Brasil 2021: medalha de ouro nas Olimpíadas do Absurdo!

Tuta do Uirapuru fala sobre seu amor pelos Jogos Olímpicos, relembrando o desfile da Mangueira em 1997, e lamentando o atual abandono do esporte brasileiro

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Por Estevan Mazzuia *

Começaram, com um ano de atraso, os jogos da XXXII Olimpíada. Por muito pouco, Tóquio, que deixou de sediar os Jogos de 1940, em virtude da Segunda Guerra Mundial, não experimentou novo cancelamento. Acabariam ocorrendo em 1964 e, de maneira semelhante, cogitou-se um “adiamento” para 2032. Optou-se, por questões econômicas, por realiza-las em 2021, sem público, sendo a primeira Olimpíada da era moderna em ano ímpar.

Estou acompanhando as disputas, por um compromisso histórico-pessoal. Preferiria que não estivessem ocorrendo. Criado com o objetivo de promover a paz, união e respeito, e preservar a dignidade humana, por meio do esporte, o evento perdeu parte de seu encanto em meio a uma pandemia que matou mais de quatro milhões de pessoas, e ainda mata milhares, diariamente.

Não vejo sentido em cerimoniais, nem em arquibancadas vazias. Mas não consigo simplesmente ignorar o evento. Tenho uma ligação afetiva enorme com ele.

Foi durante os Jogos de Los Angeles, em 1984, que aprendi que existiam fusos horários. Enquanto a lua brilhava no meu céu, o locutor tentava me enganar, dizendo que a transmissão da cerimônia de abertura, debaixo de um sol para cada um, era ao vivo. Paralelamente, colecionava figurinhas que vinham nos salgadinhos que eu comprava na escola, com imagens alusivas aos jogos.

Em 1988, dei-me por vencido. O sol de Seul brilhava durante as madrugadas solitárias no sofá de casa.

Mas foi em 1992 que meu coração foi arrebatado. A Olimpíada que revitalizou Barcelona marcou para sempre minha memória afetiva. Eu poderia ouvir “Amigos Para Sempre” pelo resto da vida, sem enjoar. Invariavelmente, me pego revendo Sarah Brighton e José Carreras reforçando que minha relação com Barcelona não seria apenas por um verão ou uma primavera. Lembro das tardes em que eu chegava da escola e passava o resto do dia em frente à TV (desta vez, o fuso horário era meu amigo, e as manhãs catalãs praticamente coincidiam com minhas chegadas em casa).

Na casa de um amigo de infância, a visita de uma senhora recém chegada de Barcelona, que havia estado presente naquela cerimônia, mexeu profundamente comigo. Aquele evento que me enfeitiçara estava preso para sempre no passado, e nas fotografias que aquela senhora exibiu. A impotência de controlar o tempo e voltar àquele lugar um dia sempre foi uma enorme frustração para mim. Mas quis o destino que eu pisasse na Europa, pela primeira vez na vida, justamente na capital catalã. Destino mesmo. Era o voo mais barato disponível para o continente.

A sensação de pisar no Estádio Olímpico Lluís Companys, no Montjuïc, 24 anos depois, é algo que eu jamais poderei descrever. Algo extremamente único e pessoal. Quis o destino, também, que isso ocorresse depois de vivenciar os jogos em meu país. Sim, mergulhei de cabeça nos jogos do Rio de Janeiro, em 2016. Foram 20 dias de uma intensa maratona, que incluiu até uma visita a Belo Horizonte, para assistir a uma partida de futebol (é comum que alguns esportes sejam praticados em sub-sedes).

Lembro de ter ouvido de minha mãe ainda em 1984, que o Brasil jamais seria sede de uma Olimpíada. Afinal de contas, o evento só poderia ser organizado por países sérios, não por uma República de Bananas como a que os militares tinham fundado aqui.

Mal sabia ela que, em pouco mais de 20 anos o Brasil se tornaria uma nação pujante, ganhando imenso destaque mundial, e recebendo confiança de seus pares em nossa seriedade e capacidade para sediar grandes eventos, incluindo os Jogos Panamericanos em 2007, a Copa das Confederações, em 2013 e a Copa do Mundo em 2016, fechando um ciclo esportivo que dificilmente se repetirá por aqui. Aos amantes de esporte de minha geração, afirmo sem medo de errar: fomos privilegiados.

Entretanto, como sabemos, há muita gente que prefere as bananas. Cá estamos, pois, em 2021.

Mas o sonho de o Brasil sediar os jogos nasceu antes... Recordo-me de um frágil projeto para Brasília, em 2000. E de um projeto para o mesmo Rio de Janeiro, em 2004. Nenhum dos dois foi para a frente.

