Clara Nunes, nossa cantora maior, que foi sem nunca ter sido

Seu poderoso canto que retumbava nos terreiros de Candomblé não era tão bem quisto nem pelas famílias de “bem” e nem pela “inteligência”. Puro preconceito

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Seu poderoso canto que retumbava nos terreiros de Candomblé não era tão bem quisto nem pelas famílias de “bem” e nem pela “inteligência”. Puro preconceito Por Julinho Bittencourt Essa conversa de a maior cantora, o maior guitarrista, o maior isso, o maior aquilo é um terrível engano que só serve para que renunciemos à nossa imensa diversidade. Temos vários “maiores”, diversos grandes, enormes. Trata-se, talvez, da nossa necessidade cristã de eleger um grande herói, um Deus, um salvador, um maior de todos que venha a nos redimir. O maior é único, portanto, parte da questão fica resolvida. Ajude a Fórum a fazer a cobertura do julgamento do Lula. Clique aqui e saiba mais. No caso das cantoras brasileiras, poucos são aqueles que não concordam ou que se arvoram a contestar: “a maior cantora brasileira de todos os tempos é a Elis Regina”. E quem diz o contrário é tratado como ateu. Bem, não há dúvida que a nossa pimentinha foi uma das nossas grandes feras. Elevou a nossa música a outro patamar etc etc e etc. No entanto, e sempre há um no entanto, há um time – reduzido, é certo – de cantoras que disputam ali, com a Elis, o posto de grande, e isso também é incontestável. Uma delas, e é disso que se trata o nosso texto de hoje, além de se encontrar no mesmo patamar das maiores e melhores, nos prestou um grande serviço e, talvez por isso mesmo, não apareça neste panteão das grandes como deveria. Falo de Clara Nunes e a sua vigorosa e reveladora música, que evoca nossos antepassados, nossos cânticos e, claro, nossos orixás. Por ser ela – e disso uma amiga me lembrou muito bem – “macumbeira”, acabou execrada dos lares de “família”. Seu poderoso canto que retumbava nos terreiros de candomblé (com todo o respeito à diversidade, não se tratava de macumba) não era tão bem quisto nem pelas famílias de “bem” e nem pela “inteligência”. Além disso, era também uma contara de gênero, ou seja, de samba – vá lá um samba meio “macumbeiro”, mas sim um samba, mal que serpenteou a carreira de Beth Carvalho, Alcione entre outras. Bethânia mesmo, por ocasião do aniversário de 70 anos da Alcione, revelou que pediu à gravadora que a querida Marrom participasse de um disco seu, lá na década de 80. Os cartolas do disco ficaram abismados e preocupados. Alcione era uma cantora de samba. Bethânia bateu o pé e a gravação foi sucesso, furando todas as expectativas e barreiras. No caso de Clara Nunes, a coisa era ainda pior. Sua música – que até mesmo o guitarrista Hélio Delmiro, que tocou em vários dos seus discos e virou evangélico, disse que jamais faria discos assim novamente – era comprometida com a raiz das raízes afro-brasileiras. Ninguém, no espectro da nossa música, foi tão longe quanto ela. A exceção talvez seja Gilberto Gil, Obá de Xangô do Ilê Opô Afonjá. Mas o fez já consagrado, o que não tira seu mérito. “Quem ouviu um soluçar de dor no canto do Brasil”, o “Canto das Três Raças” de Clara Nunes era algo tão forte e ousado que perturbava até os nossos menos ruins. Ela levou para o horário nobre o canto das sereias, “Iansã, Cadê Ogum? Foi pro mar! Mas Iansã, Cadê Ogum? Foi pro mar!, Filhos de Gandhi, badauê, Ylê ayiê,malê debalê, otum obá”. Tudo vibrava num transe e num timbre inigualável. Clara foi grande, enorme quanto qualquer outra. E só não enxerga isso quem se nega ao nosso Brasil mais profundo, com todo o encanto de seu povo.