Canções do golpe: 2016 repete 1964

A Fórum foi procurar entender a razão com quem entende do assunto: as cantoras Leci Brandão e Ana Cañas e os jornalistas especializados Julio Maria e Pedro Alexandre Santos. Por Julinho Bittencourt

Chico e o MPB4 no Festival da Record de 67. Foto: Reprodução YouTube
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Virou lugar comum comparar a famosa frase de Karl Marx: “A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”, de maneira mais diminuta, com os tempos atuais da história brasileira: “64 foi a história e a tragédia e 2016 a farsa”. Um fato, no entanto, se ergueu de maneira tanto objetiva quanto curiosa. As canções que fizeram a trilha da farsa (e da tragédia) são basicamente as mesmas que têm tocado na atual farsa. Com raríssimas exceções, uma rápida olhada pelos momentos mais recentes transpiram de maneira clara isto. Vá lá que a Missa em homenagem à Dona Marisa, na porta da sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, no sábado (7), teve a sua trilha escolhida a partir de canções preferidas pela homenageada, alguém que viveu a época. O ato teve, em alguns de seus momentos culminantes, as canções Asa Branca, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, um clássico muito anterior a tudo isto e Deixa a Vida me Levar sucesso bem mais atual na voz de Zeca Pagodinho. Além delas, a Apesar de Você, samba símbolo de Chico Buarque composto no auge da ditadura e devidamente censurado pela própria. Apesar de Você, com Chico Buarque O mais curioso de tudo é que o repertório escolhido pelos jovens cantores que se apresentaram era todos de canções dos anos 60. As exceções foram os pedidos de Lula. Ana Cañas em busca de uma nova O Bêbado e a Equilibrista O mesmo tem acontecido com a cantora Ana Cañas, uma espécie de musa e símbolo das manifestações contra o golpe e a prisão de Lula. Em todas as suas aparições, tanto em manifestação no Circo Voador, no Rio de Janeiro, quanto na porta da sede da Polícia Federal, em Brasília, ela cantou trechos do simbólico repertório de Elis Regina, mais precisamente O Bêbado e a Equilibrista, o hino da anistia composto por João Bosco e Aldir Blanc e Como Nossos Pais, de Belchior. Ana Cañas canta O Bêbado e a Equilibrista em frente à sede da PF, em Curitiba (no início do vídeo) A ironia de duas vias fica por conta do título da canção. Seríamos nós, os mesmos, vivendo e resistindo como os nossos pais ou eles, os golpistas, estariam tentando se repetir, exatamente como os seus antepassados? A própria Ana Cañas deu a resposta à Fórum: “Eu tenho, realmente, apresentado músicas mais antigas da militância porque, nesses eventos onde reúne muita gente eu acabo cantando coisas que todos conhecem”.  Posto isto, a cantora não se conteve e lançou uma novidade em primeira mão: “Eu recrutei seis ou sete compositores contemporâneos pra escreverem músicas pra mim sobre o que está acontecendo agora no Brasil. Canções que abordem, não só a questão da opressão da humanidade contra o negro, o periférico, a mulher, mas também este tempo atual. Inclusive disse a eles: ‘gente, escrevam um novo O Bêbado e a Equilibrista pra mim’, disse. Os compositores convocados por Ana Cañas foram Otto, Chico César, César Lacerda, Marcelo Segreto entre outros. Otimista, ela confessa: “como eu entro em estúdio pra gravar em setembro, com certeza teremos essa música em breve”. O tempo da canção e o tempo do individualismo Uma breve repassada no tempo nos traz inúmeras perplexidades e reflexões. Talvez tentemos repetir o que deu certo no passado, o que sobrou de caro e respeitável nesta página infeliz da nossa história. Ou, pior ainda, estamos mesmo carentes de canções simbólicas, capazes de levantar multidões. O crítico de música, repórter do Estadão e guitarrista Júlio Maria, um pouco menos otimista, lembra Gilberto Gil, quando diz que “o papel da constatação na música brasileira foi herdado pelo rap”. O problema, no entanto, segundo Júlio, “é que o rap, por várias razões, não cria hits. Não de abrangência pop, como fazia a MPB”. Ele ainda ressalta que não há mais mobilização cultural. Não existe poder de mobilização das canções, isso era um fenômeno do tempo das gravadoras. Nesse ponto, éramos felizes e nao sabíamos, cantávamos as mesmas músicas. Hoje, cada um tem seu tema próprio, sua própria playlist”, lamenta. A emblemática Diário de um Detento, dos Racionais MC's O envelhecimento da esquerda O jornalista e crítico