O projeto de 2004, apresentado em meados dos anos 90, foi a semente para o Pan de 2007 e a Olimpíada de 2016. E nesse embalo, a Mangueira fez seu carnaval de 1997, intitulado “O Olimpo é Verde e Rosa”, desenvolvido por Oswaldo Jardim. O refrão do samba composto por Chiquinho Campo Grande, Leque e Jorge Magalhães, e puxado (sim, puxado!) por Jamelão, dava o tom do otimismo com a candidatura carioca:

“De braços abertos sou o Rio de Janeiro / 2004 é o sonho brasileiro!”

Na visão do carnavalesco, o Rio de Janeiro era comparado à Grécia Antiga, e o Olimpo carioca seria o Morro da Mangueira, com seus deuses do samba.

A tradicional agremiação foi a sexta a desfilar na noite de 9 de fevereiro, domingo de carnaval, com 4500 componentes, divididos em 43 alas e 8 carros alegóricos.

Coreografada por Deborah Colker, a comissão de frente trazia bailarinos simulando movimentos de diversas modalidades olímpicas.

Alguns baluartes vinham sobre o abre-alas, simbolizando os deuses do samba no Olimpo verde-e-rosa.

As primeiras alas remetiam aos povos gregos, que estavam sempre guerreando, salvo às vésperas dos jogos antigos, a fim de preservar os melhores atletas.

As oferendas aos deuses estavam no segundo setor. Segundo a lenda, eles chegavam a descer à Terra para acompanhar as competições, de tão empolgados que ficavam.

A nobreza do Barão de Coubertin, responsável pela introdução dos jogos modernos, em 1896, estava representada na fantasia dos 320 ritmistas, comandados por Alcir Explosão.

As baianas representavam a chama olímpica e, a velha guarda, a lição de sabedoria dos mais experientes.

Uma alegoria trazia uma enorme biga, ainda em alusão aos jogos antigos; outra trazia Nero, a quem é atribuída uma conquista solitária: desprovido de atributos esportivos, o Imperador decidiu competir; temendo vencê-lo, atletas deixaram de se inscrever na contenda.

As últimas alas representavam os principais esportes olímpicos brasileiros: judô, vôlei, natação, basquete e atletismo.

A alegoria que representava os jogos modernos, com uma escultura do Barão de Coubertin à frente, trazia os nadadores Gustavo Borges e Fernando Scherer, ao lado do campeoníssimo russo Alexander Popov, fenômeno nos anos 90, entre outros atletas.

Fechando o desfile, uma enorme ala envolvia a última alegoria, aludindo ao sonho olímpico de 2004. A apresentadora Angélica vinha na parte de baixo do carro, cercada de 50 crianças, os atletas do futuro. Logo acima, o tradicional destaque da escola, Serginho do Pandeiro.

Com 178,5 pontos, a escola conquistou um honroso terceiro lugar, atrás da campeã Viradouro, e da vice Mocidade, em dois desfiles antológicos, um nível acima da verde-e-rosa, no mínimo.

Hoje, o Brasil é palco de jogos que promovem discórdia, desrespeito, e destruição da dignidade humana, comandados por uma espécie de Barão de Coubertin às avessas. Tal qual a saúde, a educação, e a cultura, o esporte está completamente abandonado.

Se ontem sonhávamos com Olimpíadas, hoje sonhamos em cruzar a linha de chegada, em 1º de janeiro de 2023, com o que nos sobrar de integridade física e moral.

O “desbarão” nos jogou em uma ingrata corrida de obstáculos, na qual os atletas mais fortes largam ainda mais à frente, e têm o caminho totalmente desimpedido.

Nas Olimpíadas do Absurdo, perdemos de lavada para um inepto, que nos acostumou ao terror. Atitudes que outrora custariam a eliminação de qualquer atleta estão totalmente vulgarizadas. Sim, ele venceu. Estamos insensíveis ao inaceitável.

Felizmente, ninguém sustenta títulos eternamente. Cedo ou tarde, até os mais fortes sucumbem. E ele é fraco. Muito fraco. Não fosse pela ajuda de um juiz, jamais teria vencido sua competição.

Vai ser sofrido. Vai ser tenso. Vai ser duro. E sim, vai haver sangue. Talvez mais que o necessário para que o Brasil jamais repita tal erro.

Não precisava ser assim. Não era para ser assim.

Mas o jogo há de virar. Assim como, em 2016, rimos daquele Brasil, República de Bananas, de 1984, em breve riremos do Brasil, República de Bananas de 2021.

Bola pra frente. Não deixemos a peteca cair.

VAI BRASIL!

P. S. A coluna de hoje é dedicada a Marielle Franco, que faria 42 anos neste 42 de julho, se não tivesse sido covardemente assassinada por milicianos em 14 de março de 2018.

*Estevan Mazzuia, o Tuta do Uirapuru, é biólogo formado pela USP, bacharel em Direito, servidor público e compositor de sambas-enredo, um apaixonado pelo carnaval.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.