ideia pretensiosa (sustentada pelos intelectuais ocidentais e positivistas) de que a humanidade progride com base na razão e no cálculo utilitário. 

Na segunda parte, o narrador começa a expor seu passado, principalmente o romance frustrado com uma jovem chamada Liza, que ele humilha e depois implora por perdão. 

De uma maneira psicanalítica, o personagem de Dostoiévski quer ser amado, mas, à sua forma, por medo e autonegação, acaba repelindo o amor constantemente. O desejo de ser visto faz com que ele se esconda. E a metáfora do subsolo é, acima de tudo, uma referência da consciência moderna, cínica, ressentida e autodestrutiva. 

A escrita do livro é marcada por desvios, ironias e repetições, uma espécie de fluxo de consciência invertido. 

3. Gente Pobre (1846)

Gente Pobre - Editora 34.
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O primeiro romance publicado de Dostoiévski, Gente Pobre acompanha a troca de cartas entre Makar Devúchkin, um escriturário velho e solitário, e Vária, a jovem órfã por quem ele nutre um afeto paternal e, ao mesmo tempo, romântico. 

Eles vivem de maneira muito pobre, em condições precárias, e suas cartas revelam uma intimidade que é, no entanto, tomada pela vergonha de sua condição (e de sua relação), mas também pelo cuidado e por uma espécie de resignação que é clássica entre os personagens de Dostoiévski.

O estilo da obra é mais contido, influenciado pelo realismo de Gogol, mas não deixa de ser emocional e repleto de apelos à dignidade, ao direito de amar, a uma ternura humana que é desenvolvida com a intimidade e um tanto poética, como é o próprio Dostoiévski. 

O livro é, também, uma espécie de denúncia social da extrema pobreza na Rússia, mas não só da pobreza material: também de um certo esvaziamento de sentido pelo qual passavam as pessoas de sua época.

4. Recordações da Casa dos Mortos, ou Escritos da Casa Morta (1861)

Escritos da Casa dos Mortos - Editora 34.
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Fruto da experiência do próprio Dostoiévski na sua passagem por um presídio siberiano, quando foi preso por sua participação num grupo de ideários radicais anti-czaristas, Recordações da Casa dos Mortos, ou Escritos da Casa Morta, se apresenta como um "relato documental" de Aleksandr Petrovitch, um nobre condenado por assassinato que tenta compreender o universo dos criminosos comuns com quem divide o cárcere. 

O narrador revela uma variedade de personalidades e afetos, e a narrativa demonstra até uma espécie de ética interna que subsiste entre os prisioneiros.

Meio autobiográfico, meio observador e etnográfico, o livro é repleto de episódios dramáticos, reflexões filosóficas e vislumbres de “transcendência”, somadas à brutalidade crua da prisão.

A ideia mais filosófica da obra é a de que o sofrimento, por mais grotesco e brutal, pode também purificar — uma filosofia presente em grande parte da produção de Dostoiévski.

5. Os Irmãos Karamázov (1880)

Os irmãos Karamazóv - Editora 34.
Créditos: Reprodução

A imensa e, discutivelmente (mas, aqui, sem discussões), melhor obra de Dostoiévski é quase uma elegia a diferentes visões, filosofias e formas de ver o mundo; e aos diferentes caracteres e situações que moldam a vida e as escolhas das pessoas, mesmo (ou sobretudo) quando elas fazem parte da mesma família

No último dos romances escritos por Dostoiévski, problemas familiares — como um pai louco e ausente, que se casa de maneira impensada e maltrata mulheres — se unem a temáticas intelectuais que assolavam as mentes brilhantes do século XIX, como o poder e a influência da religião, que papel ela deveria tomar na vida dos homens, a busca pelo prazer num mundo em que a punição divina já não importa, as paixões e os vícios… É, enfim, um retrato profundo e ornamental do ser humano, mas também de uma época.

Os personagens do livro são os Karamazóv: o pai devasso, Fiódor, e seus três filhos legítimos, Ivan, Aliócha e Dmitri, além de um possível filho bastardo, Smerdiákov. 

A trama se desenvolve com o assassinato brutal de Fiódor e a busca por seu mandante ou executor. A partir de então, as quatro visões de mundo, centradas nos irmãos Karamázov, começa a se desenvolver sob diferentes perspectivas: Ivan, o intelectual cético e ateu, formula algumas das perguntas centrais do romance, que também formam as frases mais discutidas da obra, como “Se Deus não existe, não há virtude. Tudo é permitido”, ou a ideia de que “pode-se amar a humanidade sem odiar os homens?

Seu poema “O Grande Inquisidor”, que Ivan explica a Aliócha em dado ponto da obra, em que Jesus retorna à Terra e é repreendido pela Igreja por dar ao homem liberdade demais, é considerado um dos mais provocativos e inteligentes da literatura ocidental.

Dmitri, o irmão que busca o prazer, impulsivo e sensual, está frequentemente confuso a respeito da responsabilidade, de tornar-se alguém, e acaba perdido nos próprios devaneios. 

Já Aliócha, o mais jovem, que também tem a carga filosófica de Ivan, se torna uma importante figura para as discussões teológicas da obra.

Eventualmente, Aliócha se torna discípulo de um ancião ortodoxo, e começa a refletir sobre temas como a compaixão e a humildade — mesmo diante da ausência de Deus. Ele tem um jeito afetado, com reflexões mais profundas sobre temas que são frequentes no universo religioso, mas também é conflitado pelo ceticismo da época e é levado a questionar seus valores e suas crenças, o que Dostoiévski faz de um modo envolvente e muito inteligente.

Smerdiákov, o irmão "bastardo", produto do abuso e da exclusão, é um “agente silencioso do mal”, uma pessoa de caráter ruim, e o personagem que leva a tensão entre os polos opostos dos irmãos. De forma geral, nenhuma das posições é completamente condenada ou absolvida, o que mostra a maturidade intelectual de Dostoiévski e, novamente, sua moralidade despretensiosa.

O monólogo da parte final do livro, que se segue ao julgamento pela morte de Fiódor, é um dos mais impressionantes textos já escritos por Dostoiévski. 

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