25ª Mostra de Cinema de Tiradentes: Chico Diaz em berço esplêndido de criação – Por Filippo Pitanga

Repleta de filmes inéditos e exclusivos, de lançamento mundial, a ditar tendências e diálogos de linguagens para o ano inteiro, a Mostra se subdivide em várias tradicionais seções competitivas e hors-concours, cada qual acompanhada de perfis específicos de expressão

O ator Chico Diaz (Divulgação)
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Com merecida retrospectiva e homenagem ao cineasta vanguardista Adirley Queirós (de “Branco Sai, Preto Fica” e “Era Uma Vez Brasília”, clique aqui e aqui), a noite da sexta-feira, dia 21, deu largada para a edição de aniversário dos 25 anos da Mostra de Cinema de Tiradentes, que se estende até o dia 29 de janeiro, e com toda a programação podendo ser conferida online e gratuitamente aqui.

Repleta de filmes inéditos e exclusivos, de lançamento mundial, a ditar tendências e diálogos de linguagens para o ano inteiro, a Mostra se subdivide em várias tradicionais seções competitivas e hors-concours, cada qual acompanhada de perfis específicos de expressão.

Desde a ousadia e experimentação da Aurora, na qual só podem concorrer até o terceiro longa-metragem inédito na carreira de seus(suas) respectivos(as) cineastas; ou a Olhos Livres, cujo título é homenagem ao saudoso diretor Carlos Reinchenbach, priorizando propostas alternativas de estilo já sendo consolidadas na assinatura autoral; bem como a Mostra Praça, cujos filmes costumam possuir alcance ou tema mais popular por se dirigir, como o nome já diz, aos filmes exibidos em praça pública ao ar livre e sob o luar na bela cidade de Tiradentes (mesmo que ora exibidos online devido à pandemia). 

Da seleção de 169 filmes (entre longas e curtas-metragens), de 21 estados brasileiros (AC, AM, BA, CE, DF, ES, GO, MG, MT, PA, PB, PE, PI, PR, RJ, RN, RJ, RS, SC, SE, SP), algumas das maiores expectativas recaem em filmes como: “Seguindo Todos os Protocolos” (PE), de Fábio Leal; “A Colônia” (CE), de Virgínia Pinho e Mozart Freire; “Sessão Bruta” (MG), de As Talavistas e ela.ltda; “Panorama” (SP), de Alexandre Wahrhaftig; “Maputo Nakurandza” (RJ-SP), de Ariadine Zampaulo; “Bem-vindos de Novo” (SP), de Marcos Yoshi; e “Grade” (MG), de Lucas Andrade. Todos eles vão ser avaliados pelo Júri da Crítica e concorrem ao Troféu Barroco e a prêmios de parceiros da Mostra. – confira programação e os dias de exibição de cada filme clicando aqui.

Porém, dentro da Mostra temática deste ano, com filmes que falam sobre Cinema em Transição, a desafiar as fronteiras do processo criativo a partir de novas plataformas e linguagens, vale realçar (clicando aqui) o documentário dirigido e protagonizado por Chico Diaz, “Diário dentro da Noite”, como um auto-experimento ensaístico a provar de fato que o ator é um dos maiores artistas brasileiros na ativa por excelência da palavra arte.

Dividido em capítulos assincrônicos, nos quais os números do índex vão se perdendo como os dias repetidos no marasmo, e todo filmado durante seu próprio confinamento ao longo da quarentena, ele conseguiu tornar uma estética recém exaurida por inúmeras iniciativas congestionadas e simultâneas, que foram sufocadas pela pandemia, e precisavam respirar na catarse do cinema, em algo bastante interessante para novos olhares do público.

Misturando essa vivência com o texto original de uma peça interpretada por ele nos palcos pré coronavírus, “A Lua Vem da Ásia” de Campos de Carvalho, levanta metalinguagens muito necessárias nesses tempos de políticas públicas tentando desacreditar a cultura, de modo a indagar para que serve o ator? Para que serve o artista? Numa calamidade pública, seria a arte essencial? Seria a primeira pessoa a quem chamaríamos por socorro? Qual o valor de uma declamação que evoque sentidos extras para o incompreensível? Qual a possibilidade de catalisar numa performance todo o não dito pelo sofrimento alheio?

Divulgação

Sem jamais esmorecer ou desmerecer os espectadores, Chico Diaz é um intérprete consciente e maturado das feridas abertas que evoca pra si neste momento, e da delicadeza e ao mesmo tempo firmeza com que precisa vesti-las como suas, até porque, de certa forma, e de muitas formas, de fato o são. Não deixam de sê-lo. Por que não assumir aquilo que lhe traz maior identificação com seu público, senão a própria dor?

