Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski é um dos nomes clássicos da literatura russa e um dos que mais influenciaram autores igualmente geniais que vieram depois. As narrativas psicológicas de Clarice Lispector, o existencialismo sartreano, o nitianismo de Nietzsche, o fantástico Gabriel García Márquez e até Dickens e Murakami entram na lista dos que usaram Dostoiévski como fonte de inspiração para escrever de maneira existencial, com apreço por uma visão interior e agonizante do mundo e das filosofias todas.
O escritor russo, nascido em Moscou em 1821, num momento fervilhante da história de seu país (ele já chegou a ser preso por tramar contra o Czar, num contexto em que a monarquia russa passava por uma crise de legitimidade popular), é conhecido por suas narrativas altamente filosóficas, centradas em personagens com perturbações intelectuais e amorosas, que tentam discernir no que acreditar e como lidar com a potência do amor romântico.
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Sua primeira obra, Gente Pobre, foi bem recebida pela sociedade literária e pelos críticos (afinal, ele já era escritor, jornalista e ensaísta de veículos da mídia russa da época).
Sua contribuição literária é tão simbólica que influenciou até correntes da teologia (em Irmãos Karamázov, discutivelmente sua obra-prima, e a última escrita por ele, a religião é um grande foco de questionamentos e desespero interno).
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Outros livros famosos de Dostoiévski tocam em ainda outras áreas sensíveis da intelectualidade ocidental, como a psicologia (Crime e Castigo é um caso de estudo clínico e psicanalítico excelente) e a filosofia existencialista (Memórias do subsolo é uma representação clara).
Aqui vão as principais obras para (se desafiar a) entender a filosofia e o estilo de um dos maiores escritores da história.
1. Crime e Castigo (1866)
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Crime e Castigo é uma narrativa altamente psicológica, baseada num ato brutal: Raskólnikov, um estudante pobre em São Petersburgo, decide, conscientemente, assassinar uma velha agiota usando um machado.
Mas não se trata de um assassinato comum, motivado por discórdia, vingança ou a pura necessidade material. Quando comete o crime, atormentado por um monólogo interno típico de um obsessivo, Raskólnikov está “testando uma tese”: a de que certos homens extraordinários (como Napoleão) têm o “direito moral” de cometer crimes em nome de um bem maior, de um futuro mais justo ou racional.
A mulher que ele decide assassinar, uma senhora conhecida por agiotagem, mesquinha e má, pode gerar um bem maior para sua família pobre, especialmente a irmã, forçada a se casar com um homem ruim por falta de recursos.
Mas a grande contradição que Dostoiévski explora na obra é psicológica mais do que religiosa ou material: profunda e negativamente afetado pelo crime, ele passa a ser consumido pela angústia do que fez, pela degradação que causou em si mesmo, e acaba por se isolar no seu quarto sujo, sem vontade de sair à rua e com medo.
Aprisionado por uma espiral de culpa e paranoia, ele, que queria provar uma tese metafísica superior, se torna cada vez mais frágil. Uma relação dialética da obra é estabelecida com Sônia, a personagem que se prostitui para sustentar a família, mas, ao contrário de Raskólnikov, vive em fé, compaixão e humildade. Lentamente, o orgulho de Raskólnikov começa a ser consumido, e o fim é trágico.
O destaque da genialidade de Dostoiévski é sua falta de pretensão em relação a qualquer moralismo ou moralidade: existe, na obra, só uma busca desesperada por salvação em um mundo onde Deus parece ausente.
2. Memórias do Subsolo (1864)
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Em Memórias do Subsolo, Dostoiévski não constrói uma narrativa com enredo tradicional, mas entra num monólogo filosófico que é dividido em duas partes.
Na primeira, o narrador anônimo — o tal "homem do subsolo" — ridiculariza a lógica racionalista de sua época, num exercício filosófico de crítica, e zomba da ideia pretensiosa (sustentada pelos intelectuais ocidentais e positivistas) de que a humanidade progride com base na razão e no cálculo utilitário.
Na segunda parte, o narrador começa a expor seu passado, principalmente o romance frustrado com uma jovem chamada Liza, que ele humilha e depois implora por perdão.
De uma maneira psicanalítica, o personagem de Dostoiévski quer ser amado, mas, à sua forma, por medo e autonegação, acaba repelindo o amor constantemente. O desejo de ser visto faz com que ele se esconda. E a metáfora do subsolo é, acima de tudo, uma referência da consciência moderna, cínica, ressentida e autodestrutiva.
A escrita do livro é marcada por desvios, ironias e repetições, uma espécie de fluxo de consciência invertido.
3. Gente Pobre (1846)
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O primeiro romance publicado de Dostoiévski, Gente Pobre acompanha a troca de cartas entre Makar Devúchkin, um escriturário velho e solitário, e Vária, a jovem órfã por quem ele nutre um afeto paternal e, ao mesmo tempo, romântico.