de música, do Farofafá, Pedro Alexandre Sanches, também se intrigou e acusa um certo envelhecimento da esquerda: “Me perguntei ao ver a seleção musical do ‘diretor musical’ Lula na missa pré-prisão. Ele escolheu Milton, Elis, Gonzagão e Gonzaguinha, Chico e Zeca Pagodinho - o mais “moço” da turma acho que já passou dos 60 anos né... claro que isso reflete o gosto musical do Lula em primeiro lugar, mas acho também que reflete o descolamento que houve nos últimos anos entre nós que defendemos primeiro a Dilma, agora o Lula, e a juventude”. Por outro lado, PAS garante que “tem muita coisa espetacular sendo feita, que mereceria estar na boca do povo - e aí é interessante que, apesar dos velhos escolhidos pelo Lula naquele dia, quem interpretou as canções foram jovens tipo Flavio Renegado, Aíla e Tulipa Ruiz”, disse. O jornalista vai ainda mais longe e, de certa forma, aponta como um dos principais reflexos da falta de conexão entre esquerda e juventude, a canção popular: “Tem um canal de comunicação interrompido, sem dúvida, e é bem difícil de decifrar. Mas acho que passa por aí uma das muitas e múltiplas explicações de por que estamos aceitando tão passivamente os golpes que estamos tomando. Estamos incomunicáveis, de ouvidos frequentemente fechados, seja pelos discursos da Dilma enquanto ainda presidenta e depois, seja pelas músicas da nova geração, seja pelos significados cruzados entre a produção das novas gerações (a ativista lésbica paraense Aíla, o rapper mineiro Renegado) e o legado vivíssimo de Dilma e de Lula”, concluiu. A Mídia: Cinco famílias no comando de tudo A canção Zé do Caroço, com Leci Brandão Quem segue por um caminho parecido, mas responsabiliza frontalmente os meios de comunicação por esta lacuna, é a cantora, compositora e deputada estadual pelo PCdoB, Leci Brandão. Uma de suas canções mais emblemáticas, o “Zé do Caroço”, que quando lançada, em 1978, sofreu problemas de censura por parte da gravadora, foi executada também na Missa para Dona Marisa. “Tudo está no poder da mídia. São cinco famílias que comandam tudo com mão forte. Não há uma alternativa pra gente, ninguém consegue abrir uma emissora. Muitos políticos mandam. Não foi mais nada legal pro ouvido do povo, algo no nível da consciência política, de luta”, lamenta. Leci considera que o fenômeno faz parte de um todo excludente: “As pessoas gravam sim, só que esse trabalho não chega aos ouvidos da maioria da população. A coisa emburreceu de tal forma que é muito difícil você conseguir ouvir algo novo, que tenha um conteúdo denso. Eu gosto muito dos rappers. Esses meninos são hoje os que falam da realidade das comunidades brasileiras, os meninos que estão lá na favela. Eu gosto muito deles, mas eles não tocam”, denuncia. Para ela, “começaram a dar bastante incentivo pra turma requebrar, rebolar, mas não pensar. Esta é a ordem. Eles cercam e não deixam tocar outras coisas. Tem muita coisa, o Chico César, o Zé Geraldo, mas são coisas que não tocam. Todo disco meu tem música política, mas ninguém toca nada. Eles vão no que é fácil e pronto. Por isso eu tô no Zé do Caroço até hoje”, finaliza. Meninos mimados não podem reger a nação A partir de uma insistente observação, é possível concluir que há um pouco de todas essas coisas nas repetições destas canções ainda hoje. Temos sim, excelentes compositores, mas um tanto distantes do formato marcial que o momento exige. O lindo samba “Menino Mimado”, de Criolo, por exemplo, fala com todas as letras o que está guardado na garganta de todos nestes tempos bicudos: “Eu não quero viver assim, mastigar desilusão / Este abismo social requer atenção / Foco, força e fé, já falou meu irmão / Meninos mimados não podem reger a nação!”. No entanto, o samba de Criolo, assim como vários outros, não é, no final das contas de levantar poeira. Não é uma canção afeita aos campos de batalha. Para tal, necessitamos mesmo e com urgência daquelas que falam direto, em alto e bom som, com as multidões. Um novo “O Bêbado e a Equilibrista”, como deseja Ana Cañas. Uma breve e última reflexão fala direto a nós mesmos e ao nosso tempo. Vivemos um momento tão adverso e repleto de reversões desagradáveis que necessitamos até mesmo da trilha de um passado sombrio, mas que foi, finalmente superado. Tudo isto junto e misturado, ao mesmo tempo e agora, pode ser correto ou uma grande bobagem e que as novas canções vão voltar, o mais rápido que se imagina e espera. Prefiro acreditar que sim.