Cinema sob ataque na Quarentena: Necessitamos decolonizar as telas

Nosso governo está caminhando para uma forte censura do cinema, num ímpeto colonizador

Cena do filme Technoboss. Foto: Divulgação
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Por Filippo Pitanga*

É no mínimo irônico ver a inversão de lugares que anda acontecendo... na mesma semana em que o Cinema Português contemporâneo recebeu destaque em nosso circuito digital, com um pacote imperdível de lançamentos online pela Vitrine Filmes, ao mesmo tempo, o nosso cinema brasileiro sofria mais um derradeiro ataque frontal de seu próprio governo. Foi-se a época da rivalidade histórica entre colonizador e colonizado que tínhamos com Portugal... Mesmo sendo divertido de revisitar a história dos tempos de Dom Pedro na reprise da novela bufa “Novo Mundo” da Globo, o nosso maior inimigo atual somos nós mesmos.

Pudemos ver esta semana o secretário nacional interino do audiovisual, Helio Ferraz de Oliveira, acompanhado de integrantes da Polícia Federal e da Guarda Civil Metropolitana, comandarem operação de intervenção que tomou as chaves da Cinemateca Brasileira e removeu de forma hostil o controle da instituição da Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto. Lembrando que a Cinemateca resguarda 120 anos de história do cinema brasileiro e internacional, e que há meses o governo atual não repassava as verbas devidas para cuidar do acervo da memória nacional. Um crime contra a cultura, literalmente.

Pois na semana em que esta manobra hostil põe em xeque não apenas a nossa memória, bem como ameaça um perigoso revisionismo ultraconservador que este governo anda tentando instaurar na liberdade artística de seu país, o Brasil também ultrapassa a devastadora marca de 100 mil mortos pela Covid-19. Um número que ultrapassa as vítimas iniciais da bomba atômica que caiu em Hiroshima na 2ª GM, cuja data acaba de completar 75 anos desta triste cicatriz histórica. Porém, nossas perdas não se deram como resultado de um ataque frontal como no caso do Japão em 1945, e sim por negligência e imperícia diretas das políticas públicas de nosso país perante seus cidadãos.

E quem faz o registro da memória dessas vidas coletivamente senão a cultura? A sétima arte de nosso país é uma das grandes vozes de liberdade que vinham se pronunciando de forma crítica e necessária como resistência a esta postura governamental tão danosa. Não à toa se tornou um alvo. A liberdade cultural e de expressão sempre se tornam alvo ante governos autoritários. Por isso, do sucesso e multiplicação de nosso cinema multipremiado no mundo, o governo vem tentando castrar todas as formas de seu financiamento e viabilização. E não só em nome de minar projetos futuros, mas também macular os pregressos e clássicos, como se demonstrou com o ataque sistemático e frontal à Cinemateca... Além de algumas outras atitudes recentes do governo atual, como a negativização de cineastas consagrados perante a Ancine a partir de exigências prescritas ou equivocadas, de contas já prestadas e encerradas.

É aí que retomamos o Cinema Português nessa história. Num território com uma população que gira em torno de 10 milhões de pessoas (em 2019), é até proporcional cogitar que os portugueses produzam menos longas-metragens do que os brasileiros e suas 210 milhões de pessoas (em 2019). Se ano passado lançamos nos cinemas (seja em Festivais ou circuito) um recorde em torno de 300 longas-metragens (segundo dados do pesquisador e curador Eduardo Valente), Portugal lançou menos de 20 – e vale contabilizar que vários se deram em coprodução brasileira. Por volta de 15 longas no circuito, segundo o cineasta João Nicolau em debate mediado por este que vos escreve para a live recente da Vitrine Filmes (assista aqui).

A diferença é que se nosso governo está caminhando para uma forte censura do cinema, num ímpeto colonizador, outrora estávamos tão potentes no mundo que auxiliávamos em coproduções o cinema português contemporâneo a evoluir numa razoável unicidade de propostas decolonialistas. Evidente que Portugal possui muitos fantasmas no armário para exorcizar dos seus tempos de espólios predatórios dos tempos das navegações no Hemisfério Sul, não só no Brasil como também na África, por exemplo. Mas seus filmes andam purgando esses temas explicitamente em reinvenção de linguagem, e nossa coprodução brasileira é uma forma de reocuparmos e expandirmos nosso campo de atuação para além do nosso território tão cerceado no momento.