A matéria-prima não é de fácil digestão para nenhum de nós. Falar da solidão e do isolamento social; dos familiares e amizades afetadas; dos abusos governamentais neste período, seja pela televisão ou pelas janelas dos vizinhos adjacentes... tudo isso se tornou moeda corrente das negociações que precisamos fazer para existir.

E Chico sustenta esse palco em sua própria casa, como se fosse a nossa, investigando a potência do discurso nos mínimos atos do dia a dia. Suas falas e reflexões se derramam no ato de lavar a roupa na máquina, de pegar sol na laje, de fazer exercícios, de tentar exercer a pintura como catarse e como válvula de escape, ou mesmo de se desvencilhar do edredom ataráxico pelo ócio que acometeu a todos.

Mas não estamos falando apenas do Chico ator. Existe em primeiro lugar um ser de bagagem própria. Sim, poderia ser qualquer um de nós, mas também é ele, em sua singela e ímpar experiência de vida. Chico nasceu no México, filho de um pai diplomata paraguaio com mãe tradutora brasileira, criado no Peru, e de raízes extremamente cosmopolitas e embebidas em forte intercâmbio cultural, tanto de responsabilidade quanto de engajamento com seu entorno.

Além disso, é formado em arquitetura e urbanismo, o que possivelmente explica seu dom de ocupação espacial como corpo artístico, uma reapropriação dos cenários e espaços como extensões de seus membros, como pudesse se agigantar ou encolher de acordo com a necessidade, num casulo criativo. E qual melhor desafio para um homem elástico do que o confinamento a reinventar seu próprio lar? Um lar cuja pequena janela precisa criar enormes fissuras para deixar entrar a audiência na intimidade do seu pensar, a permitir com que estranhos se avizinhassem na selva de pedra da cidade quarentenada. Um urbanismo social composto de gente a preencher as lacunas de identificação.

Ademais, existe, para além do ator, e do humanista, um pensador que precisava se desafiar na direção. Sem muita experiência no assunto, pois raros são seus créditos na função ou como assistente de direção, ele soube desenhar um design de produção interessante, explorando não só os cômodos à disposição, mas o incômodo frutífero entre as brechas. Um desconforto necessário para quebrar máscaras da atuação e ser ele mesmo, e outros também. Todos, ele. Nenhum deles, ele mesmo, só mentiras de si que levam a outras verdades.

Foi inteligente usar de ângulos diferenciados que não apenas a estética da selfie ou da webcam, tão comuns hoje em dia em diários confessionais. Mais inteligente ainda pelo bom uso dos cortes para enganar como idealizou a presença em certos planos – o quanto treinou ou descartou cenas espontâneas, e o quanto as repetiu à exaustão para achar outro lugar. E, por isso mesmo, interessante igualmente pensar o trabalho da montagem, assinado por Juliana Ludolf, com tanto material original e de arquivo para entrecruzar (inclusive da peça base “A Lua vem da Ásia”).

Também curiosos usos de projeções de imagens sobre o campo (quase hologramas, como nuvens no sofá), time-lapse (manipulando o tempo das seqüências, de modo a passar mais rápido ou devagar), justaposição de imagens (se duplicando, ou multiplicando-se sombreado sobre si mesmo) e até mesmo dosando a luz de modo a fazer a projeção de seu filme abraçar cada vez mais a noite e os cantos escuros conforme, a narrativa avança na exaustão do confinamento. Talvez por desafiar nossos olhares cansados para estas mesmas cenas em nós, ou para nos tirar do lugar típico da luz no cinema, que apresenta o acontecimento como uma revelação, ao invés de simplesmente ocultá-lo para a imaginação do espectador.

Talvez o ponto mais vulnerável do filme seja a trilha, pois de fato não é tarefa fácil harmonizar cenas que tentam sair do lugar comum com um extracampo já sobrecarregado de dados e códigos tão saturados, como o bater de panelas dos vizinhos, o Jornal Nacional na TV, e os cacos do pensamento na narração em off... Mas é aí que o repertório musical oscila em riscos que assumem seus erros, não como equívoco, mas como tentativa e renovação. As músicas que agregam tensão e conflitam com o que é mostrado parecem mais intrigantes do que as mais condescendentes com a cena, bem como as que nos catapultam para fora de um único território são as melhores, como o transe do mantra xamânico perto do final.

Vale ressaltar destaque para a cena bastante comovente em que debate com sua mãe invisível que recebe na sala de estar, com segurança do distanciamento social, mas não emocional. Tudo isso de modo a atiçar o material de arquivo de suas memórias, utilizados em outros tempos, não só a ampliar o valor dos flashbacks verídicos que utiliza de seu acervo, mas bem como cruzando dados contemporâneos com a única participação especial inserida, que de fato se trata de sua mãe em filmagem à parte. Isso porque os dois não interagem em cena, e sim através da magia da montagem em seqüências separadas, traduzindo outras linguagens de comunicação.