Eles vivem de maneira muito pobre, em condições precárias, e suas cartas revelam uma intimidade que é, no entanto, tomada pela vergonha de sua condição (e de sua relação), mas também pelo cuidado e por uma espécie de resignação que é clássica entre os personagens de Dostoiévski.
O estilo da obra é mais contido, influenciado pelo realismo de Gogol, mas não deixa de ser emocional e repleto de apelos à dignidade, ao direito de amar, a uma ternura humana que é desenvolvida com a intimidade e um tanto poética, como é o próprio Dostoiévski.
O livro é, também, uma espécie de denúncia social da extrema pobreza na Rússia, mas não só da pobreza material: também de um certo esvaziamento de sentido pelo qual passavam as pessoas de sua época.
4. Recordações da Casa dos Mortos, ou Escritos da Casa Morta (1861)
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Fruto da experiência do próprio Dostoiévski na sua passagem por um presídio siberiano, quando foi preso por sua participação num grupo de ideários radicais anti-czaristas, Recordações da Casa dos Mortos, ou Escritos da Casa Morta, se apresenta como um "relato documental" de Aleksandr Petrovitch, um nobre condenado por assassinato que tenta compreender o universo dos criminosos comuns com quem divide o cárcere.
O narrador revela uma variedade de personalidades e afetos, e a narrativa demonstra até uma espécie de ética interna que subsiste entre os prisioneiros.
Meio autobiográfico, meio observador e etnográfico, o livro é repleto de episódios dramáticos, reflexões filosóficas e vislumbres de “transcendência”, somadas à brutalidade crua da prisão.
A ideia mais filosófica da obra é a de que o sofrimento, por mais grotesco e brutal, pode também purificar — uma filosofia presente em grande parte da produção de Dostoiévski.
5. Os Irmãos Karamázov (1880)
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A imensa e, discutivelmente (mas, aqui, sem discussões), melhor obra de Dostoiévski é quase uma elegia a diferentes visões, filosofias e formas de ver o mundo; e aos diferentes caracteres e situações que moldam a vida e as escolhas das pessoas, mesmo (ou sobretudo) quando elas fazem parte da mesma família.
No último dos romances escritos por Dostoiévski, problemas familiares — como um pai louco e ausente, que se casa de maneira impensada e maltrata mulheres — se unem a temáticas intelectuais que assolavam as mentes brilhantes do século XIX, como o poder e a influência da religião, que papel ela deveria tomar na vida dos homens, a busca pelo prazer num mundo em que a punição divina já não importa, as paixões e os vícios… É, enfim, um retrato profundo e ornamental do ser humano, mas também de uma época.
Os personagens do livro são os Karamazóv: o pai devasso, Fiódor, e seus três filhos legítimos, Ivan, Aliócha e Dmitri, além de um possível filho bastardo, Smerdiákov.
A trama se desenvolve com o assassinato brutal de Fiódor e a busca por seu mandante ou executor. A partir de então, as quatro visões de mundo, centradas nos irmãos Karamázov, começa a se desenvolver sob diferentes perspectivas: Ivan, o intelectual cético e ateu, formula algumas das perguntas centrais do romance, que também formam as frases mais discutidas da obra, como “Se Deus não existe, não há virtude. Tudo é permitido”, ou a ideia de que “pode-se amar a humanidade sem odiar os homens?”
Seu poema “O Grande Inquisidor”, que Ivan explica a Aliócha em dado ponto da obra, em que Jesus retorna à Terra e é repreendido pela Igreja por dar ao homem liberdade demais, é considerado um dos mais provocativos e inteligentes da literatura ocidental.
Dmitri, o irmão que busca o prazer, impulsivo e sensual, está frequentemente confuso a respeito da responsabilidade, de tornar-se alguém, e acaba perdido nos próprios devaneios.
Já Aliócha, o mais jovem, que também tem a carga filosófica de Ivan, se torna uma importante figura para as discussões teológicas da obra.
Eventualmente, Aliócha se torna discípulo de um ancião ortodoxo, e começa a refletir sobre temas como a compaixão e a humildade — mesmo diante da ausência de Deus. Ele tem um jeito afetado, com reflexões mais profundas sobre temas que são frequentes no universo religioso, mas também é conflitado pelo ceticismo da época e é levado a questionar seus valores e suas crenças, o que Dostoiévski faz de um modo envolvente e muito inteligente.
Smerdiákov, o irmão "bastardo", produto do abuso e da exclusão, é um “agente silencioso do mal”, uma pessoa de caráter ruim, e o personagem que leva a tensão entre os polos opostos dos irmãos. De forma geral, nenhuma das posições é completamente condenada ou absolvida, o que mostra a maturidade intelectual de Dostoiévski e, novamente, sua moralidade despretensiosa.
O monólogo da parte final do livro, que se segue ao julgamento pela morte de Fiódor, é um dos mais impressionantes textos já escritos por Dostoiévski.