Boa parte destes projetos perpassaram a Produtora O Som e a Fúria, não apenas filmes como os do supracitado cineasta João Nicolau (como “John From” de 2015 e “Technoboss” de 2019), como de vários conterrâneos dele. Curiosamente, se formos decupar o nome da produtora, o "Som" de fato existe como assinatura em primeiro plano na construção narrativa, seja nos desenhos de som, para deslocar e impulsionar os personagens pelas panorâmicas e travellings que movem os quadros com urgência, seja na trilha sonora cosmopolita. E a “Fúria” através de um inconformismo latente, seja geracional, pela dialética dos tempos para personagens que enfrentam amadurecimentos diversos, seja um descontentamento social, com o meio e com a estrutura externa aos personagens.

Outra coisa é que a produtora escolhe projetos especiais. Uma de suas marcas é o realismo maravilhoso, algo que atravessa uma vontade em comum com os cineastas portugueses. Talvez uma resposta ao naturalismo anterior, ou um grito pra refabular o descontentamento com a contemporaneidade. E isto se dá através dos dispositivos de onde surgem os processos não naturais, como nos filmes de João Nicolau. O realismo maravilhoso do condomínio que reúne todas as narrativas de “John From” é invadido por uma névoa que não é nem fumaça nem propriamente um nevoeiro à la Stephen King... é sim um estado onírico delirante. Da mesma forma que a tecnologia de “Technoboss”, representada pelo carro e seu sistema de segurança e controle, representa o gatilho do delírio, de onde o protagonista (Miguel Lobo Antunes) começa a cantar.

O canto é de tal forma um dispositivo assumido, fora da realidade que atravessa as cenas, que quando estamos no meio de uma canção, e a montagem nos leva para uma cena externa, a música continua a tocar apenas no extracampo, não sendo assumida nos lábios de seus personagens. – E esse é um efeito no desenho de som recorrente em seus filmes, com diálogos desconectados com a cena, cujos personagens permanecem silentes ao som de outra cena, quase uma narração em off. O dispositivo do canto também é permeado por assumir o lado farsesco da fantasia, ao virar a câmera e focar no fundo falso, pantomímico, nas paisagens pintadas em cortinas de fundo como se fosse um teatro filmado. Mais uma vez o teatro assumido na mise-en-scène.

Vale citar que este não é o único musical recente na filmografia portuguesa, pois existem outros premiados exemplares como "A Fábrica de Nada" de Pedro Pinho (2017), onde a música ocupa um lugar de crítica social, de signo popular e conexão coletiva entre o indivíduo e as angústias do meio. Pedro Pinho também é roteirista de "Djon África" dirigido por Filipa Reis e João Miller Guerra – filme que aborda uma reparação histórico-cultural perante o lugar de Portugal nas jornadas colonizatórias no continente Africano, e que se comunica com o já citado “John From”. Aliás, outros diretores a trabalhar com dispositivos do realismo maravilhoso para dar toques de decolonialismo são o grande Miguel Gomes com sua Trilogia "As Mil e Uma Noites" ("O Inquieto", "O Desolado", "O Encantado"), além do cult "Tabu". Todavia, talvez, aquele que abrace mais o lado mágico desse realismo maravilhoso seja a obra-prima "O Ornitólogo" de João Pedro Rodrigues (2016), bem como o novo cult “Diamantino” de Gabriel Abrantes e Daniel Schmidit, e o igualmente divertidíssimo “O Filme de Bruno Aleixo” de Pedro Santo e João Moreira. Por último, mas não menos importante, vale citar os multipremiados sucessos de crítica e Festivais recentes “Cavalo Dinheiro” de Pedro Costa e “A Cidade Onde Envelheço” de Marília Rocha.

Precisamos manter nossa força em decolonizar as telas, algo que o governo vê como ameaça, mas é a única cura possível em meio ao horror contemporâneo. Enquanto passamos momentos de cerceamento com o nosso próprio cinema em território nacional, indicamos ao menos onde encontrar alguns destes filmes portugueses, muitos em coprodução brasileira, lançados online pela curadoria da Vitrine Filmes em várias plataformas digitais:

O Ornitólogo (Google Play, Youtube Filmes, Now, Apple TV / iTunes) – leia a crítica completa aqui.

Djon África (Vivo Play, Google Play, Youtube Filmes, Now, Apple TV / iTunes, Telecine Play) – leia a crítica completa aqui.

A Cidade Onde Envelheço (Vivo Play, Google Play, Youtube Filmes, Now, Apple TV / iTunes, Looke) – leia a crítica completa aqui.

Diamantino (Vivo Play, Google Play, Youtube Filmes, Now, Apple TV / iTunes, Telecine Play) – leia a crítica completa aqui.

Bruno Aleixo (Net Now, Vivo Play e Oi Play)

Technoboss - (iTunes, Google Play, Youtube Filmes, Now, Vivo Play)

* Jornalista e advogado, crítico, curador e professor de cinema