Afinal, poderiam apenas palavras trazer conforto para o sofrimento mexido e inquieto da rotina compartilhada? Seria tudo igual? Sua voz pode ser conforto, sim. Porém, o é melhor ainda quando usada para desestabilizar, sabendo o artista exatamente como dosar seu brado, seus ecos, seus sussurros, seu choro e suspiros, todas estas ferramentas da mise-en-scène autodirigida.

É justamente aí que Chico comprova que, agora também como diretor, é um ator ainda maior, tornando engajador o ato de reentrarmos em nosso consciente coletivo tão repetido neste looping, a tirar algo que transcenda para ele e para quem aceita acompanhar a experiência, como em suas próprias palavras: “A morte do espírito é mais trágica do que a morte do corpo”. – Confira debate com o ator-diretor clicando aqui.

Além de “Diário dentro da Noite”, altamente recomendamos também o filme "A Felicidade das Coisas" de Thais Fujinaga na Mostra Praça dentro da 25° Mostra de Cinema de Tiradentes. Na trama sobre uma família que sai de férias na região praiana de Caraguatatuba, entre o direito de sorver do repouso e a impossibilidade financeira nas rachaduras ocultas no casamento dos pais, é bastante paradoxal uma gestante castrada pela estrutura sabotadora do marido ausente e desafiada pela libido do filho e até da própria mãe, avó das crianças (Magali Biff divina).

A ótima atriz Patricia Saravy (dos filmes "Tentei" de Laís Melo e "Baile" de Cintia Domit Bittar) possui seus momentos para brilhar na merecida escalação como protagonista em longa-metragem, com maior introspecção de sua personagem – mas é o elenco infantojuvenil que surpreende em aproveitamento, inclusive a revelação Lavinia Castelari, com algumas das melhores tiradas e desenvolvimento minimalista (e que já está escalada como a cantora Gal Costa na versão mirim de sua infância no vindouro filme biográfico).

Além do elenco físico, outro personagem crucial é o mar, quer dizer, a água, em suas várias versões de uma representação do fluxo gestacional da protagonista. Vide o exemplo imagético da espera interminável pela construção da piscina que é muito aguardada como um abraço uterino pra acalentar aquela família pelo porvir. Os frames focados na água também servem como elemento de transição que separa a trama em capítulos, desde a serenidade da marolinha das ondas no mar ao transbordamento da tempestade no rio e na casa, quando os conflitos internos não têm mais pra onde escorrer -- inclusive, com direito a um interlúdio lúdico de abstração na cena mais bela com a metáfora da baleia (forte candidata a um dos quadros do ano).

Conforme avança, o naturalismo observacional vai dando lugar ao tensionamento errático da noite e das estripulias rebeldes do filho adolescente, único homem consangüíneo presente naquelas férias em família. A partir do momento que o sol se recolhe e o luar oculta os hormônios da juventude, o próprio filme fica mais anárquico, menos direto ou focado em corpos inteiros, buscando o plano conjunto dos adolescentes que não querem se deixar capturar e evitam a câmera, irrequietos. -- ainda que pudesse se entregar ainda mais a certo peso narrativo do contraditório na linguagem, já que é a parte menos sutil de forma assumida.

O breu faz parte do risco, com direito ainda a algumas partes oníricas, como o vagalume ou a cena do carro balançando de forma saliente diante da personagem da mãe atônito. Essa afronta da noite joga de forma interessante com as tensões, mesmo que, esteticamente, o filme assuma experimentações menos sólidas que poderiam ser um pouco prejudicadas pela falta da projeção no cinema, já que a exibição virou online nos 45 do segundo tempo devido ao surto da ômicron. Porém, isso nem sequer é uma questão perante a vantagem democratizadora de acesso em massa com a transmissão online e gratuita para a TV do Brasil inteiro que o streaming proporcionou.

Ao final, mais um frame marcante. Sem spoiler, vale dizer que o desfecho do conflito metafórico entre os dissabores do amadurecimento e a decepção com expectativas geracionais culmina num interessante plano obstruído no campo de visão, pelas frustrações de ambos os lados, como um cabo de guerra, numa ótima simbologia visual.

Como nota de rodapé, é digno de observação que "A Felicidade das Coisas" foi roteiro ganhador do Prêmio Cabíria, organizado por Marília Nogueira, de incentivo a produções com avanço no desenvolvimento de representação feminina, incluindo a pesquisadora de cinema das mulheres Samantha Brasil como parte do júri que premiou o roteiro de Thaís Fujinaga, bem como a cineasta Sabrina Fidalgo. Assistam no site da Mostra Tiradentes e confira debate com a diretora aqui.

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**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.