Émile Zola, mestre francês da escola naturalista, a corrente literária oitocentista que desbravava a psicologia, a sociologia e a biologia para produzir uma literatura crua e capaz de demonstrar a integralidade da influência dos meios sobre a conduta das pessoas, diria, em frase célebre: "Os governos suspeitam da literatura porque é uma força que lhes escapa."
O papel social do escritor, acreditava o filósofo francês Jean-Paul Sartre, é a transformação da sociedade. Fugir desse papel é isolar-se da responsabilidade. "A responsabilidade do escritor", aliás, já foi um tema de ensaio para Sartre, que viveu a Segunda Guerra Mundial, a ascensão da URSS, e deparou-se, ele mesmo, com uma literatura que tinha de ser engajada, porque a vida é.
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A censura, nesse sentido, foi sempre parte da produção social da literatura: os textos que chocam e desafiam princípios morais de uma classe, de um Estado ou de uma época costumam sofrer repressão, formal ou informal, das forças a que se opõem.
Confira títulos que, hoje considerados grandes clássicos da literatura nacional e internacional, provocaram reações de setores sociais diversos de sua época, fosse pela superexposição dos relacionamentos íntimos, pela alusão às formas de vida de grupos excluídos da sociedade ou pelo tratamento ousado de temas políticos.
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Capitães da Areia (1937), Jorge Amado
Créditos: Companhia de Bolso/ divulgação
A obra-prima de Jorge Amado, que conta a história de um grupo de meninos baianos abandonados a viver num trapiche em Salvador, foi censurada pelo Estado Novo de Vargas como "subversiva", e teve seus livros queimados em praça pública em frente à Escola de Aprendizes de Marinheiro da capital baiana por militares e membros da Comissão Executora do Estado de Guerra da ditadura.
Lida antes e hoje como uma "propaganda comunista", tornou-se internacionalmente reconhecida e foi adaptada para o cinema como "The Sandpit Generals", em produção de Hall Bartlet.
O filme, de 1971, também foi censurado no Ocidente.
Ainda hoje, quando já se tornou obra de leitura obrigatória na educação básica, Capitães da Areia passa por tentativas de censura por parte de legisladores.
Em 2025, durante uma sessão da Câmara Municipal do município catarinense de Itapoá, uma vereadora do Partido Liberal (PL), Jéssica Lemoine, pediu que o livro fosse retirado das escolas públicas municipais por "promover a marginalização infantil" e "romantizar o estupro e a relação sexual entre adultos e crianças".
Ulysses (1922), James Joyce
Créditos: Wikipedia
O romance mais famoso de James Joyce, considerado obra canônica para a literatura de língua inglesa, foi publicado em Paris em 1922.
Ele adapta a história da Odisseia homérica, que conta a viagem de Odisseu pelo mundo helênico e o regresso da Guerra de Troia à sua ilha natal, Ítaca, onde deixara a esposa. Joyce narra, de maneira análoga, as 18 longas horas de viagem por Dublin de um agente de publicidade (Leopold Bloom), até a madrugada do dia seguinte.
Feito em 18 episódios, o romance é descrito como caótico, e suas passagens foram consideradas "muito obscenas" para a publicação.
A descrição bolorenta e crua de Joyce, repleta de críticas a rituais da Igreja Católica, foi alvo de censura, primeiro, das editoras, que se recusavam a publicá-lo nos Estados Unidos. O mesmo se seguiu no Reino Unido. A publicação só foi possível em Paris.
Ele era "radicalmente experimental" e combinava "experimentalismo formal e conteúdo sexual explícito", numa forma literária que "moldou a literatura do século 20", descreve Rachel Potter, professora de Literatura Moderna da University of East Anglia, em artigo ao The Conversation.
Fahrenheit 451 (1953), Ray Bradbury
Créditos: Biblioteca Azul / divulgação
Banido diversas vezes, o romance do escritor americano Ray Bradbury segue Guy Montag, um bombeiro cujo papel é, ironicamente, censurar a literatura: Montag queima livros.
Fahrenheit 451 é uma distopia baseada em eventos reais. Bradbury afirmou tê-lo escrito pensando na "ameaça de queimar livros nos Estados Unidos", onde a mídia de massa teria reduzido cada vez mais o interesse pela literatura, e, em 1938, uma comissão fora instaurada para investigar a "influência comunista" nas produções culturais.
Embora tenha recebido o Prêmio da Academia Americana de Artes e Letras, o livro foi banido em várias escolas dos Estados Unidos.
Zero (1976), Ignácio de Loyola Brandão
Créditos: Global / divulgação
Considerado pelo regime militar brasileiro "atentatório à moral e aos bons costumes", Zero, um livro sem começo, meio ou fim, foi publicado primeiro na Itália, em vista da recusa de editoras brasileiras a lançá-lo sob a censura militar.
No livro, seu protagonista, José, também trabalha com livros censurados. Na trama, une-se a um grupo de guerrilheiros até que vê a esposa ser sacrificada em um ritual. O livro foge inteiramente aos princípios morais burgueses, e é visto como "retrato dos dilemas da juventude da década de 1960".
Feliz Ano Novo (1975), Rubem Fonseca
Créditos: Divulgação
Outro alvo do regime militar instaurado no Brasil, Feliz Ano Novo ficou famoso por ter sido amplamente censurado.
A obra de contos é repleta de personagens considerados questionáveis ou inescrupulosos, e não mede palavras. Em 1976, após sua publicação, Feliz Ano Novo, descrito por Antonio Candido como obra de um "realismo feroz", foi censurado pelo governo da ditadura.
“O livro Feliz Ano Novo, além de seu pobre conteúdo, apresenta linguajar tão baixo e chulo que se custa acreditar haja obtido permissão a sua comercialização”, dizia um documento feito por agentes da Divisão de Segurança e Informações (DSI) do estado do Ceará, onde a obra havia sido recomendada para a leitura por um professor universitário, Marcondes Rosa de Sousa, na Universidade Federal do Ceará (UFC).